ENSAIOS
Segunda-feira,
21/4/2003
Uma febre chamada Baderna
Luís Antônio Giron
+ de 9400 Acessos
Os estudos sobre o Romantismo estão em
alta. Com eles, cresce o interesse pela dança praticada na primeira metade
do século XIX e tudo o que a cercava: moda, ópera, primas-donas e
primas-bailarinas, lutas de poder, manipulação econômica e embates
amorosos. Nos termos de um folhetinista do tempo, José Maria Paranhos,
futuro Barão de Rio Branco, o mundo assistia a uma "febre dançante",
doença moral só comparável às epidemias de febre amarela que assolavam
populações inteiras. A voga repercutiu em filmes - como o longa-metragem
"Moulin Rouge" - e no mundo da música, que assiste ao revival das
operetas de Offenbach, com o lançamento de CDs e montagens de espetáculos
com suas obras.
Dois livros lançados na Europa descortinam um universo esquecido
da vida cultural oitocentista, associado tanto ao balé clássico e sua
contraparte popularesca - o cancã, o bolero, a cachucha e outras danças
de origem folclórica -, quanto aos aspectos transgressivos do imaginário
romântico. São eles "Les Cancans de l'Opéra ou Le Journal d'une
Habilleuse: 1836-1848" (As Fofocas da Ópera ou O Diário de uma Camareira),
do francês Jean-Louis Tamvaco, professor de estudos teatrais da Sorbonne,
e "Baderna, la Ballerina dei due Mondi" (Baderna, a Bailarina de dois
Mundos), do militante trotskista italiano Silverio Corvisieri.
Os dois volumes se entrelaçam num "pas-de-deux" de historiografia
cultural. Ambos trazem à tona uma época de refrega entre gerações, em que
as tensões e desejos da sociedade se dramatizavam no palco do teatro
lírico, com suas óperas e bailados, as artes mais populares de então. Em
suma, os dois retratam o apogeu do Romantismo e fazem desfilar, em suas
páginas, personagens quase todos compartilhados.
O livro de Tamvaco acompanha os espetáculos de balé e bel canto na Ópera
de Paris e publica, pela primeira vez, em edição crítica, o manuscrito
anônimo "Le Journal d'une Habilleuse, 1836-1848", relato do trepidante
período anterior à revolução de 1848. A obra de Corvisieri, lançada em
1998 na Itália e agora no Brasil, aborda a mesma atmosfera de rebelião e
inventividade que reinava no norte da Itália, oprimido pelo exército de
ocupação austríaco. Corvisieri traz um ingrediente interessante em seu
livro: trata também do ambiente cultural do Brasil nos primeiros anos do
Segundo Império: o papel dos jornais na cobertura dos eventos, da ópera e
do balé, numa nação que ansiava por transpor aos trópicos a civilização
européia, de preferência francesa e italiana, e cujos escritores e músicos
mergulhavam na construção de um Romantismo com cor local. No pano de
fundo, epidemias letais de febre amarela e cólera, incêndios do teatro e
atitudes truculentas da polícia e dos empresários.
Havia um liame forte entre Paris, Milão e Rio de Janeiro: os artistas
circulavam pelas três cidades e o público se informava sobre os
espetáculos por meio de cobertura jornalística intensa. Em Milão, como
informa Corivisieri, sabia-se dos tropeços de certa soprano no Rio, de
onde sabia-se da aclamação de uma prima-ballerina em Paris. Os
responsáveis por espalhar as notícias eram os folhetinistas, geralmente
escritores iniciantes empregados dos jornais. Os dois autores jogam por
terra a "teoria da dependência cultural", decantada pelos intelectuais
brasileiros nacionalistas. Estes consideravam desprezível para a formação
brasileira os anos que interessam a Corvisieri e Tamvaco. Nesse período,
porém, formou-se o gosto do público, sob a égide internacionalista do
Romantismo.
O intercâmbio se perdeu com a decadência do balé e da ópera no fim do
século XIX, franqueando espaço ao vaudeville e suas danças apelativas,
como o cancã. Fatos corriqueiros, relatados pelos críticos e
memorialistas, se transformaram aos poucos em enigmas e nomes que
encantavam o público de 1840 caíram no olvido. É o caso da bailarina
italiana Maria Baderna, cuja memória se dissipou até mesmo junto a seus
conterrâneos. O que dizer, então, do "diário de uma camareira" da Ópera de
Paris? Nem Tamvaco, nascido em 1931 e especialista em ópera romântica,
tinha idéia sobre o autor dos 328 artigos de todo gênero, reunidos em
quatro volumes, depositados no arquivo da Ópera de Paris. Tamvaco não
entendia por que o manuscrito havia permanecido inédito. "O texto atentava
contra a honra de pessoas famosas e poderia ofender seus descendentes",
comenta. "O medo de processos afastou o comprador dos documentos da idéia
de publicá-los." Depois de longa investigação, o pesquisador decifrou que
o "diário" havia sido escrito pelo inspetor de material do teatro, um
certo Louis Gentil (1782-1852), figura emperucada ao estilo da
Restauração, habitué das récitas e, apesar do compassivo sobrenome,
célebre por sua língua corrosiva, que fazia questão de exibir no foyer do
teatro às personalidades da época, como a bailarina vienense Fanny Elssler
(1810-1884) e seu amante, o escritor Théophile Gauthier. Gentil havia sido
jornalista na juventude. Em 1829, fundou e dirigiu o jornal "Le Mercure",
o único periódico literário da época. Foi secretário do teatro Odeon de
1829 a 1830 e trabalhou para a Ópera entre 1836 e 1848. Nesses 12 anos,
encarregou-se de coletar uma volumosa avalanche de fofocas de bastidores.
Claro que às escondidas, sob o avental de "habilleuse". O texto é uma peça
rara de infâmia. Não poupa ninguém que tenha passado pela caixa da Ópera,
então sediada num prédio da rua Le Peletier, incendiado em 1873 após cinco
décadas como sede da principal casa de espetáculos parisiense. Compareciam
ali o demi e o grand monde europeus: bailarinas, cantores líricos, nobres,
capitalistas, poetas, conquistadores, camareiras, faxineiros, maquinistas
e as "filles de l'Opéra" - que vendiam o corpo em troca de noitadas
elegantes em companhia de algum "leão" do momento, como eram conhecidos os
tigrões do Romantismo. Mas, "hélas!", lamenta a falsa camareira: os tempos
já eram outros e os escândalos minguavam. "Não há mais na Ópera paixões
desenfreadas e loucuras originais. Que homem se arruinou por causa dela
nesse último quarto de século? É mortificante pensar que a Bolsa tirou o
privilégio de nossas damas!"
Nem por isso Gentil deixou de coletar episódios picantes. Exemplo: a
brincadeira inventada pelos figurinistas e costureiras do teatro. Em 1836,
eles criaram um "sudorímetro", escala pela qual começaram a medir "o grau
das emanações odoríferas" das cantoras e bailarinas em ação. A suposta
"habilleuse" informa que poucas damas ultrapassam o décimo grau e a
diferença entre elas é de um grau ou mesmo uma fração. Havia casos
excepcionais, como Mlle. Noblet, que atingia 16 graus e até além no
instante em que se despia depois de sua aparição em cena. O placar do
sudorímetro era maldosamente divulgado entre os "amateurs" da platéia. Um
deles se chamava Malençon, "homem polido e generoso", casado com uma rica
dona de butique no Brasil. Ele, que gastava rios de francos com as
cocottes, voltava periodicamente ao Rio para "recompletar seu capital".
Outro caso diz respeito às dançarinas da Academia Real de Música, Anna
Saulnier e Eulalie Gaucher, ambas amigas de 13 anos. Na temporada de 1837,
distribuíram um folheto entre os cavalheiros no foyer. Nele, descreviam a
si próprias como bem-humoradas e "de agradável figura" e anunciavam a
abertura de sua mansarda, na rua Pinon, à visitação dos interessados, "em
todos os momentos do dia e da noite, exceto nas horas de classes de
ensaios e representações".
Gentil escancarou a caixa da Ópera aos "voyeurs" da posteridade: num
verdadeiro "reality show", mostrou pontos desesperados, cantoras colocadas
à prova dos insultos em cena aberta, o mecanismo das claques, capazes de
transformar reputações em farinha, as paixões, o arrebatamento do público
diante de Fanny Elssler na cachucha, número do balé "Le Diable Boîteux" no
qual ela se acompanhava com castanholas. "É um charme! É um delírio. É
sobre-humano!", exclama Gentil. Vigorava a moda das danças espanholas.
Gentil se animava com o sucesso de Sofia Fuoco e os destemperos da mezzo
Rosina Stoltz, rodeada de "todas as lésbicas em exercício em Paris". As
"inclinações sáficas" de Stoltz, segundo Corvisieri, não cessaram quando a
diva partiu para o Brasil, em 1852. Lá, chegou a assediar Maria Baderna. A
bailarina a repeliu. Resultado: sofreu retaliações da cantora.
Baderna foi uma azarada, apesar da boa formação e do talento. Foi colega
de Sofia Fuoco e rival de Fanny Elssler. Mas seu infortúnio se devia a um
só nome: Brasil. Corvisieri como que fornece a continuação do diário de
Gentil, relatando as peripécias e o "brusco crepúsculo" de Baderna no
período posterior ao abordado pelo fofoqueiro parisiense. Em 1848, Baderna
vivia um clima semelhante ao da rua Le Peletier. E só não foi objeto da
pena maldosa da "habilleuse" porque nunca esteve em Paris. Trocou a Milão
sublevada pelo conservador Rio de dom Pedro II. No Brasil, magnetizou a
mocidade romântica da corte com requebrados da cachucha (moda lançada por
Fanny) e se tornou musa do Ultra-romantismo local, de linhagem byroniana.
Só que sumiu, sem deixar pegada das sapatilhas de seda, tão celebradas em
verso e prosa pelos admiradores, que formaram uma seita para defendê-la, o
Partido Badernista.
Corvisieri, de 63 anos, freqüentador do Brasil, compreende português e
ajudou na revisão da tradução do livro. Mesmo assim, o texto se revela
macarrônico. Isso não chega a prejudicar o livro, de leitura irresistível,
ainda que não possua um índice remissivo. O autor não é historiador da
cultura e só se interessou por Baderna por causa de uma premissa falsa.
Julgava que a dançarina fosse, como ele, militante revolucionária. Saiu em
busca da alma gêmea e encontrou algo bem diferente da sonhada identidade.
Baderna não passava de uma artista que se viu obrigada a emigrar para o
Brasil devido a circunstâncias políticas. "Não vestia o figurino
revolucionário", diz, em entrevista a este jornal. "Foi apenas uma artista
engajada."
Corvisieri militou no Partido Comunista Italiano. Nascido em Ponzia, ilha
do sul da Itália, onde mora, trabalhou como jornalista em periódicos
esquerdistas, como "La Sinistra" e "Quotidiano dei Lavoratori". Por três
mandatos, foi deputado pelo PCI. Entre seus livros, destacam-se "Trotskij
e il Comunismo Italiano" (1968) e "Il mio Viaggio nella Sinistra" (1979).
Seu novo título sai em setembro: "Il Mago dei Generali - Poteri Oculti
nella Crisi del Fascismo e della Monarchia" (O Mago dos Generais - Poderes
Ocultos na Crise do Fascismo e da Monarquia). Nele, persegue a sombra "de
um singular personagem que fui uma espécie de "santarrão" de uma seita
esotérica, agente de três serviços secretos e conspirador profissional." O
homem participou da tentativa de golpe dos ricos italianos, que queriam
expelir Mussolini sem que o regime mudasse. "Há no livro um capítulo
brasileiro, pois o sujeito emigrou para São Paulo depois da Segunda Guerra
Mundial".
Em meio a devaneios e pesquisas, Corvisieri visitava o Brasil em 1987.
Então se deparou com um artigo, em "O Globo", de Otto Lara Resende. Lembra
que o país vivia dias de cólera popular contra o aumento de preços; a
cidade se abarrotava de barricadas, correrias e atos de vandalismo. O
artigo de Resende versava sobre uma certa bailarina, Maria Baderna, que
teria vindo ao Rio em 1851 e cujo sobrenome deu origem a um termo usado
pela ditadura de 1964 e ainda na ordem do dia em 1987: "baderna". Otto
perguntava-se por que o nome de uma bailarina graciosa teria gerado,
exclusivamente no Brasil, sinônimos de pândega, pagode, súcia, cambada,
pancadaria, orgia, conflito, bagunça, confusão. Os desvios semânticos
proporcionados pelo nome da conterrânea excitaram Corvisier. Ainda lendo o
artigo, constatou que o sentido original da palavra era o mesmo que se
mantinha no italiano, inglês ou francês, "trança de fios de cânhamo" usada
em navios. "Os dicionários de Portugal também repetiam o significado",
explica. "Somente no francês havia um campo semântico pejorativo, na
expressão 'vieille baderne', a indicar uma pessoa acabada, imprestável."
Percebeu que, no Brasil, o termo era utilizado em dois filões: "O primeiro
se refere a qualquer tipo de desordem pública, de confronto violento de
rixa; o segundo tem a ver com qualquer tipo de transgressão grupal
(orgia, pândega, pagode)." Mas o que incendiou a imaginação do italiano
foi o artigo do também jornalista e militante Moacir Werneck de Castro,
publicado em 11 de julho de 1987 no "Jornal do Brasil", pouco antes do de
Otto Lara Resende. Nele, o autor prometia contar "a verdadeira história de
Maria Baderna". Desfiou uma série de episódios, descrevendo a dançarina
como seguidora do revolucionário Giuseppe Mazzini. Ela se exilou no Brasil
e foi perseguida pelos austríacos como "agente da subversão
internacional". Apresentou-se no Rio, conquistou multidões de fãs que
provocavam batalhas campais. Estas passaram a ser chamadas de "badernas".
Em 1852, associou-se então ao carbonário Fiametta, abandonou a dança e
passou para a clandestinidade. Trocou, nos dizeres de Moacir, "a arte pelo
amor e pela revolução, atingindo as culminâncias sofredoras de uma heroína
de Manzoni, Byron, Schiller ou Stendhal". No Nordeste, organizou
comunidades inspiradas em Palmares de Zumbi. Foi "agit-prop" em Santa
Catarina. Morreu na década de 1870, de tuberculose, desiludida com a
derrota da Comuna de Paris. "Seu fantasma - o tempestuoso fantasma da
baderna - permaneceu suspenso nos céus do Rio de Janeiro e ainda hoje nos
persegue, excitando uns e aterrorizando outros."
Desacostumado à verve dos colunistas cariocas, Corvisieri acreditou na
história "cheia de enxofre" de Moacir. Tudo se encaixava, e realmente o
fracasso da luta pela independência na Itália precipitou um êxodo de
artistas. Decidiu iniciar uma pesquisa sobre essa versão à esquerda de
Anita Garibaldi. No "Dizionario Biografico", de Francesco Regli,
encontrou um verbete sobre a bailarina. Informava que Baderna "havia içado
velas com destino ao Rio" devido às "vicissitudes políticas de 1848". Tudo
se encaixava, até que o pesquisador escreveu a Moacir para se informar
sobre as fontes que o jornalista usara no artigo. Ele respondeu, em carta
de janeiro de 1988, que a história de Baderna não passava de brincadeira.
"Tudo fábula, tudo inventado", escreveu. "Errei por não ter deixado clara
minha intenção, eu que não sou habituado ao gênero humorístico." Mas,
concluiu, "o mistério de Maria Baderna permanece. Agora sou eu quem
pergunta: o que foi feito dela?" O italiano se irritou. Mas assumiu o
desafio de varrer o destino da Baderna.
Corvisieri pesquisou em arquivos na Itália, Brasil, Estados Unidos,
Inglaterra e França. "No Itamaraty, encontrei o contrato entre o maestro
Giannini e o capitão do navio Andrea Doria, que, em 1849, trouxe a
companhia italiana ao Rio, inclusive Baderna". O contrato trazia detalhes
como horários e cardápio.
O pesquisador constatou que Marietta era bem conhecida na Itália na
primeira metade do século XIX. "Foi uma das 'prime ballerine assolute' da
Europa, ao lado da rival, Fanny Essler, lenda viva na época, por ter
enlouquecido Gauthier. A revista 'La Strenna Teatrale Europea', Em 1846,
incluiu Baderna na 'Plêiade de Terpsicore', ao lado de Pasquale Borri, que
fez escola, Flora Fabbri-Bretin, outra divinizada por Gauthier, e Sofia
Fuoco, 'étoile' da Opéra de Paris, colega de Marietta e aluna do milanês
Carlo Blasis, maior teórico italiano de dança no Romantismo."
Blasis ensinou a menina-prodígio: "Sacrifique qualquer outro prazer
àquele proporcionado por Terpsícore, não misture nenhum outro exercício
àquele da dança." O mestre queria impor dignidade ao ofício de dançarina,
na época associado ao de prostituta. Blasis ensinava técnica erudita e a
popular. Instruiu-a a dançar à espanhola, aperfeiçoando-a na cachucha e no
fandango.
A formação de Marietta a afastou do comércio sexual. Nasceu em família
pequeno-burguesa, em Castel San Giovanni, Parma, em 5 de julho de 1828.
Seu pai, o cirurgião Antonio Baderna, levou-a a Milão para matriculá-la na
escola de Blasis. A menina tinha 11 anos. Em 1843, Marietta estreou no
Scala. Fez tanto furor que começou a circular, nos arredores do teatro,
uma litogravura com o retrato da bailarina. Comparavam-na a Fanny Essler.
Seu nome era ouvido na azáfama dos cafés milaneses. Uma récita no teatro
Drury Lane de Londres, em 19 de março de 1847, deu-lhe o naco maior de
glória: a rainha Vitória fez questão de permanecer até depois do
espetáculo para ver o número da cachucha por Marietta. No dia seguinte, o
"Morning Chronicle" louvava a "serpentina flexibilidade" genuinamente
andaluz de Baderna. Contratada pelo Covent Garden, ali exibiu muitos balés
de Blasis. Ao regressar à Itália, no fim do ano, ganhou a tarja de "jovem
Sílfide". Em Trieste, em plena revolta contra os austríacos, foi eleita
símbolo da resistência. Amealhou admiradores. Alguns deles, rechaçados,
estampavam nos jornais versos aviltantes. Um desprezado tachou-a de "ébria
bacante" no "Osservatore Triestino". Em novembro de 1848, o Scala
anunciava Marietta como "prima ballerina assoluta". Mas os artistas
emigravam e o Scala foi fechado. Marietta aceitou o até então absurdo
convite do maestro Giannini de refazer a carreira no Brasil.
Aportou no Rio em companhia do pai. Feliz, este reencontrou amigos
mazzinianos exilados. No Teatro São Pedro de Alcântara, ela se tornou a
rainha da dança. Estreou em 29 de setembro de 1849, no balé "Il Ballo
delle Fate". Êxito total. Sucederam-se ovações. Era anunciada como gênio
juvenil de 18 anos, embora contasse 21. No palco, dividia o prestígio com
a prima-dona Ida Edelvira. Um ponto, de nome Montanha, fundou o Partido
Badernista. O progressista "Correio Mercantil" exaltava-a: "É uma fada,
uma huri, um portento." Cultuada como huri, vamp do paraíso muçulmano,
recebia as manifestações as mais eletrizantes. Na época, os partidos
teatrais, fomentados pelos empresários, incendiavam literalmente os
teatros. No Rio, trocavam pateadas, flores, patacas de cobre e gritos em
cena aberta. Baderna encontrou seu público e faria tudo para agradá-lo.
Aprendeu a dançar o lundu e o batuque, assistindo a exibições de escravos
no Largo da Carioca. E tratou de levar os movimentos de baixo ventre ao
palco imperial, para horror dos retrógrados, reunidos em torno de
Paranhos, o folhetinista do "Jornal do Commercio". Baderna se tornava
"estrela popular da juventude romântica", síntese da libido de uma geração
alimentada no culto ao nativismo e à transgressão. Os jornais conjugavam o
verbo "badernar" como dançar com elegância; tratavam seus fãs como
"badernistas". Com suas umbigadas, Baderna insuflava torneios violentos,
no fim dos quais era carregada em triunfo pelas ruas. "Poetas malditos do
romantismo tropical" fumavam charutos de Havana e se regalavam com a nudez
entrevista sob a malha da sílfide.
Mas o Brasil, conforme Corvisieri, era um "país tartúfico" e, de uma hora
para outra, o empresário do teatro deixava de pagar os artistas, sem
explicações. Baderna e colegas fizeram greve, mas sem efeito, já que não
podiam retornar à Europa sem dinheiro, numa viagem que durava dois meses.
Isso para não falar da eminência de epidemias de febre amarela, que
dizimavam o elenco, principalmente os cenógrafos - cinco deles pereceram
em menos de dois anos. Mas Baderna sobrevivia. Quando seu pai morreu do
vômito negro, ela chamou para sua casa o bailarino francês Jean Tupinet. O
casal viveu em aberto concubinato, para pânico da elite moralista, que
podia aceitar o conluio, caso permanecesse às ocultas.
No final de 1849, dissolveu-se a companhia do São Pedro. Magra e abatida,
Baderna era caricaturizada no jornal "O Artista" com o nariz aquilino e as
pernas raquíticas. "Está reduzida às dimensões de um átomo", definiu um
crítico. Para fugir às pressões morais, foi mostrar seu lundu no teatro
Santa Isabel do Recife. Outro escândalo. Se a elite local queria
expulsá-la, os estudantes de Olinda coroaram-na como símbolo da nascente
brasilidade.
Ao voltar ao Rio, em 1851, foi obrigada, por contrato, a figurar nos
permissivos bailes de máscaras de Carnaval - cláusula comum na Europa, de
acordo com a presumível camareira da Salle Le Peletier. Paranhos, no
"Jornal do Commercio", denunciava a "febre dançante", rival à altura da
amarela. Seu ápice ocorreu em setembro, num baile em homenagem à família
imperial, numa saturnal de requebros e umbigadas. Em nome da dança
irrefreada, os byronianos tropicais pregavam a anorexia, o absinto e os
excessos sexuais com prostitutas. E Baderna servia como flâmula. Na
imprensa, prorrompeu uma "cruzada moralizadora", na qual a "dissoluta"
Baderna recebia a tarja de provocadora da epidemia da cachucha e
congêneres. Não foi por outro motivo que, aos poucos, os conservadores se
valeram do sobrenome e, despojando-lhe de acepções nobres, converteram-no
em sinônimo de orgia e bagunça. A propósito, Gentil, em trajes de
camareira, dedica um de seus relatos à crença que as bailarinas
professavam na influência dos nomes sobre seus destinos galantes. "Maria",
um dos favoritos, traria felicidade. Não menciona a superstição em relação
a sobrenomes. Nem Baderna nem ninguém imaginaria que seu sobrenome a
ultrapassaria, embora sob a forma de termo pejorativo.
Em agosto de 1851, o São Pedro se incendiou. Sem contrato, Baderna
desapareceu. Seu biógrafo perde seus rastros para reencontrá-los em 1863.
Na época, tentou retomar a carreira num teatro em Bordeaux. Atingida por
intermináveis rajadas de apupos, foi convidada a se retirar da cidade,
acusada de alcoolismo. Jornais milaneses, como o "Fama", noticiaram o
fiasco, atribuindo-o à emigração para a América: "O Brasil foi o túmulo do
seu talento."
E provavelmente túmulo real. Ali, tentou uma derradeira "rentrée" na
companhia da velha colega, Celestina Thierry, no Lírico Fluminense. Seu
papel era secundário.
O ano de 1865, segundo o biógrafo, representou o canto do cisne de
Baderna. Ela se resignou a fazer números em vaudevilles patéticos.
A partir de então, seus passos não deixaram pistas. O biógrafo supõe que
ela optou pela autodestruição, como tantas outras. A atriz Eugênia Câmara,
por exemplo, depois da morte de Castro Alves, embriagou-se de absinto e
perfume até rastejar pelas ruas. "A hipótese de uma decadência física
precoce, ocasionada pela vida bohémienne, ao uso excessivo do álcool (e
talvez do absinto) encontram abrigo em uma miríada de indícios", jura
Corvisieri.
Marietta, nos estertores, talvez fizesse jus aos badernistas byronianos,
e tenha se entregado ao vício e à dissolução. O biógrafo aponta um fato
essencial que concorreu para a eliminação de Baderna da cena: o surgimento
das bailarinas francesas que introduziram, no Alcazar Lyrique, o cancã e
outras danças eróticas. Justamente o cancã, surgido nos anos 1830 nos
bas-fonds de Paris e Milão, que Maria aprendera a abominar. Aturdidos
pelas pernadas explícitas, os dândis brasileiros não distinguiam mais
entre Baderna e Aimée, o "demoniozinho louro", bailarina que seduziu
Machado de Assis. As novas divas não tinham nada a ver com erudita rival.
Não passavam de cortesãs bem pagas. Marietta degenerou em uma "vieille
baderne", traste romântico que todos desejavam ver enterrado. Seu exílio
foi o do inominável, cogita o biógrafo. A tal ponto que "hoje os
brasileiros, à exceção de uma minoria que pode ter a curiosidade de
consultar um dicionário, não sabem absolutamente nada sobre a origem de
uma palavra que eles próprios usam em muitas ocasiões". A origem está na
heroína romântica que teve o sobrenome "humilhantemente expropriado".
Alcóolatra e desajustada, Baderna se escondeu da história. Há quem afirme
que ela morreu no fausto, como cafetina de um lupanar fluminense. Mas a
hipótese não é confirmada. Há os que a vêem no espectro que paira sobre o
Brasil e se materializa em periódica da desordem ou como símbolo de um
país que costuma ser crematório dos sonhos da arte. Quem sabe ela não
tivesse sorte melhor se houvesse voltado à Europa, onde muitas colegas
suas padeceram em circunstâncias tenebrosas. Teria servido à maledicência
da pseudo-camareira em seu detestável "journal". De qualquer forma, porém,
a "habilleuse" a teria seguido até a morte. E a história saberia que
fatalidade carregou Baderna.
Para ir além
Maria Baderna, a Bailarina de Dois Mundos -
de Silverio Corvisieri - Record, 240 págs., R$ 28 - tradução de Eliana
Aguiar
Les Cancans de Paris ou Le Journal d"une Habilleuse - de Jean-Louis
Tamvaco - CNRS Editions, 1.307 págs, 741 francos.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil, a 24 de agosto de 2001.
Luís Antônio Giron
São Paulo,
21/4/2003
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