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Terça-feira, 12/11/2002
Um Daumier no MASP
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 5800 Acessos
+ 3 Comentário(s)


Dedicado ao Jorge Coli

Daumier é um dos habitantes das ruas da Paris do século XIX, o centro mais fervilhante da tragédia e da comédia cotidianas. A grande cidade é o seu mundo, mundo de fecunda e inesgotável inspiração: lutas políticas e revolucionárias, a dor e a miséria dos humildes, a comicidade sarcástica da burguesia. E é impressionado pelo espírito rebelde de Paris em efervescência revolucionária que traduz, em algumas de suas obras, com agudíssimo olhar, temas do universo da capital francesa.

O artista vivia entre a barricada e a sala de redação de pequenos jornais revolucionários. Desde o princípio de sua carreira, encontra-se nele a preocupação com os fracos, com os proscritos e com os que sofrem por causa da miséria e que a miséria desonra. Sua obra descarnará as chagas da sociedade à sua volta, mostrando sua decadência e degeneração. No ensaio sobre os caricaturistas, que remonta aos anos de 1845-6, Baudelaire elogia Daumier por sua representação integral da realidade da metrópole moderna: “(...) folheiem sua obra e verão desfilar ante seus olhos, em sua realidade fantástica e impressionante, tudo o que uma cidade contém de monstruosidades vivas. Tudo o que ela encerra de tesouros assustadores, grotescos, sinistros e burlescos, Daumier conhece”.

Emigrantes do MASP

Quem visitar o MASP poderá encontrar, como parte de seu acervo, uma das mais fascinantes obras de Honoré Daumier. Trata-se do relevo em gesso denominado “Emigrantes”.

Existem duas versões do relevo, sendo quase idênticas e conhecidas como 1a. e 2a. versão. Uma delas, a 1a. versão, está hoje no Museu d’Orsay, em Paris. A 2a. versão é a que pertence ao acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em São Paulo.

A data da execução e o tema mesmo do relevo em gesso (evocação do exílio dos revolucionários de 1848) são incertas. Mas a partir da datação do seu desenho preparatório pode-se inferir uma data aproximativa à 1850.

No Emigrantes do MASP, Daumier modela em relevo um agrupamento humano em marcha, composto de homens, mulheres e crianças. Todas as figuras aparecem nuas dentro da composição.

Daumier desnuda os personagens para fazer sentir com mais força a opressão física a que estão submetidos. A derrota desses corpos robustos parece estar por se consumar frente aos nossos olhos. Mas o fardo que os oprime e o pesar que os rebaixa e enverga não tiram seu vigor nem descarnam seu porte. Sua marcha é aquela de uma força, mesmo que prestes a ser rompida no seu apogeu. Crianças, mortos e malas são carregados em um movimento penoso que curva as costas e prende a marcha dos caminhantes sem, no entanto, resigná-los.

Em Emigrantesa procissão de homens se constitui mediante saliências e sombras profundas, necessidade de, a um só tempo, tirar e implicar as figuras no plano. Esse procedimento dá um cunho colorístico ao relevo, invertendo a preeminência do tato sobre a visão. O artista não realiza obra lisa e contínua passível de ser aferida agilmente pelos dedos; ao contrário, instaura rugosidades, rupturas que só a visão distante permite conjugar num todo coerente”(Nelson Aguilar, Catálogo do MASP). A modelação é impetuosa e fragmentada. Os corpos dos personagens são uma saliência saída da argila, um terreno geológico com acidentes, dobras e cavidades. É uma obra para se ver de longe, quando os toques se fundem no olho do espectador. O relevo de Daumier nos faz pensar em uma frase de Rembrandt: “minhas obras não foram feitos para serem cheiradas”.

O artista não concedeu graça aos personagens mas, transformando-os em Hércules modernos, concedeu-lhes força. Seguindo a movimentação do grupo, pensamos ver os poderosos músculos dos personagens erguerem-se a cada inspiração. Os personagens partem, como que desejando um pouco de ar, para um destino desconhecido. A figura central carrega um recém-nascido, em cima do braço, sobre os ombros; aqueles que caminham são puxados pela mão. As mulheres marcham também, fatigadas, pois a caminhada deve ser de arrastado desespero, por mortes queridas, junto daquele inexorável instinto de defesa que obriga a ajoelhar diante dos mortos. Mas a caminhada deve prosseguir. Mallarmé, no seu poema “Brisa Marinha”, nos fala desse desejo inexplicável que nos faz, por vezes, deixar aqueles que nos são caros e partir.

Apesar de ser um relevo pequeno, intrinsecamente não monumental, esta obra cresce e se alarga para além de suas próprias medidas. Um espaço imenso é sugerido quando Daumier modela uma dezena de personagens, no segundo plano, como uma progressão contínua além dos limites do baixo-relevo.

Daumier abandona todos os conceitos tradicionais de modelagem para compor um grupo de figuras formado de incontáveis superfícies vivas, não simétricas, sem base nos modelos, nas poses e nas alegorias. O que vemos é um relevo cheio de movimentos, de inquietação e gestos vigorosos.

Seu tema se concentra no movimento e o motivo dominante de seu relevo é a energia, a força que não se limita e não se concretiza numa ação definida e histórica.

Emigrantes é uma escultura do drama em que os ossos e os músculos dos personagens acumulam todo o espírito dramático. Daumier confere a estes caminhantes um sentido heróico, um vigor michelangesco. “Ele possui Michelângelo sob a pele!”, disse Balzac, tocado pela potência da composição, sobretudo do baixo-relevo, de Daumier. Conta-se que o pintor Daubgny, visitando os afrescos de Michelângelo na Capela sistina, exclamou: “É como Daumier!”.

Não há dúvidas quanto a influência do escultor italiano sobre o artista francês. Podemos comparar as figuras de Emigrantes a algumas obras de Michelangelo. O que é particular no relevo de Daumier é a forma rústica com que modela a massa corporal dos personagens e, consequentemente, os seus movimentos, imprimindo uma expressão brutal à cena que se desenrola frente aos nossos olhos. Observando esses personagens de perto, podemos perceber o trabalho da mão do artista modelando o relevo. Acompanhamos, como no caso do personagem central carregando uma criança, a força e a direção que cada movimento de sua mão tomou na execução dos poderosos músculos tensionados, criando rugosidades e massas que se avolumam onde este corpo exige mais força, como é o caso das costas, coxas e nádegas.

Daumier apresenta-nos o corpo humano numa grande riqueza de movimentos e força muscular. Corpos viris e musculosos movem-se numa apoteose heróica de si mesmos, o que se traduz num verdadeiro apelo ao vigor e à carne viva. Em Emigrantes esse agrupamento de homens poderosamente fortes traduz-se numa expressão marcadamente heróica dos personagens.

Não há, então, como não pensar em Emigrantes, de Daumier, a partir do sentido e da dimensão da monumentalidade dada pela expressão dos corpos musculosos, no auge da expressão de seus movimentos, dentro de uma concepção épica.

O poeta francês Paul Valéry, que também viu semelhanças entre Daumier e Michelângelo, disse que o que os aproxima “são a exigência, o instinto, a paixão que os induz a empregarem a imagem do homem para um fim profundo, atribuindo-lhe um significado, um valor, um destino, conferindo-lhe uma dignidade vital totalmente diferente daquela que cada ser real possui”.

Essa “dignidade vital”, da qual fala Paul Valéry, não é outra coisa senão o heroísmo presente em Emigrantes e do qual nos fala o poeta Charles Baudelaire.

Para o autor de As Flores do Mal, viver a modernidade requer uma constituição heróica. As pressões que a vida moderna impõe ao homem são tais, que a simples sobrevivência exige forças superiores às dos personagens de Homero.

No seu ensaio “O Heroísmo da Vida Moderna”, Baudelaire diz que “o que precisamos é abrir os olhos para reconhecer nosso heroísmo”. O poeta ainda diz, com uma retórica destinada a ultrajar a sensibilidade neoclássica de muitos de seus leitores franceses, que “os heróis da Ilíada são como pigmeus, comparados a vocês Vautrin, Restignac (...) e a você Balzac, o mais heróico, o mais poético de todos os heróis”.

É nesse sentido que Daumier se insere, opondo-se à cultura acadêmica e refutando a idealização da figura humana; na sua obra o homem comum aparece elevado à dignidade de arte, o universo de suas vidas é tratado como heróico. No caso de Emigrantes, é a constituição vigorosa e resistente dos personagens que reforça o heroísmo.

Todos esses personagens aparecem na obra de Daumier são personagens comuns que vivem, exigência baudelairiana, como heróis modernos.

O caráter heróico que Daumier empresta aos personagens do relevo Emigrantes (que mesmo estando numa situação de total desolação e sofrimento) se dá graças a representação da possibilidade destes se manterem firmes no seu poderoso porte físico.

Não se sabe ao certo quem denominou a obra Emigrantes com este nome. Isso, aparentemente, causa uma suspensão da definição da temática destas obras. Mas alguns elementos relacionados à obra e ao seu artista nos levam ao levantamento de algumas questões. Estes elementos são: a data do desenho preparatório que é de 1850, os surpreendentes fatos do período (os acontecimentos de 1848, na França) que estão à volta de Daumier no momento de criação das obras, a relação do conjunto de sua obra (grande parte de crítica política) com esses acontecimentos e, mesmo, algumas características presentes na cena representada (a presença de um ferido ou morto e de pessoas carregando malas ou trouxas, o caminhar apressado de uma multidão).

Dois historiadores acreditam em uma possível relação entre estas obras e a derrota dos revolucionários nos acontecimentos de 1848, na França.

Claude Roy acredita que “não é evidentemente uma coincidência sem significação que faz com que o refluxo do movimento revolucionário de 1848, este incidente que se consuma entre a revolução de fevereiro, a insurreição de junho e a eleição em dezembro de Luís-Napoleão a presidência da República, estes são os meses onde, quatro vezes, três vezes em pintura , uma vez em escultura, Daumier vai tratar do tema dos Fugitivos e dos Emigrantes. Em junho, a insurreição foi selvagemente reprimida: cinco mil mortos, quinze mil deportados, centenas de exilados ‘voluntários’”.

Também Eugénie de Keyser comunga com esta possível relação: “O talento de Goya, e mais tarde Daumier está, sobretudo, em haver descoberto um modo de expressão para testemunhar a revolta contra as instituições opressivas. (...). Os Emigrantes e os Fugitivos lembram provavelmente o insucesso da insurreição social de junho de 1848 em Paris;(...)”.

O levantamento dessa hipótese (a possível relação entre o relevo Emigrantes e a revolução de 1848) se deve ao fato de que grande parte das obras de Daumier insere-se em um quadro de críticas feitas à política opressiva de Luís Filipe e de que a obra data de apenas dois anos após o acontecimento de 1848, ainda bastante vivo na memória tanto do artista como da população francesa.

Não se pode esquecer também que Daumier foi caricaturista político, colaborando nos periódicos Caricature e Charivari, sempre pronto a atacar a política hipócrita de Luís Filipe e o corrupto sistema judiciário, legislativo e burocrático do Estado Burguês.

Devido ao fato de grande parte da sua obra ser uma ilustração da vida parisiense do século XIX, Daumier é frequentemente chamado de “o Balzac das artes plásticas”. Mas é em Victor Hugo que encontramos uma melhor relação com sua obra.

Os fatos narrados por Victor Hugo em História de Um Crime seguem a mesma tendência das obras de Daumier dedicadas à temática de Emigrantes. A descrição de Victor Hugo, que explica a razão da emigração do povo francês, acaba, também, por explicar e descrever as imagens criadas por Daumier: “Como o crime triunfara, tudo se lhe ia reunindo. Era possível perserverar; resistir, não. Tornava-se cada vez mais desesperada a situação. Dir-se-ia que enorme parede, prestes a fechar-se, avultava no horizonte. Saída: o exílio. As almas nobres, glória do povo, emigraram. Viu-se este acontecimento melancólico; a França expulsa a França”.

Os dois artistas não deixam de fazer de sua obra um comentário crítico à situação política na qual se encontrava a França. E estas obras são o exemplo disso.

Em um momento no qual grande parte dos artistas registravam e comentavam os acontecimentos revolucionários e pós-revolucionários da França, é quase impossível não perceber em Emigrantes de Daumier uma referência a estes acontecimentos. Daumier, que quase sempre colocou sua obra a serviço de suas idéias políticas, não poderia estar imune a estes fatos. Pode ser considerado um dos grandes críticos da vida social de seu século. E o que era exigido por Zola e Baudelaire, críticos de arte daquele momento, Daumier cumpriu em sua obra.

Em um artigo denominado “A Escultura”, publicado em “L’Evénement Illustré”, de 16 de junho de 1868, Émile Zola adverte os escultores para que criem uma obra baseada na realidade contemporânea. Escrevia Zola: “Já é tempo, se não quisermos que a escultura agonize, de reconciliá-la com os tempos modernos, tornando-a filha de nossa civilização. É preciso ter a coragem de deixar os gregos em suas casas, abandoná-los aos seus ideais, seus sonhos de formas arredondadas, e falar a nossa própria língua artística, nossa língua contemporânea de realidade e de análise”. Era o que Daumier havia criado, há décadas, não só em escultura, mas também em pintura.

As conclusões acima leva-nos a levantar a seguinte questão: até que ponto o relevo Emigrantes, de Daumier, insere-se dentro de um grupo de obras que podem ser consideradas como a crônica dos acontecimentos políticos da França do período revolucionário (1848), com um dos seus consequentes desdobramentos políticos: o exílio?

Estas obras seriam a representação do necrológio da revolução e dos revolucionários derrotados de 1848?

Após pintar cenas de revoltas populares e do massacre da população francesa, com seu Emigrantes, Daumier não estaria fechando um círculo de denúncias contra a tirania de Luis Filipe sobre o povo?

Vale ressaltar ainda que, longe de ser apenas uma crônica dos acontecimentos franceses de 1848, sua obra Emigrantes demonstra a habilidade de Daumier para criar um mundo completo de figuras, com a precisa decisão dos contornos, a amplidão dos volumes (criados a partir da vida cuidadosamente observada), sendo a expressão de uma arte que dialoga com grandes mestres, como Michelângelo, Rembrandt e Goya.

No caso do relevo, somos tentados a perceber uma preocupação mais de pesquisa estética do que uma preocupação temática. Quem são estes personagens? De onde vêm? Não se sabe. Estão todos nus; nenhum detalhe os situa no tempo ou no mapa. Podem ter sido retirados da realidade a que mencionamos mas, muitas vezes, para Daumier existem temas que se repetem e que não são senão uma forma de pesquisa obsessiva.

A expressividade do relevo Emigrantes, sua dramática monumentalidade e a dinâmica das figuras são, ainda, o que diferencia a obra de Daumier da de seus contemporâneos. Na verdade, anuncia o que viria a constituir uma obra como a de Rodin (outro devedor de Michelângelo).

Mesmo quando o tema de suas pinturas é a pobreza das pessoas do povo, Daumier não pretende poetizar a miséria. A sua arte quer se impor sem a ajuda da curiosidade ou do sentimento. A realidade deveria, isto sim, aparecer como uma fonte de alegria estética igual ou superior à qualquer outra, poderosa, imponente e épica.

Daumier pertence ao domínio puro da arte, e é isto que faz sua força; mesmo seus desenhos políticos podem ser vistos de uma forma estranha às paixões políticas. É como se ele tivesse levado à cabo as tentativas ensaiadas por pintores como Géricault em A Balsa da Medusa ou Delacroix em A Liberdade Guiando o Povo, promovendo o grande encontro entre arte e acontecimento.


Dados Biográficos sobre Honoré Daumier

1808- nasce em Marselha.
1815- a família de Daumier muda-se para Paris.
1828- começa a dedicar-se à pintura; frequenta a Escola de Belas-Artes e a escola Boudin.
1830- começa sua atividade de chargista político, trabalhando na revista satírica La Caricature, dedicada aos ideais republicanos.
1831 - Daumier é condenado a seis meses de prisão e multa de 300 francos pela caricatura Gargântua, satirizando Luis Filipe.
1835- o governo fecha La Caricature.
1848- primeiras pinturas e retomada do trabalho como desenhista.
1872- última litografia publicada.
1878- Victor Hugo organiza a Exposição Daumier, com 94 telas, 140 desenhos e 11 esculturas.
1879- morre em 11 de setembro, em Valmondois, vítima de paralisia cerebral, na casa que lhe fora comprada por seu amigo Corot.


Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 12/11/2002

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
13/11/2002
15h02min
Jardel, depois de ler seu texto sobre florbela espanca decidi ler todos os outros que escreveu. são realmente muito bem escritos, muito emocionantes, inteligentes. Daumier, nem se fala. excelente, adorei mesmo. parabéns e espero ler mais e mais...
[Leia outros Comentários de claudia]
18/11/2002
09h28min
Já li todos os seus artigos e achei especialmente maravilhoso este que você publicou sobre Daumier, pela aproximação que você faz com Michelangelo, um diálogo que prontamente evidencia as relações citadas em seus texto, ao meu ver, com a Batalha dos Centauros. Neste uma convulsão de corpos em luta travada e inarredável, aqui, em Daumier, um heroísmo tácito porque expresso por um povo ao se retirar de uma situação política opressora. Acho apaixonante a forma como você narra os diálogos entre as obras de arte e em especial destes dois gicantes da arte Européia.
[Leia outros Comentários de Dalila Doring Sousa]
25/8/2003
12h45min
Jardel, adorei seu artigo, não esperava que escrevesse tão bem. Espero aprender muito com você. Parabéns, por esse texto sobre o Daumier, gostei mesmo.
[Leia outros Comentários de Debora]
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