Uma cidade bárbara | Daniela Sandler | Digestivo Cultural

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Quarta-feira, 23/6/2004
Uma cidade bárbara
Daniela Sandler
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Berlim é famosa, entre outras coisas, pelo mau-humor. No guia turístico Lonely Planet, a autora – uma alemã que adora a cidade – adverte em sua introdução que o serviço é ruim e as pessoas, em geral, antipáticas. Ela conta ainda que até mesmo o órgão oficial de turismo da cidade admite o problema, mas suas tentativas de resolvê-lo têm sido infrutíferas. O mau-humor não é dirigido especificamente a turistas ou estrangeiros. Aliás, ninguém deve se sentir atingido pessoalmente: o mau-humor é genérico e onipresente, como um estado natural dos berlinenses.

Pois Berlim inspirou um livro inteiro dedicado ao seu mau-humor. Escrito por cinco alemães de outras partes do país, que mudaram para Berlim a trabalho, o livro é composto de narrativas curtas sobre suas experiências na cidade. Desagradáveis, na maior parte dos casos. O título já dá uma idéia: Aqui fala Berlim: histórias de uma cidade bárbara. O “bárbara” é sem ironia, pois a palavra não tem a conotação positiva da nossa gíria. Quer dizer mesmo não-civilizado e rude.

Os autores desfiam relatos sobre taxistas irados, vendedores desdenhosos, sapateiros de má-vontade. Depois de uma temporada na cidade, é difícil discordar – ainda que a própria idéia de escrever um livro para reclamar dos berlinenses seja ela mesma um sinal de mau-humor. Eu mesma tenho incontáveis exemplos. Uma caixa de supermercado ralhou comigo porque eu coloquei a cesta de compras no lugar errado. Em altos brados, a fila inteira ouviu. Outra vez foi num restaurante, onde a comida demorou uma hora e meia para chegar. Como outros fregueses, desisti e decidi ir embora. A garçonete trouxe a conta da minha bebida antes mesmo que eu pedisse. Não se desculpou, pareceu aliviada, foi cuidar de outras mesas. Mas quando eu vestia meu casaco, a comida chegou. A garçonete voltou indignada e disparou: “Mas eu já tinha cancelado seu pedido, como é que você está comendo agora?!”. Tive de explicar a ela o propósito da minha visita ao restaurante: “Mas eu estou com fome!!!!”. Ela coroou o diálogo com um “Então coma!” tão raivoso que dois outros garçons e o gerente vieram se desculpar.

Tenho amigas que desistiram de ir à biblioteca, por medo de levar bronca. No registro de estrangeiros (onde, após a chegada ao país, os vistos de estadia são emitidos), algumas pessoas vão às lágrimas. Mas o cúmulo foi o dia em que tive de passar um fax para um órgão público. Como não tenho fax em casa, fui a uma loja de xerox que oferece o serviço. A mocinha me atendeu gentilmente e foi passar o fax. Discou, alguém atendeu, trocaram algumas frases, o número estava errado, depois de duas ou três tentativas o negócio funcionou. Eu já estava pagando, indo embora, quando ela solta a reclamação: “Eles foram muito grossos comigo no telefone!”. Uma berlinense reclamando do mau-humor berlinense! E para mim, como se eu fosse a responsável! “Sinto muito”, eu disse, meio sem graça, pois afinal eu não devia estar me desculpando de nada.

Grosseria histórica

A falta de educação é histórica: no século dezenove e começo do século vinte a cidade já tinha fama de bárbara. Explicações não faltam, ainda que também não expliquem muito. Alguns põem a culpa no passado militar de Berlim, cidade-caserna. A disciplina do exército, é claro, não é sinônimo de cortesia e gentileza. Para outros, a má-educação começou com a rápida industrialização e crescimento urbano, quando a cidade foi tomada por fábricas fumarentas, miséria, crimes e agitação política. Talvez o cotidiano duro e violento tenha forjado uma sensibilidade particular nos habitantes – uma sensibilidade calejada, por assim dizer. Contrastando com a sofisticação cultivada de Munique, por exemplo, os habitantes de Berlim teriam uma noção mais realista e pragmática das dificuldades da vida e da futilidade de firulas de etiqueta. Ou talvez o mau-humor tenha sido sempre, simplesmente, efeito dos ventos ríspidos e dias casmurros dos invernos longos...

Para os tempos mais recentes há novas explicações. A cidade foi castigada sucessivamente pela guerra, ocupação aliada e divisão – primeiro entre os quatro países aliados, depois entre Alemanha Oriental e Ocidental. O trauma e o sofrimento do Muro teriam feito de Berlim a cidade mais triste do mundo, segundo a filósofa norte-americana Susan Neiman. No lado Oeste, o sofrimento foi atenuado por subsídios econômicos – que fizeram de Berlim uma vitrine capitalista encravada no mundo comunista – e toda sorte de incentivos para seus habitantes. Ainda assim, a vida em Berlim Ocidental no pós-guerra nunca teve, por assim dizer, leveza de espírito. A vitalidade da contracultura jovem nos anos sessenta e setenta foi traduzida, sim, em comunidades hippies, mas também num movimento anarquista violento e negativo, simbolizado por barricadas e carros incendiados.

A vida noturna dos anos setenta e oitenta girava em torno de concertos punk, da música melancólica e depressiva de gente como Nick Cave, e do consumo de drogas, especialmente heroína. Sua narcose sorumbática e destrutiva foi simbolizada pelo livro e, depois, filme Eu, Christiane F., treze anos, drogada, prostituída.... O título folhetinesco em português não faz jus à dimensão urbana do livro, que destila a alma dura da cidade em conjuntos habitacionais gigantes, desertos de concreto e milhares de apartamentos empilhados; em esquinas cinzentas, banheiros sujos e os fundos da estação de trem onde a protagonista encontrava seus clientes e outros viciados. O título original, afinal, é “Nós, as crianças da estação Zôo” – a estação de trem, metrô e ônibus chamada Zoologischer Garten (Jardim Zoológico, no centro de Berlim Oeste), ou simplesmente “Zoo”.

Do outro lado do Muro, as coisas não eram muito mais alegres. A mesma melancolia, sem o lustro capitalista – ou seja, sem anúncios e vitrines coloridas, sem carros modernos ou confortos rotineiros. As ruas monumentais de Berlim Oriental estavam sempre livres, pois os carros eram poucos; as fachadas das casas eram enegrecidas, cinzentas da fumaça de carvão (usado para aquecimento), a pintura nunca renovada, muitas vezes desfolhando, mostrando tijolos, marcas de tiros da guerra, a alvenaria mordida nas quinas e terraços. A opressão do regime comunista, a espionagem da polícia secreta e as restrições da ditadura provocavam desencanto. Os que se encaixavam no sistema e na ideologia viviam também encaixotados em conjuntos habitacionais enormes, na periferia da cidade, cobiçados por terem aquecimento central e banheiro próprio. Os que não se adaptavam – antes que a revolução pacífica do fim dos anos oitenta tomasse corpo – viviam à margem do sistema, mas no centro da cidade, nos bairros históricos deteriorados, abandonados pelo governo.

Hedonismo e alegria

Mas essa tristeza toda, que teria roubado dos berlinenses a disposição para a gentileza cotidiana e a boa-vontade gratuita, deveria ter se dissipado com a euforia da queda do Muro e o otimismo da reunificação. De fato, a melancolia deu lugar a um hedonismo quase obsessivo, centrado na vida noturna e na diversão em clubes, cafés, bares e festas. Sair à noite é quase obrigação social – descobrir os melhores clubes, perseguir os DJs mais cotados, os eventos secretos e ilegais em espaços ocupados. Berlim é a cidade da “Love Parade”, uma espécie de carnaval tecno que acontece em julho. Mas, assim como euforia não significa felicidade, essa disposição desenfreada para a recreação não corresponde a uma atitude mais alegre e aberta. Segundo um amigo meu, a vida noturna acelerada explica o mau-humor: todo mundo estaria sempre de ressaca e com falta de sono.

Pode ser. Explicação, no sentido restrito da palavra, não há, ainda que seja divertido explorar os contextos culturais do mau-humor berlinense. E, para ser sincera, parte da diversão está também em cultivar o próprio mito do mau-humor, com o que este meu texto, admito, contribui. Pois é claro que, para todos os exemplos de berlinenses rudes, tenho tantos ou mais exemplos de berlinenses educados, sorridentes, solícitos e agradáveis. Mas que há algo nesta cidade que, com freqüência, nos faz emburrar e querer soltar um palavrão, isso há – eu mesma testemunho, surpeendendo em mim momentos de puro espírito berlinense. E, desta vez, não vou por a culpa do meu mau-humor no... mau-humor dos berlinenses ao meu redor!


Daniela Sandler
Berlim, 23/6/2004

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