COLUNAS
Sexta-feira,
7/6/2013
Umas armadilhas suaves
Ana Elisa Ribeiro
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Enquanto eu lia aqueles dois livros de capas tão distintas, tentava encapsulá-los em apenas uma palavra, que eu sabia ser um substantivo. Não me vinha um verbo ou um adjetivo. Eu seguia as trilhas dos livros de Ana Martins Marques e tentava uma palavra ou outra que a resumisse. Enfim, depois que fechei a última página de Da arte das armadilhas (Companhia das Letras), decidi-me: é delicadeza.
Refiz o trajeto todo. Reli os dois livros. O primeiro é A vida submarina, lançado pela editora Scriptum, de Belo Horizonte, uma casa de livros (e livraria, antes de tudo) que vem desempenhando um belo papel na paisagem dos lançamentos poéticos nos últimos anos. Ana MM não é a primeira (e nem será a última) a migrar da pequena para a grande editora, por conta de um trabalho bem-feito (dela e dos editores).
Depois de ganhar prêmios, inclusive repetidamente, Ana (cuja poesia é tão aparentemente simples quanto seu nome) compôs um belíssimo livro em que trabalha com a linguagem como quem costura ou borda ou aplica. É uma poesia delicada, mas em nada insossa ou daquele refinamento fake dos arranjos poéticos muito esforçados. A vida submarina traz um conjunto de poemas que deixam pequenos sustos no leitor, o que foi meu caso por diversas vezes. É desse tipo de surpresa boa, especialmente nos versos finais, que vem meu apreço grande pela poesia, desde os tempos da escola, quando as chances de eu desgostar disso eram muito maiores.
Por diversas vezes pensei: eu queria ter escrito isso. Em uma ou duas ocasiões, cheguei a pensar, meio sorrateiramente: eu podia ter escrito isso. Mas logo me vinha a ideia de que as imagens poéticas de Ana MM só cabem mesmo dentro dos olhos dela (meio esverdeados, por sinal). Lê-la é como aprender um pouco sobre o que ela observa ou que filtros ela usa. Era como exercitar o olhar do outro, mas um belo olhar: olhando uma paisagem, o que Ana MM olha? Vivendo a vida, o que ela percebe? O que a toca? O que a afeta? O que ela observa e como sente o que sente? Nesse sentido, sua poética é quase feita da crônica.
Numa poesia construída, basicamente, de palavras simples e imagens identificáveis, isto é, fundamentada na "escala humana", Ana MM trata de amor e das armadilhas da linguagem. Um tanto grande dos poemas é dessa estirpe dos metalinguísticos, só que com movimentos curvos, leves e delicados. A poeta não é dura, teórica ou excessivamente explicativa. Ela trabalha na comparação, especialmente aquela feita com coisas simples: uma cortina, uma árvore, uma mesa ou um fogão. (Ah, não, não vou compará-la a Adélia Prado - toda poeta mineira está sujeita a isso por uns tempos).
Na falta de mais referências (porém não melhores), nos dois livros, Ana MM (ou seu eu-lírico, como querem os professores, vá lá) me lembra Adília Lopes, poeta portuguesa publicada algumas vezes no Brasil também. Aquela sensação de ser poeta sem sair de casa me abraça em ambas. Adília é, talvez, menos amorosa. Não sei. Ana MM é também uma cronista das relações difíceis, mas sem gritar.
Em A vida submarina, encontrei 142 páginas de poemas divididos em partes muito seguras (mas talvez este seja um livro excessivo): Barcos de papel - em que a metáfora marinha é comum; Arquitetura de interiores - em que surgem a casa e seus apetrechos; A outra noite - com toadas de amor; Episteme & epiderme - com poesia e metalinguagem em relevo; Exercícios para a noite e o dia - parte que inclui imagens com a Penélope e outras mitologias; Caderno de caligrafia - com mais poemas que vêm da própria escrita incômoda; e A vida submarina - nova mistura de mitologias poéticas, entre a Penélope e o figo.
Pelas vinte e poucas páginas, o leitor já está submerso pelo verso de Ana MM, até que ela, diretamente, questiona: "Uma coisa que nunca entendi é por que/em geral se acredita que o poema/não é lugar para pensar". A esta altura, já é muito possível responder com Ana que sim, o susto que o poema nos dá significa, na verdade, uma mudança de estado no leitor. O pensar provocado pelo poema é mobilizador. Nunca mais enxergarei este mundo daquele velho jeito. Como pode uma mesa ser mote do poema?
As dificuldades da escrita estão todas lá. Não apenas nos textos que Ana MM provavelmente cultivou e tratou, mas em suas reiteradas reflexões sobre a escrita: "Mas experimente consertar/um poema que estragou". Não se trata de um irrelevante verso branco, mas de um desafio expresso na comparação com outras dificuldades, como reatar amizades arruinadas ou colar xícaras lascadas. É por essas e outras que afirmo que a poesia de Ana MM faz imagens com as coisas da pia, da copa, da sala. Não precisa de grandes relevos ou de célebres acontecimentos para ser grande. É com a jarra, as flores baratas e a banha de porco que ela fia peças delicadíssimas e belíssimas. Veja-se isto, então, num poema intitulado "Camas de solteiro":
sob as flores das camisolas
- pequenas, iguais -
duas solidões
guardadas
lado a lado.
Como tirar de duas camas essa impressão melancolicamente possível? É desse tipo de poema que tiro a ideia de que é preciso exercitar o enxergar/perceber como Ana MM.
Da arte de usar imagens comuns para dizer o espanto vem este outro poema, intitulado "Batata quente":
Se eu te entregasse agora o meu amor
aceso como ele está,
como ele está, pesado,
você o trocaria rapidamente de mão,
você o guardaria um pouco na esquerda,
um pouco na direita,
por quanto tempo antes de o passar adiante?
E os poemas, como esse, mas não apenas desse jeito, seguem tratando de amor e desamor e quase-amor desse modo fino, quase sempre na forma de questionamentos que provavelmente provocam silêncios, em vez de palavras. Para que respostas, se a questão é a alegria? Ana MM continua: "Dispões de palavras suficientes/para o mundo de que dispões, e a tua idade coincide com a idade que tens,/e as horas do dia equivalem/às horas do teu corpo acordado,/e a isso chamas alegria". Mas há outras alegrias no mesmo poema, descrições assim como que justas no que podemos ser e sentir, quando não somos poetas, e não temos a felicidade de saber expressar em versos, como tem Ana MM.
Depois, então, do bem-sucedido primeiro livro, Ana MM renasce pela Companhia das Letras (portanto com mais alcance) na obra Da arte das armadilhas, em que continua delicada em suas versões do mundo. Desta vez, o livro é menor (82 páginas), mas continuam lá o garfo, o amor, o espelho e o refinamento. Já à página 31 é possível desconfiar do título da obra: "A linguagem/sem cessar/arma/armadilhas". Com essas armadilhas, em que, como pássaros, caímos cantando (isso é emprestado a certos versos dessa obra), estão, ainda, Penélopes, Ícaros e mais mitologias, das grandes e das pequenas, das sociais e das particulares. Histórias inteiras, lindamente recopiadas, como em "Cinema":
Encontramos na rua
uma fileira de cadeiras
de um velho cinema
levamos para casa
colocamos na varanda
passamos toda a tarde
bebendo e fumando
assistindo passar
um dia qualquer
Que aspecto dessas imagens (simples?) me arrepiam? Todos. Da imagem curiosa do dia, da fileira de cadeiras, à maneira fina como a poeta vem tecendo a cena, como se me ensinasse a olhar de novo ou a ver melhor um mundo de pequenezas bonitas.
Para terminar, entre tantos, colhi um poema, "Falésias", em que Ana Martins Marques quase me derruba de cima das palavras, lugar que escolhi para viver, muito embora isso só me desoriente mais:
Hoje tivemos
um dia limpo
caminhamos e comemos
em silêncio
buscamos o ponto mais alto
da cidade e falamos
sobre uma casa
que não será construída
falamos sobre essa casa
implantada nas falésias
aberta
as gritos do mar
falamos
dessa casa
cada vez mais improvável
onde nenhum de nós vai morar
voltamos em silêncio
eu pensando em certos bichos
que só se acasalam
com dificuldade
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
7/6/2013
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
A pior crônica do mundo de Luís Fernando Amâncio
02.
Hells Angels de Gian Danton
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