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COLUNAS

Quarta-feira, 1/5/2002
Sem roupa e sem memória
Daniela Sandler
+ de 5100 Acessos

Levei um susto vendo as fotos das pessoas que posaram nuas para o fotógrafo Spencer Tunick, no Parque do Ibirapuera, publicadas na Folha Online na última segunda-feira. Boa parte das imagens é divertida, no mínimo curiosa. O clima é festivo. Algumas fotos mostram as formações idealizadas pelo fotógrafo, todo mundo deitado no chão, em composições interessantes, quase abstratas. Outras mostram as pessoas correndo de uma locação a outra, ou esperando instruções. Até que, no meio da série de fotos – na sétima foto, mais exatamente – o susto. E o nó na garganta.

A foto mostra as pessoas nuas alinhadas em fila, os corpos uns contra os outros, olhando para a mesma direção. O enquadramento é amplo, inclui dezenas de pessoas, o plano de chão à sua frente e a faixa de céu em cima. Por causa da distância, não é possível identificar com clareza as expressões faciais. E, por causa da luz, os contornos de cada corpo em perfil se destacam claramente do fundo ensombrecido composto pelos corpos da segunda fileira. Eu já vi essa imagem antes. Você talvez já tenha visto também.

A foto publicada em tom ligeiro e brincalhão repete as principais características de forma e composição de uma célebre fotografia de mulheres judias em fila momentos antes de sua execução por oficiais nazistas nas proximidades de Rovno, uma cidade ucraniana. A semelhança é perturbadora e, para quem conhece a imagem, imediata.

A intenção não é o que vale

Por certo o fotógrafo da Folha não teve esta intenção. Ele deve ter registrado dezenas de imagens tentando captar o melhor do momento, guiando sua câmera com o instinto rápido que vem do olhar e das mãos apuradas pela prática, guiado ele mesmo pelo chamado das formas à sua frente. Sem pensar, por assim dizer. Suponho que tenha sido seduzido pelo agrupamento linear, o ritmo do alinhamento em perfil, unindo os corpos na repetição de posição e ao mesmo tempo destacando as variações individuais. O editor que escolheu a imagem também deve ter admirado a composição, que tempera seu rigor formal com o inusitado da fila nua, uma espécie de gracejo.

Mas nada disso é desculpa para não fazer a lição de casa. Ignorância não isenta ninguém de culpa. Nosso repertório de imagens e de palavras não é ingênuo, não é neutro, não é atemporal. Pelo contrário: é histórico, enraizado em seu contexto, no modo como as pessoas usam, interpretam e reproduzem seus elementos (sejam figuras, sejam frases).

Em primeiro lugar, a história tem um peso social, ainda que alguns indivíduos acreditem estar livres dele. A menos que todos os historiadores esqueçam, que todos os arquivos e memoriais fechem suas portas, que os livros de história sejam queimados, que as hordas de visitantes dos museus do Holocausto desapareçam – a menos que tudo isso ocorra, haverá uma multidão de pessoas além de mim que irá identificar a similaridade formal descrita acima.

As linguagens são um contrato social

Se o argumento histórico não for suficiente, há uma razão intrínseca à fotografia e demais meios de expressão que derruba a idéia de que imagens são neutras em si mesmas, universais, a-históricas – em outras palavras, de que são “apenas” imagens, imagens “puras”. Essa razão é um pouco mais complexa e merece explicação mais vagarosa – perdoem, portanto, a digressão que aqui segue (e espero que vocês a sigam também). Prometo, ao final, retornar às idéias de partida.

Os meios de expressão em geral foram criados pelo homem por meio de interação social. Tomemos a linguagem verbal. Desvencilhando a história misteriosa e fascinante de sua formação, o lingüista Ferdinand de Saussure descreveu a linguagem como uma espécie de contrato social. Nós “concordamos” que determinadas combinações de sons são correspondentes a determinados significados. Não há nada intrínseco ou essencial ao som “sangue,” por exemplo, que indique necessariamente o líquido que corre em nossas veias. Se houvesse, todas as línguas do mundo – arábicas, germânicas, latinas, orientais, indígenas, etc. – fariam soar as mesmas sílabas, os mesmos tons, diante do fluido vermelho.

Obviamente, assim como as instituições, esse nosso “acordo” sobre a linguagem não se fez num dia. É um processo lento, milenar, histórico, pré-histórico. Não apenas demorou muito tempo, como também dependeu da interação de inúmeros seres humanos, incontáveis participantes.

Finalmente, esse contrato não é premeditado. Ninguém sentou para discutir e criar um sistema de comunicação (bem, algumas pessoas fizeram isso depois, criando códigos secretos ou novas línguas, como o esperanto; já as reformas gramaticais oficiais, discutidas por acadêmicos, são alterações limitadas e em geral baseadas na observação dos usos sociais). A significação das palavras (a semântica) e a sua organização sistemática (a gramática) se desenvolveram por meio de seu uso, de tentativa e erro, de prática.

Uso e contexto histórico

As palavras ganharam ou perderam significados conforme seu uso, que inclui os dois lados: a emissão do termo e a sua interpretação. Esse “uso” não é simplesmente o mundo etéreo dos livros, poemas e tratados teóricos. Tão ou mais importante é uso cotidiano da linguagem, enraizado na experiência material ou emocional dos membros de uma sociedade. Eventos concretos modificam o entendimento de certos termos. Um exemplo são as gírias. Às vezes, indivíduos excepcionais influenciam seu idioma – como Shakespeare, considerado o pai do inglês moderno, língua que injetou com neologismos e palavras inspiradas no latim.

Mas nem sempre essas transformações de significado são benignas. Certas palavras e expressões acabam sobrecarregadas por seu contexto social, político e ideológico. Por conta de seu uso, alguns de seus significados preponderam sobre os demais, e novos significados superam os originais. Além disso, um emaranhado de conceitos e fatos se agrega a essas palavras, como folhas e detritos presos num tronco à beira do rio. Seu uso, por conta dessa carga, carrega severas implicações políticas e éticas.

Na Alemanha, ninguém usa a palavra “Fuhrer”, que quer dizer líder, porque ela evoca Hitler. A não ser, talvez, grupos neo-nazistas e historiadores revisionistas. Segundo uma professora de alemão, “quando você lê a palavra “Endsieg” (vitória final) em um texto, pode ter certeza de que foi escrito ou traduzido por um não-alemão que desconhece essa convenção. Nenhum alemão escreveria “Endsieg”, mas usaria um sinônimo.” “Endsieg” era uma das palavras de ordem de Hitler, o objetivo de suas incursões militares.

O peso histórico é sentido em outras línguas. Aqui nos Estados Unidos, não se escreve “final solution” (solução final), a não ser que a expressão indique o plano de exterminar os judeus concebido pelo regime de Hitler. Se o contexto for outro, diz-se “solução definitiva”, por exemplo, ou “resposta final”.

Linguagens não são feitas só de palavras

Esse “contrato social” – e histórico – se aplica a formas de comunicação não-verbal também. A música, a pintura, a escultura, o drama, a dança, os gestos – ainda que essas linguagens sejam em parte, ou à primeira vista, intuitivas, elas também são resultado de um acordo coletivo desenvolvido por meio de sua prática ao longo do tempo. São regidas e produzidas por convenções, ainda que essas convenções sejam quebradas ou questionadas. Até mesmo a fotografia, ainda que, para muita gente, foto seja uma “janela” imediata para o mundo. Mas a janela só funciona porque nosso olhar sabe como usá-la.

A fotografia deve mais à pintura do que se imagina. O olhar ocidental está acostumado às regras da perspectiva, que dão ao registro pictórico a aparência “realista” e “natural” de reprodução da realidade. Mas a perspectiva é um recurso inventado. Antes de seu desenvolvimento (na Renascença), ou em culturas não-ocidentais, as pinturas, desenhos e gravuras não obedecem à proporção e alinhamento regidos pelos pontos-de-fuga.

É graças aos séculos de representação realista – durante os quais se aprimoraram, além da perspectiva, a reprodução da cor, da luz, da forma – que nossos olhos sabem ler imagens bidimensionais como representações do espaço. A fotografia aperfeiçoou essa técnica – e superou-a também. Mas a fotografia de que falo aqui, o fotojornalismo, se enquadra na tradição realista, ainda que muitos repórteres fotográficos brinquem com enquadramentos inesperados e poses inusitadas.

A fotografia, assim como a língua, assim como as outras artes, é resultado de um processo de construção e reconstituição social. Está sempre ancorada em seu passado e nos seus usos presentes. Está sujeita à memória, às associações de significado, à evocação de outros símbolos, de outros sinais similares. Está sujeita à interpretação de uma leitora como eu, e sujeita ao diálogo ou debate – nesta coluna, numa carta ao ombudsman, no boteco, num livro, numa sala de aula.

Responsabilidade – a deles e a nossa

Talvez daqui a duzentos anos as pessoas tenham voltado a usar a palavra “Fuhrer” de maneira benévola. Talvez daqui a duzentos anos o nazismo tenha se tornado suficientemente distante, assim como outros eventos traumáticos e brutais se tornaram; petrificados, inertes: a Inquisição, a escravatura. A maioria de nós visita os pelourinhos das cidades históricas e não sente calafrios. Mas essas especulações não vêm ao caso. Não só porque são hipotéticas, mas por estarmos inevitavelmente presos ao momento presente.

Sendo assim, qualquer editor fotográfico e qualquer fotógrafo de um meio de comunicação de massa tem a responsabilidade de fazer o dever de casa e conhecer a história de seu meio (bem, idealmente, de conhecer História, ponto). Não apenas de recitar os nomes de seus heróis, a história gloriosa de seu ofício ou de sua arte, aquela dos livros de centro-de-mesa. Falo também da história anônima; das imagens de grande circulação; da cultura e imaginário popular; de registros técnicos, áridos, policiais; das figuras documentais dos livros e dos arquivos dos jornais (destino, aliás, da maior parte das gloriosas imagens jornalísticas, que vai virar arquivo, e não livro).

A excelência técnica ou estética dos fotógrafos não os isenta de sua responsabilidade social – em especial num jornal de grande porte e circulação. Muita ênfase é colocada nesse tipo de talento ou competência, assim como muita ênfase é colocada no talento ou competência dos repórteres que caçam notícia, o heróico e combativo repórter “de rua”. Essas qualidades são importantes, sim, essenciais, mesmo; mas não são suficientes. Não se dá atenção ou valor a talentos menos bombásticos, ao conhecimento histórico, à consciência ética, às faculdades que vão além do registro imediato e pioneiro. E, já que não se dá atenção ou valor, também não se cobra nem se dá condições para que elas sejam cultivadas. Como esperar que alguém faça a lição de casa, se todo mundo está tão ocupado fazendo o jornal de amanhã? Enquanto for assim, eu, de minha casa, tenho pretexto e razão para fazer o meu dever. E você também.


Daniela Sandler
Rochester, 1/5/2002

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