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Quarta-feira, 23/10/2002
A Menina do Presídio
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 4500 Acessos

"É mais fácil distribuir a patente de monstro a certos autores atormentados por obsessões, que ver o fundo humano e universal que surge dos seus paroxismos". (Mário Praz)

Chega até nós, editado pela José Olympio, em tradução de Mauro Pinheiro, o romance "A Filha do Governador", da escritora francesa Paule Constant.

Num cenário que nos faz pensar nas pinturas românticas de noturnos oceanos tempestuosos carregando indefesas embarcações, Chrétienne, uma menina de sete anos, desembarca ao lado dos seus pais em Caiena, na Guiana Francesa. É sua primeira memória, num conjunto de fatos que a marcariam para sempre. A partir daí "ela começou a registrar tudo com uma intensidade dramática que não deixava espaço para mais nada". A sua memória seria fixada por detalhes tão monstruosos, por cores tão excessivas e sons tão discordantes, que acabaria por lhe render dores de cabeça violentas, semelhantes às "que experimentavam as crianças hidrocéfalas".

Chrétienne constrói sua memória a partir do inferno no qual é jogada aos sete anos de idade. Seu pai é um herói da guerra, agora encarregado de administrar um presídio de condenados a trabalhos forçados e à morte, em Caiena. Sua mãe, uma enfermeira apelidada de Mãe de Deus, tem como principal objetivo na vida tornar-se mártir religiosa.

No romance é acentuado o gosto pelo disforme desenvolvido pela menina, fruto de sua relação com um pai odiável, com uma mãe terrivelmente mergulhada no prazer mórbido e místico, que a destruição causada pelas doenças fabrica, e como resultado do convívio com criminosos contratados para sua educação.

Morando num enorme casarão colonial, cujas torres eram frequentadas por urubus que passavam o dia à espera de uma carne podre e fedorenta, Chrétienne crescia convivendo com histórias e imagens terríveis que desfilavam diariamente à sua frente. Essas imagens (por exemplo, quatro cabeças humanas guardadas dentro de vidros, com etiquetas que diziam que elas representavam as quatro raças humanas) paralisavam-na, tomando sua mente, fazendo nascer um grupo de terríveis fantasias que a levavam ao desespero. Uma destas cabeças remete-nos imediatamente à pintura dos decaptados de Géricault.

Para cuidar da casa e da educação de Chrétienne, sua mãe escolheu uma equipe que consistia de nada menos que a nata dos renegados e dos assassinos. "Dê-me aqueles que ninguém quis (...) os piores". Queria formar uma grande família com eles e acreditava que assassinos se dão bem com crianças."Principalmente os assassinos. Não empregue nunca ladrões, só os assassinos são muito gentis com as crianças".

Foi através de um deles, denominado São João, que a menininha "aprendeu de uma só vez os verbos da primeira conjugação com PEIDAR".

A escolha dos criminosos não espantava a menina. Ao contrário, Chrétienne, que "gostava dos adultos, como uma espécie de animais que julgava perigosos, porém desejáveis", esperava muito da coabitação com os presidiários. Ao ser designado um deles para sua educação, ela viu aberta a possibilidade de realizar um desejo: "Possuir um escravo, pois ele seria dela à FORÇA, realizar com um adulto aquela relação de dominação absoluta que ela tinha com os animais, COMANDAR enfim, isso a encantava. (...) ela se perguntava como iria marcá-lo".

A mente de sua mãe era marcada pelo delírio religioso e pelo amor às enfermidades graves. Enquanto enfermeira gostava menos de curar que de tratar. Chegando mesmo a anunciar numa fase de sua vida sua perversa vocação: "eu quero ser leprosa". Assim, cultivando o auto-sacrifício em busca de uma pretensa santidade, debruçada na varanda "observava o presídio que apodrecia. Sabia que a lepra estava lá e respirava forte o ar úmido que a fazia tossir, retendo no fundo dos seus pulmões a pestilência quente como uma semente com a qual queria infestar o seu corpo". Portanto, nela, a religião não era outra coisa que uma forma embrionária de satisfação mórbida.

Seu pai não era melhor, sendo a alegria para ele algo dilacerante. Por sua influência Chrétienne vivia dizendo que "a felicidade não é a vida". Seu pai odiava as mulheres, que traduzia em desejo e concupiscência. "Ele semeava atrás de si cacos de garrafas onde ele gostaria que suas admiradoras se fizessem sangrar os pés". Sua relação com a filha era depreciativa: "Ela não está muito feia? Seus traços não são grosseiros demais?" Chrétienne, por sua vez, no que diz respeito ao seu próprio corpo, passou a invejar os mutilados de guerra.

Uma espécie de fascínio da corrupção inundou a vida da menina. Chrétienne nos seus sete anos de idade já desejava ver seus pais mortos e, por vezes, dizia às pessoas que não era filha deles, que a haviam comprado num circo que apresentava monstros ao público.

Mas vivendo ao lado daqueles assassinos que a educariam, Chrétienne sentia e desenvolvia em si uma ampla liberdade. Longe de querer conviver com as honoráveis famílias guaineneses, perambulava feito mendiga por toda a cidade, guiada apenas pelo seu humor. "As honoráveis famílias guaianeses não reconheciam em Chrétienne a filha do governador do presídio de Caiena, mas sim como aquilo que o presídio, que eles detestavam como uma injúria à sua terra, pode produzir de pior. Elas não associavam a menina às instâncias dirigentes tão poderosas da administração penal, mas ao refugo da prisão. Só havia um lugar capaz de engendrar crianças assim, o presídio. Aos seus olhos, Chrétienne era, embora isso não existisse em Caiena, uma criança do presídio".

Num perigoso ambiente onde misturam-se verdadeiros delírios insanos e fantasias místicas, a menina acabou por desenvolver uma agressividade espantosa, digna de um dos assassinos do presídio que cuidam dela. Quando era perturbada dizia em seu delírio assassino: "Eu acabo com você; eu te mato; te estrangulo; te esgano; te furo com minha faca; te faço explodir; te jogo no lixo; te infecciono; te corto; eu te lanço aos tubarões".

O romance se constrói através de um jogo inteligente entre preservação da memória e mergulho no grotesco. Como se o mundo do prazer, do belo e da felicidade nada pudessem deixar de marca nos humanos. O verdadeiro sentido da memória estaria nos graves acidentes, nas terríveis experiências (da fantasia ou da realidade) e no desencanto frente à vida.

A autora faz da descrição da natureza que envolve a cidade de Caiena o reforço do sentimento do grotesco do mundo dos criminosos, dos pais e mesmo de Chrétienne (essa espécie de "Alice no país dos demônios"). Uma paisagem lodosa e apodrecida convive com as feridas purosas de doentes, com a desintegração dos sentimentos e com um grupo de decomposições orgânicas (e sociais) que atingem a todos.

É a criação da conjunção destes universos que faz da obra de Paule Constant uma fascinante viagem ao centro do mundo dos sentimentos excessivos, do mundo do terror que cria nossa fantasiosa e desintegrada consciência da memória. Sua literatura grava-se de tal forma em nossa mente que nos interrogamos sobre as razões do poder das suas imagens. Mas já que a autora levanta a questão por nós, deixemos que ela responda.

"Como se fixam as imagens? Como o coração reconhece aquelas que permanecem? Num oceano de lama e de infelicidade, no meio de lágrimas e de gritos, estas lhe haviam sido dadas e lhe haviam salvado a vida".

No seu romance Pauline Constant consegue extrair beleza e poesia de matérias geralmente consideradas ignóbeis e repugnantes. Produzindo calafrios nos leitores, ela transforma o horror numa fonte de deleite, tornando o horrível uma parte fascinante da beleza. O valor de "A Filha do Governador" encontra nas palavras de Chrétienne sua melhor expressão: "Quanto mais você fede, mais eu te respiro. Tua desfiguração é requinte aos meus olhos".

Para ir além



Paule Constant nasceu em Gan, França, em 1944 e passou sua infância em Caiena, Guiana Francesa, onde seu pai trabalhou como médico. Fez doutorado em literatura, especializando-se em literatura francesa do século XVII, na Universidade de Aix-en-Provence, cidade onde reside atualmente. Ganhou o prêmio Goncourt, em 1988, com o romance "Confidência por Confidência", publicado no Brasil pela Editora Bertrand Brasil. Com seu livro "White Spring", ganhou em 1990 o Grande Prêmio da Academia Francesa.

Paule Constant
A Filha do Governador
Trad. Mauro Pinheiro
Editora José Olympio
192 págs.
R$ 23,00


Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 23/10/2002

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