ENSAIOS
Segunda-feira,
23/8/2004
Abstrações exatas de Paul Valéry
Pedro Maciel
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Paul Valéry (1871-1945) é considerado, segundo a
classificação de Ezra Pound (inventores, mestres, diluidores,
etc.) como um mestre da linguagem que Mallarmé inventou. Edgar
Allan Poe e T. S. Eliot são os outros que norteiam o ideal estético de Valéry. Mas a "lógica imaginativa" de Leonardo da Vinci foi o que impregnou sua consciência crítica. O renascentista da Vinci serviu-lhe como modelo. Segundo Valéry,
Leonardo, "mestre de seus meios, este possuidor do desenho,
das imagens, do cálculo, tinha encontrado a atitude central a
partir da qual as empresas do conhecimento e as operações da
arte são igualmente possíveis, as trocas felizes entre a
análise e os atos singularmente prováveis: pensamento
maravilhosamente excitante". Valéry anotou no prefácio
a Leonardo Poe Mallarmé: "Pela abstração constrói o homem". Os três são descritos como mestres na arte da abstração.
Valéry também manifestou fascínio pelos clássicos como
Virgílio, românticos como Goethe, simbolistas como Verlaine,
modernos como Marcel Proust.
Valéry era um construtor, um poeta-crítico, um pensador da
poesia como meio de desvendar o mundo desconhecido. O que é o
conhecer? Perguntava o poeta do rigor intelectual e da
sensualidade. Estudioso das ciências exatas, projetou idéias
artísticas associadas à linguagem da matemática e da física.
Os críticos o classificam como um poeta-filósofo. Talvez
porque suas reflexões fragmentárias se aproximam dos pré-
socráticos como Zenão de Eléia, que inspirou os versos de "O
Cemitério Marinho", ou Heráclito, cuja linguagem se aproxima
dos poetas.
Eupalinos ou O Arquiteto - Escritos de circunstância, de
1921, não é exatamente um livro de arquitetura. Valéry
reflete sobre o processo de criação arquitetônica. Cria um
clássico universal a partir de um diálogo imaginário entre
Sócrates e Fedro. "Dialogue des morts", era como seria
chamado o texto em sua primeira edição. Fedro e Sócrates
habitam as vezes do inferno. Pairam sobre eles a idéia da
reflexão dos mortos. Uma idéia assombrada. Conversam sobre as
limitações e emoções de uma vida que poderia ter sido. Fedro,
o discípulo irônico, faz saudações ao mestre. Sócrates, às
vezes não responde: "Espera. Não posso responder. Bem sabes
que nos mortos a reflexão é indivisível. Estamos agora muito
simplificados para que uma idéia não nos absorva até o final
de seu curso".
Sócrates e Fedro apresentam-se com almas desnudas, sem
sombras de nuvens, discutem as banalidades dos vivos e as
estranhices dos mortos. Fedro questiona sobre a idéia do
eterno entre os viventes: "Os mais grosseiros tentam
preservar até os cadáveres dos mortos. Outros constróem
templos e tumbas, esforçando por torná-los indestrutíveis".
Sócrates responde, contestando-o: "Loucura! Ó Fedro;
claramente o percebes. Mas os destinos decidiram que entre as
coisas indispensáveis à raça humana figurassem alguns desejos
insensatos. Não haveria homens sem o amor. Nem a ciência, sem
absurdas ambições..."
Fedro expõe as idéias de seu amigo Eupalinos, lembranças das
construções de Pireu. Eupalinos dizia que "não há detalhes na
execução". Talvez o arquiteto Mies Van Der Rohe tenha se
inspirado nesta frase ao afirmar que "Deus está nos detalhes",
ou ainda na frase de Voltaire que dizia que "a poesia é
feita apenas de belos detalhes". Apesar de que Deus não
existe para Paul Valéry. Os diálogos são, na verdade,
pensamentos do poeta francês e não dos filósofos gregos ou do
arquiteto Eupalinos, que mais tarde descobriu-se ser um
empreiteiro de obras do aqueduto de Atenas.
Valéry descreve a arquitetura e a música como artes possíveis
de produzirem espaços, corpos que não estão limitados ao
ângulo da visão. A música constrói no nosso corpo um espírito
de liberdade. Às vezes ascendemos além do nosso próprio
corpo. Esquecemos até mesmo das sensações do nosso ouvido. Já
o arquiteto cria um corpo no qual habitamos, vivemos por
dentro dos labirintos projetados por outro alguém ávido de
tempo. O arquiteto substitui a realidade pela fábula. "Logo é
razoável pensar que as criações do homem se realizam, ou bem
em função de seu corpo, e aí está o princípio que chamamos
utilidade, ou tendo em vista sua alma, e aí está o que ele
persegue sob o nome de beleza..." Afinal, diz Sócrates, os
deuses não devem permanecer sem teto, e as almas, sem
espetáculos.
Em "Histórias D'Anphion", o poeta confessa a influência que a
arquitetura causou no início de sua formação. O ato de
construir significa para Valéry o propósito mais nobre do
homem. "Um edifício terminado nos expõe, num único olhar, uma
soma das intenções, das invenções, dos conhecimentos e das
forças que sua existência implica; ele manifesta à luz a obra
combinada do querer, do saber e do poder do homem". Sócrates
gostaria de ter sido um arquiteto, um construtor que, "primeiro, desdobraria todas as questões, desenvolveria um método sem lacuna. Onde? Por quê? Para quem? Para quê? Quais as dimensões? E, assaltando de todo lado meu espírito, eu determinaria, no mais alto nível, a operação de transformar pedreiras e florestas em edifícios, em equilíbrios magníficos..."
É possível imaginar os templos ou teatros criados no estilo
socrático. Sócrates e seu discípulo Fedro conversam à beira
de um tempo que não mais existe, à margem das sombras altas
de um céu azul de fantasmas; e tudo que eles disseram é
apenas um jogo natural do silêncio de um outro mundo. "Nisto,
consiste, rigorosamente, a imortalidade".
Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no caderno "Idéias/Livros", do Jornal do Brasil, em junho de 1996.
Pedro Maciel
Belo Horizonte,
23/8/2004
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