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COLUNAS

Segunda-feira, 15/12/2003
Um brasileiro no Uzbequistão (IX)
Arcano9
+ de 5100 Acessos


O Shahr-i-Zindah é um dos lugares mais bonitos de Samarkand

Samarkand, 09.06

Outro dia de muito, muito calor e ar seco. Segui as indicações do mapa, caminhando por uma avenida que saia do bazar de Samarkand, circundando um cemitério, ao meu lado esquerdo. O cemitério tinha uma colina e era possível ver de longe as tumbas refletindo o sol.

"- Ei, ei!", me disse, desde o outro lado da rua, todo agitado, um jovem de uns 16 anos vestido modestamente. Não estava muito no espírito de conversar e, para falar a verdade, fazia tanto calor que se eu parasse para tentar usar meu russo, cozinhava os miolos. Fingi não ouvir.

"- Shahr-i-Zindah! Eu sei onde é! Quer um guia? Eu sei!"

Depois de uns 500 ou 600 metros, ele desistiu de me perseguir, e me deparei com um portal. A entrada de 1.900 sums me autorizava a subir uma escada a céu aberto. No transcorrer do que calculei serem uns 80 degraus, as construções seculares, finamente trabalhadas, se faziam anunciar. Subi lentamente. A cada degrau, um suspiro: A Tumba do Rei Vivo se abria para mim. Um universo azul, em todos os tons, texturas e dimensões, flutuando livremente entre o céu sem nuvens e a terra seca.

O Shahr-i-Zindah, ou "Tumba do Rei Vivo" em tadjique, é o local onde Tamerlão e Ulugubek, seu neto, enterraram muitos de seus familiares e amigos mais queridos. Trata-se de uma rua de mausoléus. Uma rua estreita e com uns 100 metros de comprimento, em que cada uma das "casas" tem um portal esculpido com lindos azulejos azuis, moldados, remoldados, esculpidos e pintados com alegorias de plantas, flores. Também há as composições abstratas, geométricas, matemáticas, cósmicas. Os mais belos trabalhos em azulejo que existem no mundo? Reflito enquanto fico paralisado logo no primeiro mausoléu. Depois de seu portal, cada mausoléu apresenta uma câmara com um pequeno domo. No chão, a caixa de pedra retangular, deitada, abrigando os restos mortais do seu habitante. A sombra faz tudo ficar fresco e agradável, um oásis no clima sufocante. O domo ecoa as minhas palavras de prazer: que lugar maravilhoso. Mas me assusto em seguida quando as sílabas despertam uma família de morcegos que, espertamente, fez seu lar no teto curvo.

A escolha deste lugar para abrigar os mausoléus tem um bom motivo: trata-se, certamente, da área mais sagrada para os muçulmanos de Samarkand. Caminhando pela rua de mausoléus, se chega à entrada de uma galeria, que é guardada por um zelador. Sentado em bancos ao redor da entrada, em uma área coberta, ele se reúne com outros visitantes para rezar. As palmas das mãos voltadas para cima, os olhos fechados. Sem incomodar, com receio de estar fazendo algo proibido, adentro a galeria. Lá no fundo, mais pessoas rezando, ao redor do que parece ser uma tumba. Aqui está enterrado um dos primos do profeta Maomé, Qusam Ibn-Abbas, aquele que se acredita que trouxe a crença em Alá para esta região do planeta. O santuário é uma das mais antigas edificações da cidade, mas o fluxo diário de visitantes exigiu que fosse reformado para continuar vencendo o teste dos tempos.

A tumba de 18 metros de Daniel, o profeta-gigante

A rua de mausoléus fica já a caminho da saída da cidade. Continuando pela estrada, caminhei por mais 1,5 km além do cemitério, passando pelas escavações arqueológicas de Maracanda - a Samarkand conquistada por Alexandre, o Grande. Lá perto, fica o curiosíssimo mausoléu do profeta Daniel, da Bíblia, do Talmude e do Corão. Daniel teve seus restros trazidos para Samarkand por Tamerlão - o que, quem sabe, tenha sido uma péssima idéia do ponto de vista econômico. Isso porque existe uma lenda que diz que o corpo de Daniel continua crescendo, mesmo depois de ele ter morrido. Por isso, seu caixão, que pode ser visto por todos que forem ao santuário, hoje tem nada menos que 18 metros de comprimento. Acredita-se que seja mais do que suficiente para acomodar o cadáver do profeta, pelo menos por hora.

Ainda na estrada, o passeio me levou ao lugar escolhido por Ulugubek para seu famoso observatório. Ulugubek, que sucedeu Tamerlão no controle do vasto império, pagou com a vida seu amor pelas ciências. Em 1420, ele abriu em Samarkand a primeira "universidade" da região, na madrassa que levou seu nome, no Registan. Mandou construir também um gigantesco astrolábio, com a ajuda do qual mapeou 200 estrelas. Também fez cálculos precisos sobre a duração do ano, e hoje é reconhecido mais pelo seu legado como astrônomo do que como o principal herdeiro do seu temido avô. Mas, no seu tempo, o hobby de Ulugubek começou a chamar a atenção de puritanos islâmicos, que perceberam que o líder preferia ficar suspirando para suas estrelas em vez de estudar o Corão. Em um eco de um conhecido episódio ocorrido em Roma com o imperador César, foi o próprio filho de Ulugubek, Abdul Latif, que organizou seu assassinato por decapitação, em 1449.Em seguida, seu amado observatório foi apagado da face da Terra. O que sobrou - encontrado por arqueólogos apenas em 1908 - foi uma das peças do astrolábio, curva e inacreditavelmente imensa (uns 30 metros), que é exibida na colina do observatório, ao lado de uma estátua do astrônomo. No dia em que estive lá, talvez como uma poética ironia, a Lua era visível no céu azul, coroando a estátua, como uma auréola na cabeça de um santo mártir. Um mártir das estrelas.

Ulugubek e a lua
Ulugubek foi enterrado com Tamerlão, no centro de Samarkand.

* * *

I stayed here a long time, at once moved and unsettled. A man entered and prayed for a while, then went away. The cries of children sounded faintly outside. Under the decorated brillance of the cupola, the simplicity of these gravestones was dignified and rather simple: a recognition of the littleness even of this man, and the passage of time. Beside him lay his gentle son shak rukh; at his head, his minister; under a bay, his sheikh. His grandson Ulug Bek was at his feet.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
A primeira coisa que vem à cabeça é que está faltando alguma coisa. Na fronteira da parte uzbeque com a parte russa e mais modernizada da cidade, o mausoléu Guri Amir, com sua cebola-cúpula turquesa, se apresenta no fim de uma esplanada plana. Parece pequeno demais. Algumas ruínas cercam a edificação, mas, ainda que levando em conta o que o complexo pode ter sido um dia, ela parece ser muito menor do que as madrassas do Registan, ou que a mesquita Bibi-Khanyn, ou que a maioria das mesquitas e madrassas que vi em Bukhara. O lugar tem um quê de tranquilidade interiorana: as ruínas com uma roseira aqui e ali, algumas borboletas e abelhas, o sol da tarde refletindo nas pedras, um ventinho mais fresco. Sei que a noite virá, e que talvez a brisa já a esteja anunciando. Mas o mausoléu e sua moldura parecem delimitar uma área em que o tempo passa mais devagar. Como se hesitante em se afastar mais e mais das glórias passadas.

O ouro é eterno, e mantém essas glórias vivas.

O ouro usado nas paredes do salão principal onde parecem estar as tumbas de Tamerlão e Ulugubek, recobrindo o interior de seu domo, poderia ser usado para dar almoço â população da cidade inteira. Durante uma restauração, em 1970, foram usados 2,5 kg do metal. Nas paredes de mármore, formas geométricas hipnóticas novamente me detiveram por um bom tempo. No centro do salão, as caixas de pedra onde estariam descansando os heróis do Uzbequistão. As pedras são apenas marcas, porém. Depois de negociar com a zeladora do mausoléu, ela me leva para o lado de fora, onde uma escada me conduz a uma sala imediatamente embaixo do rico salão. Lá estão verdadeiras criptas, em uma câmara bem simples, com tijolos nas paredes. O sarcófago de Tamerlão é de jade escuro e com uma rachadura. A cicatriz é do século XVIII, quando um líder persa tentou transportá-la para o atual Irã e, descuidado, o deixou se quebrar.

Tamerlão, durante sua vida, construiu um pequeno mausoléu onde pretendia ser enterrado na sua cidade natal, Shakhrisabz, a algumas horas de viagem de Samarkand. Mas, segundo reza a lenda, quando ele morreu - em meio a uma campanha para conquistar a China, nas estepes do Cazaquistão - era inverno e as estradas para Shakhrisabz estavam cobertas de neve. Era 1404. Sendo impossível transportar o corpo do conquistador para sua cidade, optou-se por enterrá-lo no mausoléu que ele estava construindo para alguns de seus netos.

Uma das paredes folheadas a ouro do mausoléu Guri Amir
"- Quer ver algo que você não vai acreditar?", perguntou a zeladora russa em inglês, com seu forte sotaque, quando estava saindo da cripta subterrânea. Dessa vez, não tive que pagar. Do lado de fora, ela apontou para um túnel que, com suas escadas, levava a uma sala simples - na verdade, um corredor com uns dois metros de altura e teto curvo, toda de tijolos. "Este é o início da rede de túneis. Esta parede é nova, não estava aqui originalmente. Além dela, estão os túneis, que ligam o mausoléu ao Registan e até o Shahr-i-Zindah. Eles nunca foram abertos, porque há partes que são perigosas, nunca foram restauradas, outras estão bloqueadas. Mas os túneis estão aí." Não sei se ela falou a verdade. Duvidei muito. Seriam túneis de quilômetros, quilômetros por baixo da terra. Ainda assim, a zeladora me tentou com a idéia de que Samarkand, e o Uzbequistão, tem coisas que eu, ou nenhum turista, vai ver ou saber se são reais. Um mundo de sombras, de mistérios. E o que ficamos sabendo não é metade do que há por saber.

O dia terminou com melancolia. Minha despedida dos meus dois amigos franceses foi em um restaurante na avenida em frente ao Registan. Degustamos um laghman - um macarrão grosso típico uzbeque, de cor branca, que vem submerso em sopa bem quente, servida em uma taça. Para equilibrar a temperatura, pedimos cervejas russas. Noite de céu estrelado, o trânsito das vans de lotação levando constantemente as pessoas para o centro da cidade. Amanhã, volto a ficar sozinho, para o fim da minha jornada. Jean-Marie e Olivier ainda estão no início, vão para as montanhas do Tadjiquistão, para outro povo, outro universo. Eu, por outro lado, vou para a terra proibida do Uzbequistão, no extremo leste do país. O lar dos extremistas islâmicos, da repressão política em grau mais elevado, do medo das autoridades. Estou empolgado. Quero comprovar se o que ouvi falar do Vale de Fergana tem a ver com a realidade.

(Continua aqui)


Arcano9
Miami, 15/12/2003

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