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Segunda-feira, 7/6/2004
O exercício da solidão
Lucas Rodrigues Pires
+ de 6800 Acessos

Solidão, amor na velhice, voyeurismo? Todos eles são temas encontrados no filme de estréia de Marcos Bernstein, O Outro Lado da Rua, mas sem dúvida: o que é ressaltado na narrativa é a solidão no fim da vida. Na primeira metade do filme, Bernstein realizou um belo tratado da solidão; na metade final, ele aponta caminhos para fugir dessa solidão com o desenvolvimento de um amor na terceira idade.

Fernanda Montenegro é Regina, aposentada moradora de Copacabana que vive sozinha com seu cachorro (algo muito próximo do que ela era em Central do Brasil, do qual Bernstein foi co-roteirista). Esporadicamente busca o neto na escola, mas recusa-se a maiores contatos com a família porque seu ex-marido - com quem parece ter havido uma desavença séria - passou a morar com o filho. Dentro de um programa da polícia ao estilo disque-denúncia, ela faz parte de um grupo de velhinhos que são informantes da polícia. Esta tarefa ela exerce com grande dedicação, o que envolve freqüentar inferninhos para descobrir aliciadores de menores e cafetões. Mas também ela executa a lição através de sua janela - observando a vida cotidiana alheia de seu apartamento -, fato que nos remete imediatamente a Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Enfim, essa é a forma de Regina enganar a velhice e o ócio permanente que a idade lhe traz.

Exatamente num desses exercícios de voyeur que ela vê algo que irá mudar o vazio do seu cotidiano. Certo dia, numa de suas observações noturnas de binóculo pela janela da sala, ela se detém em um dos apartamentos do prédio do outro lado da rua. Nele, ela pôde enxergar nitidamente um homem dar uma injeção em uma mulher. Crê ser um assassinato e aciona a polícia. A mulher realmente morreu, e ele, de nome Camargo (Raul Cortez), é um juiz aposentado, ex-secretário de Justiça. Diante de um ilustre, a polícia não acredita nela e pede para que não continue seu "trabalho" de informante. Desencorajada, mas persistente, ela resolve fazer uma investigação por conta própria, e cria situações para conhecer o suspeito, que se interessa por ela e inicia uma conquista. Nasce um sentimento entre ambos e, conforme ele vai se intensificando, a verdade sobre aquela morte vem à tona (uma morte consentida devido a um câncer terminal), ela se sente confortada ao seu lado, mas a sua verdade ainda não foi revelada.

Dada as linhas gerais da história, torna-se imprescindível falar sobre a maneira como Bernstein concebeu as cenas, os enquadramentos e uniu conteúdo e forma de maneira exemplar. Desde o início temos a solidão sendo delineada na vida de Regina. Não apenas o fato de ela morar sozinha, não ter muito contato com a família e amigos e se recusar a fazer parte do clube da terceira idade que se formou na praça vizinha. Vemos ela negar essa solidão, mas, ao mesmo tempo, a câmera reafirmar a todo instante seu estado de isolamento. A cena de abertura mostra bem esse deslocamento. Regina acorda e a câmera está estática do lado esquerdo da cabeceira, com a porta do quarto ao fundo. Ela se levanta, sem vermos seu rosto, e sai pela porta. Ouvimos seus passos, ela falar com o cachorro, mas a câmera não sai do quarto, permanece imóvel. Ela deixou o enquadramento, mas a câmera não quis saber dela. Permaneceu ali, filmando a cama vazia, porta aberta, sem se importar com a protagonista. Regina está solitária como esse enquadramento dela sem ela própria no quadro. Ela está fora do plano, isolada mesmo dos espectadores.

Não só nessa cena, mas também pelos espaços filmados. A toda hora Regina é mostrada em seu apartamento, numa câmera pouco móvel e absolutamente contemplativa. Quando se usa o plano-seqüência (cena filmada sem interrupções, sem o auxílio de cortes na montagem) estático, como é o caso corriqueiro em O Outro Lado da Rua, quer-se chamar a atenção para a temporalidade, pois nele não há possibilidade de sua quebra. O tempo é único, linear, contínuo, o que torna esse plano o ideal para representar um estado de solidão, o tempo morto da velhice daqueles que não tem mais o que oferecer à sociedade urbano-capitalista em que a produtividade desenfreada é a constante. Essa câmera quase parada expõe Regina a sua solidão, que se acentua pela quase ausência de diálogos e palavras. Quando se é só, falar para quê? E com quem? (Não é aleatório o fato de o contato dela com o mundo, nesse primeiro momento, ou seja, antes de conhecer Camargo, ser praticamente todo feito por telefone e jornal).

A solidão de Regina é ilustrada em outro momento: o primeiro quando ela impede um assalto num banco e, desesperada, passa a abordar as pessoas nas ruas sem que ninguém lhe dê atenção. Aflita, pega o celular, disca um número e começa a desabafar com alguém. Em seguida, temos um corte e vemos (ouvimos, na verdade) sua voz ressoar na secretária eletrônica de sua própria casa, onde só estava o cachorro. Na mesma seqüência, a solidão é reiterada quando ela desliga o celular em meio à multidão que passa por ela. Há um corte e temos Regina sozinha, no mesmo local, ruas e calçadas vazias, nenhuma alma à vista. A câmera sobe enquanto ela caminha para o meio do cruzamento, acentuando ainda mais seu estado de abandono. Claro que esta cena materializa um sentimento da personagem. Ela está no meio de uma multidão, mas no fundo está sozinha. Solidão na multidão, conceitos paradoxais.

Definido este estado de solidão da personagem, será a relação com outro personagem que fará com que dentro dela nasça uma necessidade antes não desabrochada. À medida que vai conhecendo Camargo, percebe que a vida não é apenas aquilo. Mesmo em sua idade, algo em torno de 65, 70 anos, o amor é possível e ela pode e deve amar. Eis a parte que introduz o drama e a conseqüente transformação no clímax (sim, todo filme tem que trazer um conflito que levará a uma transformação, mesmo que seja a manutenção de um estado inicial). Como lidar com um amor que nasceu entre ambos, mas que deve enfrentar uma verdade não revelada ainda - ela quem viu ele matar a mulher e que chamou a polícia. Como ele reagirá quando souber disso?

Fazer um filme que fala sobre o amor entre duas pessoas na velhice é como andar num fio de navalha. Primeiro porque o mundo do amor parece, hoje, restrito ao da juventude ou no máximo ao da fase adulta, madura, mas nunca na terceira idade. Assim, retratar dois velhos descobrindo o amor sem soar piegas ou nonsense é algo desafiador. Segundo: quando os corpos não são um atrativo para uma cena de amor e/ou sexo (como é sempre que um casal jovem e bonito se relaciona), torna-se mais delicada a sua representação. Para cair no ridículo seria um pequeno passo. Por esses dois obstáculos Marcos Bernstein ultrapassou, graças aos excelentes desempenhos dos dois atores veteranos.

Ao mesmo tempo que se faz delicada a filmagem de um tema assim, por outro lado o sentimento entre os personagens é reforçado justamente por essa ausência do sex appeal. Assim, o que se realiza soa mais real, mais sensível, mais até, digamos, puro, pois envolve uma aura de amor verdadeiro, amor em estado bruto, sem o impacto inicial do apelo da beleza física. Um amor que está no primitivismo da espécie, a necessidade de sobrevivência e vida em sociedade. Sintomático que no fim da vida, quando mais se precisa do outro, é o momento que mais se está só. Regina era solitária e Camargo passou a ser. Duas almas que se encontraram no ocaso da vida em situações distintas, mas na mesma solidão que os liga. Não apenas a solidão os unirá, mas também o amor, que não tem idade pra desabrochar, como diz o clichê mais autêntico. E que melhor remédio para a solidão do que o amor?

O Outro Lado da Rua é mais um belo exemplar de um cinema que coloca as possibilidades da linguagem cinematográfica a favor do conteúdo. A forma de filmar, fugindo da mesmice da televisão e daqueles originários dela que se aventuram pelo cinema, apresenta uma engrenagem que nos faz pensar e contemplar por total uma obra sincrética por excelência. O Outro Lado da Rua nos mostra que cinema é mesmo audiovisual (som e imagem) e conteúdo (a mensagem, o texto), sem falar de representação. Sai-se do filme na certeza de ter apreciado uma verdadeira obra de cinema, na medida exata de emocionar sem a necessidade afoita das palavras ou da apelação fácil do melodrama. É poesia em imagens, coisa rara hoje em dia.



Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 7/6/2004

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