COLUNAS
Quarta-feira,
15/9/2004
Um palhaço no campo de concentração
Daniela Sandler
+ de 5500 Acessos
Para um livro virar notícia na grande imprensa - e assim merecer, além de resenhas, a atenção do público - é preciso um evento novo, como um lançamento, um aniversário de publicação ou uma lista dos dezoito melhores do qüinqüênio. É triste que a imprensa em geral precise desses pretextos para dedicar espaço a obras literárias e de outras artes (e o Digestivo, deve ser dito, desde o início se posiciona contra essa restrição). Nessa ordem das coisas, livros que não foram editados ontem acabam hibernando nos domínios acadêmicos, listas de vestibular e estantes de bibliotecas. Assim, para o crítico, é sempre uma oportunidade bem-vinda um relançamento de título antigo - que dá a chance de se debruçar sobre outros momentos literários para além do presente noticioso. É o caso da reedição de Adam filho de cão, do israelense Yoram Kaniuk, relançado no fim de 2003 pela Editora Globo.
Relançamentos também dão a chance de melhorar a edição de uma obra. Este é um dos motivos para festejar a reedição de Adam filho de cão. A primeira publicação no Brasil baseou-se na norte-americana, que havia cortado um capítulo do original e alterado nomes de personagens. A nova edição foi traduzida com cuidado por Nancy Rozenchan diretamente do hebraico e respeita a integridade do texto. A bela capa, desenhada por Paula Astiz, traduz a textura do livro - que oscila entre mistério e revelação, hermetismo e explicação - com uma imagem borrada em preto e branco sobre a qual nomes e palavras do texto se revelam e escondem.
Adam filho de cão tem estrutura complexa, e a narrativa escapa ao leitor no momento mesmo em que se acredita compreendê-la. Começa como a história de um imigrante em Israel - um homem misterioso, um fugitivo, ou será um criminoso? O local da história é um hospício no meio do deserto israelense, os personagens são os internos - mas a história se passa também num campo de concentração nazista no Leste Europeu, e seus personagens - novamente - são os internos. Adam é um palhaço que urina nas calças e sofre com alucinações esquizofrênicas. É também filósofo, artista e meio profeta. É ridículo e doente, mas arrebata paixões femininas e a admiração de médicos, enfermeiros e pacientes. Quando parece estar se divertindo e pregando peças, desaba de repente em medo ou desespero. Assim como seu protagonista, o livro é escorregadio e sorrateiro. A prosa pula do manicômio em Israel para o campo de concentração junto com a mente de Adam, e é assombrada por intervenções sinistras como a visão de fantasmas ou a gradual aparição do "cão" do título.
Ironia e compaixão
Em parte, o tom esquivo deve-se ao próprio estilo de Kaniuk, que emprega uma distância irônica, às vezes exagerada, às vezes cáustica, ao retratar não só o universo dos loucos/sobreviventes, mas o seu próprio país ("um país que é o maior hospício sobre a terra", segundo uma personagem). Em sua crítica sem perdão, Kaniuk pinta situações à beira do inverossímil e da caricatura, e personagens patéticos. Ao mesmo tempo, e nesses momentos mesmo, sua descrição precisa revela compaixão por esses seres estranhos e frágeis, e a distância construída desaba em empatia, pondo em cheque a ironia original.
É essa cisão - ou ambivalência - que se revela no retrato de Adam. Impostor, trapaceiro, canalha e debochado, Adam exerce seu carisma e atração não apenas sobre os demais personagens, mas também sobre o próprio autor - e talvez à sua revelia. Kaniuk parece, como todos, seduzido pela mente do gênio arrasado, de quem ele faz personagem mítico e messiânico.
Palhaço no campo de concentração
A história de Adam é trágica - e irônica. Judeu alemão, ao ser levado com a família para um campo de concentração, é reconhecido pelo comandante Klein, que havia visto Adam se apresentar como palhaço num circo. Klein, então à beira do suicídio, mudara de idéia depois da apresentação de Klein. Grato ao palhaço que lhe salvara a vida com sua comédia, Klein decide salvar-lhe a vida também - arranjando para que Adam trabalhe como palhaço no campo de concentração. Ambos devem sua vida à comédia de Adam, e a palhaçada assume poderes divinos de salvação. Por outro lado, é também a perdição - o trabalho de Adam era entreter os prisioneiros a caminho das câmaras de gás. A situação é grotesca e obscena: macaquices diante de um massacre. Adam sobrevive à custa do ato imoral e impossível de alegrar uma multidão de condenados - e paga com sua sanidade. Anos depois, em Israel, é recolhido ao centro de terapia fundado não apenas para tratar sobreviventes do Holocausto, como também para proporcionar o surgimento de um novo Messias - que, segundo a fundadora do hospício, estaria entre os sobreviventes.
Simbolismo
O romance é polvilhado de simbolismo - numa tradição, aliás, da cultura judaica, em que textos e celebrações contêm objetos e números que representam eventos místicos e históricos. Kaniuk dispersa sutilmente seus símbolos, que, semi-ocultos, adensam o significado da prosa como que em silêncio. É possível seguir a trama mesmo que os símbolos sejam ignorados; mas, quando revelados, iluminam e ampliam significados. Por exemplo, quando a personagem Rivka Zisling decide doar uma fortuna para construir o centro de terapia para sobreviventes, assina um cheque de seis milhões de dólares. Seis milhões é também o número de judeus mortos no Holocausto. O pequeno hospício da Sra. Zisling assume dimensão representativa e redentora para todo o povo judeu. Não à toa, está localizado no meio do deserto onde a Bíblia coloca também o povo escolhido, as aparições divinas, e a fundação do judaísmo.
O simbolismo aplica-se também a Adam. Adam tem dons proféticos, como visionário e salvador que pode guiar seu povo, os judeus, em sua nova/antiga terra prometida. Mas Adam, esquizofrênico, está cindido entre dois mundos, e simboliza também a rua-sem-saída da cultura alemã - definida no início do livro pela relação de Adam com a língua alemã, "Uma língua que confundia, maldita e maravilhosa". Adam é Fausto, o anti-herói de Goethe que vende a alma ao diabo para obter conhecimento, numa das mais conhecidas tragédias alemãs. Adam vende a alma ao comandante Klein - o "pequeno", em alemão - e salva a pele com sua própria danação. As referências se repetem: a primeira mulher de Adam chamava-se Gretchen, assim como a amada de Fausto.
Identidade fragmentada
Essa cisão representa o abismo entre o mundo dos judeus na Alemanha - em que a integração social e a assimilação cultural terminaram com o Holocausto - e o mundo dos judeus em Israel - um mundo que é ao mesmo tempo milenar e novíssimo, calcado na tradição bíblica mas forjado no passado recente do Estado de Israel, fundado em 1948. Essas identidades múltiplas e fragmentadas são representadas também espacialmente. O mundo espectral e arruinado dos judeus alemães é evocado na pensão em que Adam vive em Tel-Aviv antes de ser internado, na mobília e objetos da dona, a senhora Idelson, em seu alemão erudito e seu corpo conservado. Para Adam, a pensão e a senhora Idelson encarnam Berlim no pré-guerra, mais do que a própria Berlim após o seu retorno do campo. Essa vida passada intercepta o presente em Israel, carregada nos nomes alemães dos internos do hospício. O hospício, por sua vez, é o presente moderno, sem estética e sem memória. Um bloco de concreto, ascéptico, sem cor, sem marcas, funcional e pragmático como o novo país construído à força e com urgência. Esse ainda não é o futuro - é um espaço de transição para um destino desconhecido. Mas sua locação precede a história: o espaço atemporal, aberto e infinito do deserto, em tudo oposto ao confinamento controlado do hospital.
Épico
Adam filho de cão, desse modo, revela sua pretensão épica. Não é simplesmente um romance sobre um sobrevivente do Holocausto - é a trajetória do povo judeu condensada na figura simbólica do protagonista. Essa trajetória inclui a Diáspora, judeus norte-americanos, judeus do Leste Europeu, o Estado de Israel e a profecia bíblica. E, assim como o Holocausto é momento definidor de Adam, é também o momento definidor dessa história. Kaniuk entra na controvérsia sobre a própria história judaica - e mundial: seria o Holocausto um momento decisivo e de definição, ou um acaso trágico, uma excepcionalidade histórica destinada ao progressivo esquecimento? Os sobreviventes do Holocausto, e a cultura judaica norte-americana (que tem peso enorme em termos globais) tendem à primeira versão, e dedicam milhões em recursos para memoriais, museus, centros de pesquisa e teses acadêmicas.
Mas, no Estado de Israel - apesar de boa parte dos sobreviventes ter migrado para lá -, o lugar do Holocausto é mais delicado e instável. Como uma nação tentando firmar-se como forte, metida em guerras e rodeada de países inimigos, a cultura israelense rejeitou desde o início a imagem de fragilidade e vitimização associada ao extermínio dos judeus europeus. Um país voltado ao futuro, não à repetida encenação do passado doloroso e estrangeiro. Essa repressão é indicada por Kaniuk em personagens que abandonam o nome europeu e adotam um israelense; ou na sobrevivente que relata os sentidos embotados pelo conforto material, em que o terror de sua experiência só retorna no fluxo irreprimido do sono.
Estética e Holocausto
A obra de Kaniuk também se insere em debates sobre arte produzida sobre o Holocausto. Para muitos teóricos, o Holocausto foi um evento tão horrendo que teria tornado imoral a própria possibilidade de prazer estético - como na famosa afirmação de Theodor Adorno de que não pode existir poesia depois do Holocausto. Para outros, o seu impacto sobre as artes seria restrito a si mesmo: seria impossível representar o Holocausto em meios artísticos. A única maneira de falar do evento seria com dados e tratados históricos, documentários, testemunhos. Produzir filmes, ou, ainda pior, ficção literária, seria não apenas de mau-gosto, como nunca poderia fazer jus ao horror dos acontecimentos. E, finalmente, entre aqueles que admitem a possibilidade de representar o Holocausto em livros e filmes, há os que rejeitam veementemente o registro cômico e o humor. O livro de Kaniuk, publicado originalmente em Israel em 1971, é uma contribuição precoce e ousada a esses debates que, em boa parte, tomaram corpo nas últimas duas décadas com o interesse crescente em relatos de sobreviventes e na assim chamada "teoria do trauma", baseada em psicanálise.
Antes mesmo que críticos e professores universitários discutissem a ética do tratamento de sobreviventes ou a adequação da comédia ao tema, Kaniuk centra seu romance num palhaço saído de campo de concentração. Assim como em seu tratamento crítico de Israel, Kaniuk revela-se um escritor audacioso, talvez temerário - e aí, além das qualidades literárias, reside também o mérito de sua obra. Não por acaso, a influência de Kaniuk pode ser sentida em obras recentes. A figura de Adam - o louco/palhaço tornado profeta - tem paralelo no personagem Shlomo, protagonista do filme Trem da Vida (lançado em 1999). Shlomo é o cômico lunático que lidera sua pequena aldeia em um esforço visionário e delirante para escapar dos nazistas. Shlomo e Adam são personagens memoráveis, cuja dimensão utópica revela a missão impossível - e no entanto inevitável - da própria literatura e de autores como Kaniuk: apontar um caminho alternativo, ainda que fictício, que nos leve para além de um dos momentos mais feios da história.
Para ir além



Daniela Sandler
Riverside,
15/9/2004
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Por um 2015 sem carteiradas de Marta Barcellos
02.
Sou um de vocês de Eduardo Mineo
03.
A volta do drugui de Luiz Rebinski Junior
04.
Grandes Carcamanos da História de Alexandre Soares Silva
05.
Psiquiatra declara Japão Oficialmente Maluco de Alexandre Soares Silva
Mais Acessadas de Daniela Sandler
em 2004
01.
Olá, Lênin! - 10/3/2004
02.
Brasil em alemão - 7/7/2004
03.
Muros em Berlim, quinze anos depois - 24/11/2004
04.
Dia D, lembrança e esquecimento - 9/6/2004
05.
Fritas acompanham? - 18/8/2004
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|