COLUNAS
Quinta-feira,
12/7/2012
FLIPS
Elisa Andrade Buzzo
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A meia-luz feria meu discernimento, e num vaivém de gente, um cheiro de fumo, um rumor de mesas e cadeiras arrastando, era pendurada na parede frente ao público o cartaz com os dizeres: OFF FLIP. Léo Gonçalves nos aguardara, o rosto sereno de belo-horizontino se enchia de preocupação e se regozijava pela nossa chegada, perguntando sobre os outros autores do sarau da Patuá Editora. Viéramos, Eduardo Lacerda e eu, trombando pelas pedras que calçam o centro histórico da cidade, perguntando de boca em boca o caminho previsível do cais e, quando as pedras se acabaram e um trecho de lodo e grama surgiu na escuridão, nos sentimos perdidos e sem sentido, até que microfonia e uma voz entoando "som, som" nos deu a segurança de localizarmos o Camoka Botequim, bar charmoso de mesinhas para fora com guarda-sóis espetando a noite de Paraty.
Assim, eu me encontrava instalada atrás da mesa de livros à venda, aguardando o momento da minha leitura, quando um local se instalou na cadeira ao meu lado e perguntou, "O que é Flip?", ao que eu poderia ter lhe respondido "Flip é o festival literário com a programação oficial, é aquilo que há por detrás das histórias sendo narradas, quero dizer, Flip é quando o escritor viaja, vem e fala sobre si e sua obra e debate com outros escritores questões eflúvias, latentes". Não satisfeito, e talvez concluindo que aquela movimentação em que estava não era bem a Flip, ele arrematou com a seguinte pergunta: "E o que é OffFlip?"
E com este texto quero responder a indagação daquele habitante local, perdido no tempo de Paraty, ou que simplesmente me lançava uma troça: OffFlip é uma programação, um encontro e um desencontro literário que, em última instância, abarca um mundo paralelo, onde estão as situações da trama e as personagens agindo, são as histórias em potencial para serem amadas, desconstruídas, inspiradas e narradas para, assim, depois de bem mastigadas com peixe, azeite, vinho e pão, serem tornadas livros para a próxima Flip, a matéria-prima, a motivação primeira de romances franceses, portugueses, afegãos e africanos. O moço não perguntou mais nada e permanecemos sentados, até que levantei-me para noticiar "a flor, a náusea e o novo".
Estávamos em vias de viver a matéria de que são feitos os livros todos. Andando e agindo fora do mundo oficial, estávamos discutindo o enredo, sendo os personagens dos romances, e assim faríamos parte do sabor do caldo das tramas futuras e vindouras. E a partir daí, escreveríamos os primeiros parágrafos dessa arte de estirpe refinada e público mirrado, bem como editaríamos estas nossas próprias histórias, como também as múltiplas histórias do mundo, num acesso de generosidade que nada mais é do que a própria humanidade que nos é inerente, embora tão desaparecida nestes tempos de estrelismo e em que se faz caso de um vestido, não o drummondiano, mas aquele que Laerte comprou na Collins, objeto de desejo do público leitor da Flip.
Despindo-nos de roupas e futilidades literárias e várias, fomos ao encontro da natureza, do mundo exuberante dos relatos dos primeiros navegantes, nossa proto literatura. De passagem, fomos nos despedir dos escritores oficiais e, para nos dar a bênção, em frente à Pousada Literária, lá estava Verissimo, e com certeza, assim cremos, também nos vira Verissimo, tão ele mesmo ele era, e tão nós mesmos éramos que nossas histórias se confluíram naquele momento de verdade absoluta, instalados entre pedras centenárias.
Com o coração esperançoso e a fé devidamente esmaltada, abandonamos o caminho das pedras e seguimos por ladeiras asfaltadas, ladeadas por vegetação. Entramos na borda daquele mingau a que chamamos mar e, então, na praia do Jabaquara, ladeados pela maré baixa, veio ao nosso encontro um profeta de calção azul, barba e cabelos longos e negros avisar do destino da poesia. Primeiro apareceu sua cabeça, depois seu corpo todo suspendeu-se e flutuou por sobre as águas, trazendo as boas-novas, acreditamos. Seria este profeta um Vinicius todo amor ou um Drummond, na aparência, calado? Não sabemos, ele apenas fez-se matéria, como uma visagem incorporada à natureza daquela terra gentil. E desse encontro sutil fez-se a paz, durante toda aquela tarde de inverno Paraty brilhou, o mar refletiu e tremelicou os raios do sol, tivemos a impressão de que o tempo parara e que a terra já dera todo o seu simbólico recado.
Saímos, talvez mais confusos e surpresos do que quando chegamos à cidade, mas com o sentimento de que deveríamos continuar; voltar, e seguir. Na manhã de domingo, último dia da festa, a cidade amanheceu como uma flor murcha, ferida por tampinhas de garrafa. Os garis exerciam o duro ofício de varrer entre as pedras do centro histórico, e os cafés, ainda fechados, preparavam-se para saciar a fome ardente dos turistas. Plácidos, transitamos pelas lojas e as livrarias abarrotadas, nada afetaria a aparição do profeta. Estávamos possuídos pela poesia, e não haveria nenhum apelo mais belo do que estar dentro de uma história, cujo fim permanecia em suspensão.
De modo que, nossa décima edição da Flip nada teve a ver com aquela que os jornais noticiaram. Nada de debates em telões e tendas improvisadas por operários fluminenses, nem bitolada em entrevistas tentando se encravar no duro coração dos escritores, muito menos curtindo noitadas nos bares da Praça da Matriz, entre copos, bocas e olhares enviesados. A nossa teve algo de bíblica e surrealista, Flips, acepipe literário, muçarela de búfala de poesia concreta. Nada nos restava, a não ser abandonar aquele mundo maculado, embora premente de epifanias, retornar à nossa ilha artificial e viver nossas histórias reais e pouco literárias.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
12/7/2012
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