COLUNAS
Segunda-feira,
24/3/2014
A violência do silêncio
Carina Destempero
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Eu trabalho basicamente com a palavra. Seja na Psicanálise ou na Literatura, significantes e significados são a matéria bruta da minha profissão. Talvez por isso a linguagem, a comunicação, e o silêncio, sejam assuntos recorrentes pra mim. Há algum tempo, li um conto de Maria Judite de Carvalho (ótima autora portuguesa) em que uma jovem acidentalmente mata o pai, na presença da mãe. O fato em si já teria tudo para ser traumático, mas o que acontece em seguida é, a meu ver, o que determina as graves consequências que resultam dessa morte. A mãe diz à filha, "não vamos contar nada a ninguém, vamos esconder o corpo e fingimos que ele não voltou para casa essa noite", e assim o fazem. Nesse momento pensei: isso não vai acabar bem. Mas não pensei isso achando que elas seriam descobertas, punidas, nada disso. O que me veio de ruim dessa situação foi o segredo. O não falar, não submeter-se às consequências sociais de algo assim. Pode parecer à primeira vista que esconder é mais fácil, mas logo fica claro que o buraco é mais embaixo. Matar o pai, quando quem comete o ato não é um perverso, é daquelas situações que marcam irremediavelmente. A vida passa a ser dividida em antes e depois daquilo, não há como escapar. E não falar disso é apenas fingir que se pode esquecer o que nunca mais se deixará de lembrar.
A jovem, que estava noiva, rompe o noivado depois disso. Ela e a mãe passam cada vez mais tempo em casa, isoladas do convívio social, até não suportarem mais e se suicidarem. Mas elas já estavam mortas muito antes. A cada dia que não falavam do assunto, que mentiam, que calavam diante dos outros, elas se matavam um pouco. Seus corpos ainda funcionaram por algum tempo, mas elas não estavam mais ali. Esse texto me trouxe mais uma vez uma dimensão que convivo muito no trabalho, mas que não é óbvia: a de que o mais grave numa situação como essa é o que se faz depois, e não o fato em si. Aliás, em tudo na vida.
Muitas coisas nos acontecem, ou mesmo nos acometem, agimos precipitadamente, sem pensar, inconscientemente, e em seguida começamos a nos lamentar, reclamar, esconder, tentar agir como se aquilo não tivesse acontecido ou não fosse nossa culpa. Mas o que importa não é a culpa, é a responsabilidade. O que nos acontece, tendo sido acidente, acaso, ou seja lá o que for, marca a nossa vida, e o que fazemos diante daquilo determina quem somos. Aqui pode parecer que nossos atos nos determinam, e é verdade. Mas é preciso entender que falar também pode ser um ato, e as palavras, mais do que instrumentos que manipulamos ao nosso bel prazer, são parte essencial da nossa constituição. Sem palavra não há ato, sem identificação não há social, sem comunicação não há humano. Sem linguagem não somos, simplesmente existimos. Por isso a palavra - por mais violenta que seja - nunca será tão assassina quanto o silêncio. O silêncio, sim, mata. A palavra é o que nos traz de volta à vida.
Carina Destempero
Rio de Janeiro,
24/3/2014
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