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Terça-feira,
30/8/2011
A Serbian Film: Indefensável?
Duanne Ribeiro
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A Serbian Film teve sua exibição proibida em território nacional em 9 de agosto. A Justiça Federal decidiu-se pela censura porque o filme "simula a participação de recém-nascido em cena de sexo", assim como contém cenas de "sexo explícito, crueldade, elogio/banalização da violência, necrofilia, tortura, suicídio, mutilação, agressão". Espanha, Suécia e Finlândia seguiram o mesmo caminho. A decisão ao mesmo tempo diz o que podemos assistir e o que pode ser abordado pela expressão artística. Risca um limite duplo. É correto que haja esse limite?
Dirigido pelo sérvio Srđan Spasojević, o filme exibe tudo o que a descrição expõe. Trata-se da história de Milos, ator pornô aposentado que recebe de um excêntrico diretor a oferta de uma enorme quantia pela participação em uma nova obra, que se pretende revolucionária. Milos aceita, e se vê atuando em cenas incomuns, que incluem violência e a presença (sem sexo) de crianças. Quando ele tenta se desligar da produção, é sequestrado e drogado. Injeções de estimulante sexual o deixam em um frenesi destrutivo e autodestrutivo. A filmagem doentia acaba por engolir os seus parentes próximos: irmão, mulher e filho pequeno. Tudo é violado, tudo é perdido.
O filme foi supervalorizado pela polêmica. Fora seu realismo e sua proposta política (para Luiz Zanin Oricchio, só um "verniz", "rarefeito, pífio, indigente mesmo"), não tem atuações elogiáveis (a expressão imutável do protagonista), sua seriedade pesada é às vezes ridícula, há algumas sequências que podem ser vistas como problemas de roteiro. Ele é significativo, no entanto, se o entendemos dentro da linhagem a qual pertence e pelos temas que pretende abordar, tanto em conteúdo quanto principalmente pela forma.
O Homem como Matéria Prima
Pelo caráter trágico do enredo, não se pode afirmar que A Serbian Film incita ou banaliza a violência que exibe. O único personagem que admite todos os crimes praticados é Vukmir, o diretor - e o que ele representa é toda uma estrutura que produz e compra a crueldade. O choque e o mal estar quase contínuo podem impedir que essa ideia seja notada, mas o filme se concentra em o que, por motivos comerciais, um homem pode fazer com outro.
Na medida em que todo indivíduo é matéria prima, tudo é permitido. É interessante pensar na obra de Spasojević em paralelo com A Noite dos Desesperados, filme de 1969. Durante a Grande Depressão, em um ambiente de desemprego e fome, os protagonistas do longa são levados a participar de concursos de dança, em troca de comida, roupa e dinheiro. Eles são obrigados a manter um nível de esforço extremo. Sem resistir mais, um deles pede para que o outro o mate. O título original possui uma crítica mais profunda: They shoot horses, don't they? - isto é, os participantes estavam reduzidos a meros animais, e não havia nada mais natural do que eliminá-los assim que inúteis.
Outro paralelo possível é com os snuff movies - vídeos reais de assassinato. A história dos snuffs mistura lenda urbana, inspiração para ficção e casos verídicos. O tema foi explorado por pelo menos dois documentários: The Dark Side of Porn - Does Snuff Exist? e Snuff: A Documentary About Killing on Camera (disponíveis online). No que se refere à ficção, esse gênero indica a tradição em que A Serbian Film se inclui. São exemplos de violência física e horror tão ou mais intensos que o realizado por Spasojević. O objetivo é gerar mal estar, é apresentar o de mais doentio e desagradável - neste ponto de vista, não se pode dizer que o filme em pauta é ruim, já que funciona bem.
Quanto a casos verídicos, o artigo "British link to 'snuff' videos", do Guardian, trata de um deles. Em 2000, três mil vídeos de pedofilia e assassinato foram apreendidos. Criminosos, por mais de dois anos, contrataram cerca de 100 garotos (9 a 15 anos) para serem filmados. Eram meninos órfãos, pobres ou parte de famílias-problema. A sedução era barata. O preço de cada vídeo variava entre 50 e 100 libras. A matéria é encerrada por uma suposta troca de emails entre cliente e vendedor: "Da última vez eu paguei e não tive o que queria"; "O que você quer?"; "Vê-los morrer". Como se diz no primeiro documentário citado, se há alguém disposto a pagar por algo, o produto vai existir (um desses filmes está disponível aqui).
A Violência Sórdida
Spasojević afirmou que o horror na tela é um retrato político; ele diz tratar de seu país e de conflitos bélicos da Europa. Segundo ele, "é como dar um testemunho do que aconteceu comigo. Não fisicamente, mas do quão profundamente os sentimentos humanos podem ser violados - e colocar o público nesses lugares". Suas palavras encontram eco na descrição que Wes Craven, diretor dos filmes de Freddy Krueger, faz do gênero horror: "Na vida real, os seres humanos estão ameaçados por perigos concretos e às vezes horríveis, fatos como Columbine. Mas a forma narrativa coloca esses medos em uma série manejável de eventos. Isso nos dá um meio de pensar racionalmente sobre os nossos medos".
O diretor sérvio também diz: "A Sérvia é um pequeno país europeu muito conservador. É difícil as pessoas enxergarem seus próprios problemas. A religiosidade é forte e, quando alguém comete algo ruim, acham que basta ir à igreja para estar purificado". Novamente, as frases podem ser comparadas com Craven: "Acho que tem alguma coisa a ver com o sonho americano, o tipo de sonho disneístico, o gramado bonito, a cerca branca, mamãe e papai e suas crianças felizes, tementes a Deus e fazendo o bem quando podem, e a outra face disto, a raiva e o senso de ultraje quando se descobre que nada disso é verdade, isso dá aos filmes de horror uma fúria adicional".
Vemos, portanto, os vários elementos de significado em A Serbian Film: a sua ideia política central, a tradição a que se filia, o choque e a crítica social que são alegadamente causas de sua forma de expressão. A questão que se isola neste percurso, então, é: encenar tal grau de violência é aceitável? Spasojević não rompeu todos os limites do bom senso? Se seguirmos os termos da decisão judicial citada, é difícil concordar. "Sexo explicíto" é contraditória de cara: o Brasil possui, naturalmente, uma indústria pornográfica consistente (leia "Nas Redes do Sexo", de Guilherme Montana, para exemplos). Quanto à tortura e agressão, ou elogio e banalização da violência, são atrativos de filmes muito populares.
O primeiro Tropa de Elite nos exibe um homem de rosto ensaguentado, sendo asfixiado por um policial, a cabeça enfiada num saco plástico. A cena inspirou uma série de vídeos, feitos por jovens. Em 2007, alguns foram retirados do Youtube por incitar a tortura. Não obstante, não é difícil encontrar algum hoje. Em Cidade de Deus, um grupo de crianças faz o Ataque Soviético - execução sob tiroteio intenso - e comemora a conquista do poder. Tendo em vista essas sequências, qual o critério para condenar a violência de A Serbian Film? Mesmo o gosto mórbido não é incomum: um popular site brasileiro, o Assustador, se especializou em conteúdo do tipo, com atualização semanal. Em 25 de agosto, foram adicionadas novas fotos na seção "Pessoas Mortas".
Luiz Zanin Oricchio disse: "Há que se defender de maneira intransigente o princípio de que o cidadão adulto tem o direito de ver o que bem quiser, sem ser tutelado pelo Estado. Já a obra, em si, é indefensável". Mas o que é indefensável? O que há de particular na violência da obra de Spasojević? A conclusão a que chego é que a diferença é positiva: a forma com que retrata seu tema é eminentemente demoníaca. A violência não aparece divertida, justa, emocionante, gloriosa. É apenas sórdida, ácida, insuportável.
Duanne Ribeiro
São Paulo,
30/8/2011
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