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COLUNAS
Sexta-feira,
22/8/2014
A jornada do herói
Gian Danton
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Publicado em 1949, O herói das mil faces foi um livro que revolucionou o estudo sobre as mitologias e religiões. Influenciado por Freud e Jung, Joseph Campbell vasculhou dezenas de culturas em busca de semelhanças entre seus mitos e os significados dos mesmos. O resultado foi esquematizado em doze passos, seguidos pela maioria dos protagonistas das narrativas analisadas. O resultado, além do impacto sobre o estudo mitológico, teve uma consequência inesperada: esse esquema foi usado por George Lucas para construir o roteiro de Guerra nas Estrelas. Esse fato deixou claro que o livro servia não apenas para explicar mitologias antigas, mas funcionava bem para analisar narrativas contemporâneas.

O primeiro passo do herói é o chamado à aventura. O herói é tirado de sua vida pacata e sem perigos por algum acontecimento que o chama à ação. "Um erro - aparentemente um mero acaso - revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação de forças que não compreende, que estão acima dele". Esse chamado, que pode ser uma simples aventura, como em O Senhor dos Anéis, ou uma busca religiosa, esconde uma verdade sobre o despertar do eu. É também um momento de separação dos pais e de um novo renascimento, que levará à vida adulta. O agente que anuncia a aventura pode ser sombrio ou aterrorizador, ou uma figura misteriosa. Em Promethea, de Alan Moore (talvez a história em quadrinhos que melhor ecoa questões mitológicas), a heroína é atacada por um Smee, uma espécie de demônio, o que a faz se transformar na heroína mitológica.
Vale lembrar que, de início, o herói recusa o chamado e esse é o segundo passo. Não por acaso, Robinson Crusoé inicia com uma preleção sobre os benefícios de uma vida de classe média, sem aventuras ou dramas. Segundo Campbell, "a recusa é essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse próprio". Vale lembrar, em Guerra nas Estrelas, a indecisão de Luke em seguir a aventura ou permanecer na vida pacata com seus tios. Estes, aliás, o advertem sobre os perigos da jornada.
Na maioria dos mitos, o herói adere ao chamado, seja Frodo sendo obrigado a fugir com o anel, seja Luke impulsionado a salvar a princesa, seja Robinson embarcando em um navio. Aceita a aventura, o herói geralmente conta com um auxílio sobrenatural. Os jovens de Caverna do Dragão, por exemplo, contam com o auxílio do misterioso Mestre do Magos. Esse guia fornece os amuletos e os conselhos que o herói precisa para continuar a jornada, mas, como o Mestre dos Magos, não interfere diretamente na aventura. Em Guerra nas Estrelas esse papel é exercido por Obi Wan Kenobi e posteriormente por Yoda. A jornada é do herói e é ele que deve seguir esse caminho.
O quarto passo é a passagem pelo limiar. Em Promethea esse momento é retratado na ida da personagem para a Imatéria. Em Crônicas de Narnia é o guarda-roupa, que dá passagem a todo um universo mágico. "Além desses limites, estão as trevas, o desconhecido e o perigo, da mesma forma como, além do olhar paternal, há perigo para a criança", escreve Campbell. O limiar representa a ida para o inconsciente, repleto de libido e de ameaças de violência. Em Promethea, a protagonista, ao passar para a Imatéria, encontra uma chapeuzinho vermelho que segura uma arma, fala palavrões e um imenso e apavorante lobo. Todos imagens arquetípicas.
O quinto passo é a entrada no ventre da baleia, as provações e encontro com os inimigos. Nessa fase é comum o autoaniquilação. O corpo do herói pode ser cortado, desmembrado e ter suas partes espalhadas pelo mundo, como Osíris, que é morto por seu irmão Set. Essa fase representa o renascimento espiritual do herói, o desapego do ego, uma vez que essa é uma jornada de transformação. Nessa fase também é comum encontrar metáforas da mãe ou o pai, muitas vezes transformados em vilões. Luke, por exemplo, descobre que Darth Vader é seu pai. Como a jornada é um processo de individuação, o herói precisa matar a influência dos pais sobre ele.
O passo seguinte é a apoteose, no qual o herói obtém vitórias. Muitas vezes esse passo é representado por um casamento sagrado, como Flash Gordon se casando com Dale Arden, pela sintonia com o pai-criador, pela própria divinização (Osiris sendo recomposto). Se as forças se mantiverem hostis a ele, essa fase é representada pelo roubo por parte do herói daquilo que ele foi buscar, como Prometeu roubando o fogo.
Terminada essa etapa, cabe ao herói voltar para casa. Pode ser uma volta simples, abençoada pelos deuses, ou uma volta difícil, como a de Ulisses ou a dos protagonistas da Caverna do Dragão (um mito que ficou incompleto, uma vez que eles nunca retornaram).
Em todo caso, o herói volta transformado e maduro e essa transformação se reflete no mundo, como Promethea provocando o fim do mundo que conhecemos e, com isso, construindo um mundo melhor.
Em suma: o herói das mil faces se torna essencial para os que querem entender melhor as mitologias, antigas e novas, apesar de Campbell nem sempre ser direto e muitas vezes se perder em alguns discussões não diretamente relacionadas ao tema. Apesar disso, o livro se destaca pela leitura intrigante e pela prosa fluída de seu autor, que exemplifica suas ideias com mitos de diversas parte do globo
Gian Danton
Goiânia,
22/8/2014
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