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COLUNAS
Quinta-feira,
25/9/2014
Quando as rodas param
Elisa Andrade Buzzo
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As plantas já sabiam, eu nem tanto, que dentro em pouco começaria a chuva. Esperada, desejada pelos habitantes da cidade que há tempos não sabe mostrar aos seus filhos o sentimento de uma tempestade, de um ímpeto furioso de águas num misto de medo e regozijo pela vida. Mas não tem problema, há coisas que são instintivas e assim se nasce com o direito e o dever da parte animal, que um dia irá lhes surgir como uma inundação - por mais que ela pareça ser improvável nestes tempos de vida seca e mesurada.
Nesta noite, rua está esvaziada, o comércio fechado, os prédios baixos em silêncio, deserta de pedestres e automóveis. Não passa de uma picada aberta e reta, uma rua, caminho, passagem há séculos escolhida dentre as possibilidades que a engenharia elegeu como a mais efetiva. Agora, a rua volta a ser como era nas noites anteriores. Amarelados pontos de luz se esfacelando do alto dos postes, silenciosa, o único respiro vem do gradeado dos porões das casas abandonadas, estão todos recolhidos, dormindo, maquinando em seu espaço privado. E assim, quando as rodas param, percebe-se o tempo amainado, o vazio ora preenchido pelas tralhas do homem, o som sutil do vento.
Quando as rodas param, é hora de sentir a finura da umidade, o vento trazendo a reviravolta do tempo, o rangido dos poucos galhos que restam. Escutar agora os ruídos dos órgãos internos, a inspiração e a expiração, os movimentos peristálticos, ainda o bater do coração, que não pode parar nem um instante sequer para a continuidade desta caminhada primeva. Ser um animal racional inteiro, no único império justo, o da solidão, desfeito das amarras todas do dito civilizado; sob os perigos e as intempéries necessárias ao seu espírito guerreiro e à sua sobrevivência.
Tocado por este vento, um homem dentro da sombra revira sacos de lixo preto. Muitos papéis saem voando, deixando-o atônito diante do belo espetáculo. Dentro em pouco a leve umidade vai se desprender em pequena chuva sincera. São gotas que vêm já inteiras, sem nada pedir em troca. Este homem um pouco sem jeito, e surpreso pela manifestação da natureza, consiste na única testemunha dos eventos quando as máquinas estacam.
Na manhã seguinte, após o último maná que irá alimentar os habitantes da cidade, lá estão eles já imersos em seu cotidiano, esquecidos de sua porção animal, pulverizados pelo peso que a paisagem lhes impõe. Uma coleção de folhas macetadas dispõe-se como a de um recente museu de botânica. Um jovem, sem um dos tênis nos pés, recostado rente à rua abre os olhos pela primeira vez neste novo dia.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
25/9/2014
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