COLUNAS
Terça-feira,
3/11/2015
O pior cego
Luís Fernando Amâncio
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No início de 2014, o curta-metragem Majorité Opprimée, de Éléonore Pourriat obteve milhões de visualizações em poucos dias no YouTube. Um sucesso bastante compreensível. Com uma narrativa simples, o filme obtém efeito cômico ao fazer inversão de papéis entre os gêneros. E o sucesso da franquia brasileira Se eu fosse você nos mostra que o público gosta de ver homens vivendo situações femininas e vice-versa.
Porém, a semelhança entre Majorité Opprimée e a comédia nacional termina por aí. No curta francês, o humor inicial é varrido por seu conteúdo sério - e eu recomendo vê-lo antes de ler o spoiler que se segue. Pois em sua sociedade de papéis invertidos (mulheres podem correr sem camisa e urinar em vias públicas sem qualquer pudor) há situações facilmente reconhecíveis pelo espectador. Infelizmente. O protagonista, responsável por cuidar do lar e do filho, é assediado por mulheres na rua, constrangido por policiais ao fazer a denúncia e, por fim, recebido com impaciência pela própria esposa.
Majorité Opprimée é um típico exemplo de como o cinema pode ser bem mais do que entretenimento. Com menos de 10 minutos de duração, o filme faz refletir sobre algo que nos é enfiado goela abaixo como natureza indiscutível: a desigualdade entre gêneros na sociedade. Pois, se a biologia diferencia homens e mulheres, isso não quer dizer que suas posições sociais devam ser tão distintas.
Essa distinção foi abordada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2015. O tema da redação foi "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira". Assunto bastante pertinente: em 2014, foram registradas no Brasil 52.957 denúncias de violência contra mulher. Só no estado do Rio de Janeiro ocorrem, em média, 13 estupros por dia, sendo a maioria das vítimas menores de idade.
Mas nossa violência contra as mulheres vai muito além do ataque físico. Passa pela diferença no salário, pois elas recebem 30% a menos, em média, do que homens com mesma idade e nível de estudo, segundo dados de levantamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento. E pelas famosas frases: "lugar de mulher é..." Por isso, ao falar de violência contra a mulher é imprescindível dialogar com o feminismo. Afinal, quem melhor do que as próprias mulheres para nos dizer qual o lugar delas? O Enem fez isso e, em outra questão, partindo de um trecho do livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, discutiu-se aspectos da atuação do movimento feminista na década de 1960.
Assim como Majorité Opprimée é mais do que entretenimento, o Enem mostrou que uma avaliação pode ser mais do que uma seleção. É louvável o exame cobrar posicionamento dos aspirantes ao ensino superior sobre um tema tão delicado e atual. Mais do que dominar fórmulas matemáticas ou decorar datas, o candidato precisa ter noções básicas de cidadania. Porém, a polêmica que a prova causou aponta para outra direção.
"Futebolizaram" tanto, mas tanto, o nosso debate político que, para alguns, discutir a violência contra a mulher é "doutrinação comunista", uma imposição nefasta da "ideologia de gênero". Para o Deputado Jair Bolsonaro, por exemplo, a prova deveria se chamar "Exame Nacional do Ensino Marxista". Alguns dizem que até hoje alguns brasileiros não superaram as eleições de 2014. Para mim, parece que não superaram foi a Guerra Fria - é possível que nem nos tempos da URSS a "ameaça vermelha" foi tão temida por aqui.
Pintar nas cores da ideologia o tema "violência contra a mulher" é jogar no Fla-Flu político algo que deveria ser da esfera do bom senso. Reconhecer o direito das mulheres serem quem, o quê e como quiserem não é partidarismo. É respeito.
Diz o ditado que "o pior cego é o que não quer ver". Mas acreditar que a defesa de princípios básicos dos direitos humanos é comunismo é também de uma cegueira abissal.
Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte,
3/11/2015
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