|
COLUNAS
Quinta-feira,
18/2/2016
Margeando a escuridão
Elisa Andrade Buzzo
+ de 3700 Acessos
Entro na sala escura, manejando com dificuldade a bengala. À medida que a escuridão toma conta, quando nem mesmo vultos consigo sobrepor ao pensamento, quase caio num choro convulsivo. Mas continuo, com uma das mãos margeando a parede, adentrando numa aventura dos sentidos. Sinto medo. Sonny segura minha mão. Sua voz transmite simpatia e segurança. Há outros como eu, somos mais e diversos, cada um explorando por si próprio aquele ambiente. Impressionantemente o guia dá conta de todos, conversando e nos encaminhando pela instalação.
É como uma dor inexistente os primeiros minutos do não enxergar. O que acontece? Nada; mas por que então essa sensação de que há algo muito errado e que uma luz deve imediatamente acender e então retornar a ordem normal dos sentidos? Como se direcionar num espaço completamente desconhecido sem fazer uso da visão? Ninguém se vê por aqui, e ainda assim estamos de fato presentes e interagindo como iguais. Sonny está totalmente desenvolto naquele espaço de escuridão. Nós dependemos dele. Aos poucos, de fato conseguimos seguir sua voz.
Ela é como um fio invisível, como tudo por aqui, mas que nos direciona com uma precisão que impressiona em poucos minutos. Como um ímã, o corpo se encaminha à voz. Tratamos de sentir tudo com uma volúpia de raro despertar, de sobrevivência. Primeiro, estamos numa floresta, de onde captamos um cheiro adocicado. Notamos com a bengala o terreno mole e escutamos sons de animais e o mover de uma fonte de água. Discernimos o ambiente com uma alegria quase infantil de descoberta, quando passamos por uma ponte. Depois, captamos um chão de pedregulhos.
Chegamos numa cidade negra, e aqui estão todos os ruídos de automóveis, as feiras livres, as lojas. Tateamos, ouvimos, cheiramos, sentimos e conversamos. Passamos por degraus, sentamos todos num banco. A bengala já se coloca mais firme na mão, como um anexo em semicírculo sensitivo. Em cerca de meia hora já começamos a aprender esse jeito diferente e belo de lidar com o universo. Os sentidos estão aguçados ao máximo. Aqui somos pela nossa essência. Sonny pega em nossas mãos sem titubear; e acerta em nossos corações.
Apesar de tudo, sinto que anseio pela luz; e enquanto passamos por corredores sombrios até o final da instalação Diálogo no Escuro, na Unibes, tenho sentimentos confusos. Uma euforia e também um ressentimento pela luz, as cores, os contornos, enfim, as formas óbvias e aparentemente precisas. A luminosidade ainda é fraca, uma meia-luz nos aguarda em uma saleta com bancos. E então tudo se redesenha como fresco e reluzente aos meus olhos; um novo desabrochar se delineia, em que se quer uma convivência múltipla, harmônica, em que se sonha mais forte que o mundo é de todos.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
18/2/2016
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Depois do chover de Elisa Andrade Buzzo
02.
Para viver de literatura de Marta Barcellos
03.
O petista relutante de Rafael Rodrigues
04.
O jornalismo cultural no Brasil de Luiz Rebinski Junior
05.
Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac de Ricardo de Mattos
Mais Acessadas de Elisa Andrade Buzzo
em 2016
01.
Um safra de documentários de poesia e poetas - 2/6/2016
02.
Meu querido mendigo - 18/8/2016
03.
A noite em que Usain Bolt ignorou nosso Vinicius - 25/8/2016
04.
Antonia, de Morena Nascimento - 14/4/2016
05.
O bosque das almas infratoras - 23/6/2016
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|
|
|