COLUNAS
Quinta-feira,
15/10/2020
Mas se não é um coração vivo essa linha
Elisa Andrade Buzzo
+ de 2000 Acessos
Um navio ancorado no cais próximo é onde se resguardam os corpos do vírus. Um navio ancorado é onde se esquece da navegação e por isso mesmo onde se pode lembrar da navegação, pensá-la e sonhá-la. É um navio ancorado um país inteiro, no esquecimento e no marasmo. Mas a vida marinheira não é por si só o contato com a água, mas o movimentar da água, por isso seu casco lá está, corroído e desusado.
Enganam-se os tripulantes que pensam estar a salvo de todas as pestes que assolam a humanidade. Lá mesmo ela grassa, e arde. Como em Benito Sereno, o que se divisa à distância é matéria diversa do que se representa no teatro do convés do navio. Há um enigma dentro de um enigma. Passado, presente e futuro reúnem-se na narrativa, há personagens palpáveis e reais, como o narrador Amasa Delano, outras na esfera do ilusório e do mistério, como Don Benito, um desvario da realidade, uma figuração fantasmagórica, de psicologia misteriosa e atormentada, hipotética. Ilusão e realidade esgarçam-se entre dois navios. Mortos e vivos estão reunidos; e quem está morto, vive, enquanto quem vive está morto.
A barcaça flutuante da vida cotidiana é uma fração dos conflitos da terra firme. Se os seus homens são vistos atravessando o píer, abrindo os portões, e assim que mergulharem no canal a continuidade de sua vida os perseguirão na solidez da cidade. Os cavalos do correr e do descansar estarão à espera.
Assim, vive-se na antecipação do drama esdrúxulo, com o pensamento dando mil passos à frente do momento presente do corpo, procurando assegurar-se de que o futuro trará o que se deseja, que proporcionará o conforto mental das conturbações do passado no compasso do momento. Um dia passará como um ano, um dia passará dentro de um minuto na corredeira dura em cujo sulco perpassa o flexível nervo. Do sortimento de veleidades retirar-se-á uma delas, como um bombom de uma caixa, e mesmo assim a insatisfação irá se infiltrar no sangue de toda a vontade já realizada.
Para-se, amaina-se, reflete-se, desespera-se, e a linha descompassada do coração sossega e desassossega. Mas se não é um coração vivo essa linha cujo tracejado de montanha sobe e desce contínua e desesperadamente?
Caso haja memória segura dos acontecimentos do mundo, esta se equilibrará em uma balança desfeita dos padrões até então conhecidos, nos quais o pensamento humano assentará sua escalada de progresso. Outras ideias, nunca antes pensadas, surgirão, a despeito do obscuro velcro que tenta fechar a liberdade, impedir o sentido de compaixão, a busca de conhecimento, a necessidade de dignidade. Essas ideias continuarão surgindo, primeiro como um borrão, pois o novo não consegue ser visto nitidamente de início, então elas parecerão uma imagem indefinida de uma cegueira, e irão tomando um formato inédito, seja em uma pincelada nova, uma nota musical, uma legislação, um movimento, uma ferramenta, uma fórmula, o verso de um poema.
Vive-se a cada passo pisando leve, pisando como quem não pode pisar, pois pode acordar do mundo as piores intenções. Como quem descansa a cada segundo iminente da próxima pisada. Vive-se nessa tensão diária, a quem lhe são colocadas pedras nas costas, a quem são enganchados demônios no pescoço. Vive-se como se a cada passo se ficasse mais próximo dos desejos e desígnios, alguns que ainda nem conhecesse, e então ao mesmo tempo se ficasse cada vez mais longe deles, pois no segundo iminente à chegada e alçada do troféu tudo se esbate mais uma vez em falta desoladora.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
15/10/2020
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Meninas eu vi de Elisa Andrade Buzzo
02.
Quem tem medo do Besteirol? de Andréa Trompczynski
03.
Página de rosto de Daniela Sandler
Mais Acessadas de Elisa Andrade Buzzo
em 2020
01.
Cinemateca, Cinemateca Brasileira nossa - 20/8/2020
02.
Alma indígena minha - 14/5/2020
03.
Na translucidez à nossa frente - 10/12/2020
04.
Vandalizar e destituir uma imagem de estátua - 1/10/2020
05.
Alameda de água e lava - 29/10/2020
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|