COLUNAS
Sexta-feira,
27/11/2020
Aos nossos olhos (e aos de Ernesto)
Ana Elisa Ribeiro
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Ernesto, uruguaio que mora em Porto Alegre, aposentado, tem quase 80 anos e reside sozinho. É viúvo há tempos e tem um filho adulto e netos, todos fora da cidade gaúcha. Quase cego, consegue se manter autônomo em sua rotina sistemática, com as coisas sempre nos mesmos lugares (chaves, remédios, dinheiro, etc.). Cristina, a faxineira, frequenta o apartamento uma vez por semana, limpa, arruma a cozinha, abre as janelas, lava a roupa. Não fosse isso e Ernesto viveria mais caoticamente.
O velho é ajudado pelo filho, que aparece de vez em quando, ocupa um quarto de solteiro e joga uma ou outra partida de xadrez com o pai. Na maior parte do tempo, Ernesto vive uma vida comum, sem se sentir propriamente solitário, trocando meia dúzia de palavras com o vizinho argentino, também idoso, que lê e resume as notícias dos jornais para ele.
Aos olhos de Ernesto é um filme brasileiro lançado em 2019, dirigido por Ana Luíza Azevedo (Casa de Cinema de Porto Alegre), também autora do roteiro em parceria com Jorge Furtado, protagonizado pelo ator uruguaio Jorge Bolani. Contracenam com ele Júlio Andrade, Gabriela Poester, Áurea Baptista, Jorge D'Elia, entre outros. A vida comum do idoso estrangeiro radicado no sul do Brasil tem sua graça iluminada justamente por elementos relacionados aos afetos e às limitações que se impõem conforme a idade avança.
Do muito que há a se comentar sobre o filme, destaco a impossibilidade de ler. Ernesto dependia do vizinho que lhe resumia notícias diariamente. Embora tivesse um escritório que abrigava uma considerável biblioteca de literatura, não podia mais acessar os textos, parte dos quais sabia de cor, sendo capaz de dizê-los, fossem poemas ou trechos em prosa. É exatamente dessa falta que nasce a relação com Bia, a desconhecida que passeava cães e que se torna sua leitora.
O tema do leitor e da leitora está em muitos outros filmes, menos e mais conhecidos. A impossibilidade de ler e a mediação são mote de películas em diversas línguas, levando sempre às relações de afeto e confiança que a leitura compartilhada exige e/ou provoca. De modo semelhante, muitos filmes também cuidaram da escrita, da impossibilidade ou da imperícia para escrever, caso, por exemplo, de Central do Brasil, para mencionar uma obra muito conhecida entre nós. Em Aos olhos de Ernesto também a impossibilidade de escrever está no centro da questão, de maneira sensível, delicada e emocionante.
Não podendo mais ler e escrever, além do vizinho que lê jornais, Ernesto encontra em Bia, uma garota de 23 anos, uma leitora de confiança, que passa então a ler a correspondência do velho com uma amiga uruguaia dos tempos da juventude, recém-viúva de um de seus grandes amigos. Na rede de possibilidades do filme, esta é mais uma trilha, que terminará por se tornar muito relevante no final. Bia lê as cartas de Lucía em espanhol e ajuda nas respostas, datilografando e depois manuscrevendo cartas de Ernesto à amiga, postando-as no correio e mesmo interferindo no tom do diálogo. Penetrando nessa história por meio das missivas, Bia percebe uma antiga e inacabada história de amor entre Ernesto e Lucía.
O tema do envelhecimento é relevante em Aos olhos de Ernesto: as limitações físicas, a saúde (sensacional o diálogo sobre exames entre os velhos vizinhos enquanto jogam xadrez), a solidão, a autonomia, a morte próxima. Amigos e vizinhos falecem, as pessoas se tornam cada vez mais jovens ao redor, o cuidado do filho e da empregada são periódicos, mas não são o que dá ao velho uma lufada de vida, auxiliando-o na percepção de como deveria viver o ocaso de seus dias. Esse ar novo, que empurra Ernesto para algumas decisões, é dado por Bia, entre outras ocorrências que se juntam em direção a um epílogo bonito e um pouco surpreendente.
Belíssimo filme, com atuação impecável de Bolani, em simpática mistura entre português e espanhol, algo ordinário para os que vivem nas fronteiras de nosso país (caso muito diverso de quem mora no litoral ou na parte central deste imenso mapa). Estando a literatura presente o tempo todo, tanto surgem declamações de Mário Benedetti quanto as performances poéticas de rua, numa roda noturna de slam na capital gaúcha. A maior parte do filme se passa em um apartamento escuro, de janelas semiabertas, mas quando as cidades resolvem aparecer, mostram as ruas e as edificações de certas partes de Porto Alegre, além de algumas belas tomadas de Montevidéu e sua rambla.
Há, certamente, muito o que ver e rever em Aos olhos de Ernesto, sendo este um filme de detalhes, assentado na delicadeza de tratar da vida e do envelhecimento, em seus aspectos dolorosos, mas também em outros, tais como os afetos eleitos, a confiança, o cuidado e a leitura. As tecnologias da comunicação figuram neste filme de maneira a tornar nosso tempo uma era de transição, fazendo lembrar que os afetos e seus timings são atravessados também pelas possibilidades que nos dão o papel, a caneta, a máquina de datilografar, os correios, o e-mail, o smartphone, o vídeo, o WhatsApp, etc. Nada disso é neutro, tudo isso está em nossas vidas e ajuda ou atrapalha em seu traçado, em nossos laços, em nossas decisões por ir ou ficar, na firmeza ou no arrefecimento de nossas conexões e interações. Sem spoiler, não deve nada ao melhor da produção de outros países no mesmo gênero. Belo filme, ótimo investimento de tempo e ainda nos deixa sensíveis e pensando por muito tempo depois.
Foto: Fábio Rebelo | Ver trailer em Vimeo
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
27/11/2020
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