Uma página expulsa do internato | Luís Antônio Giron

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Segunda-feira, 3/3/2003
Uma página expulsa do internato
Luís Antônio Giron
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Raul Pompéia cortou "O Ateneu" pela cabeça. O escritor fluminense fixou o início da versão definitiva de seu romance em um parágrafo mais abaixo, à altura da vigésima terceira linha do projetado texto de abertura. Refugou tudo o que veio antes, o "incipit" do livro, por algum motivo secreto. A decapitação talvez tenha fortalecido a trama: as primeiras linhas retratam o menino Sérgio levado pelo pai à porta de um internato. "Vais encontrar o mundo", diz-lhe o pai. "Coragem para a luta." A situação remete à porta do Inferno de Dante e do Labirinto de Creta; ela antecipa os sofrimentos que o protagonista-narrador viverá no internato, entre eles o despotismo tecnocrático do diretor Aristarco, o comportamento sexualmente ambíguo dos colegas e o incêndio apoteótico reservado ao último capítulo. O romance saiu em colunas verticais (e não no rodapé habitual dos folhetins) na "Gazeta de Notícias" entre 8 de abril e 18 de maio de 1888, com grande sucesso, e, em seguida, em volume, pela tipografia do jornal. As duas primeiras versões mergulharam o autor na placenta da glória. Mas delas e das vindouras foi extirpada uma parcela essencial.

Tudo isso se deixa revelar em uma folha de papel almaço cortada pela metade, escrita face a face, de um só lado, com tinta violeta e lápis. As 22 linhas em questão que fazem parte da folha ficaram trancafiadas por cerca de 40 anos num cofre da Divisão de Manuscritos no terceiro andar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sem possibilidade de consulta. De acordo com funcionários da seção, somente em 1995 o documento foi liberado ao público. Até então, dividia espaço com canetas e outros objetos de celebridades intestinas da BN e volumes mais ou menos raros, ocultos como objetos para um museu ulterior. Mesmo assim, nenhum estudioso se comoveu com a folha porque ela era guardada com uma cópia de um artigo do crítico Eugênio Gomes, intitulado "Um inédito de Raul Pompéia", publicado em 10 de novembro de 1951 no jornal "Correio da Manhã". O artigo analisa o texto inédito e apresenta uma transcrição preliminar do manuscrito. O fac-símile da folha foi estampado na revista "Poesia Sempre", de outubro de 1895, sem comentários, com fins ornamentais. O artigo e a reprodução tiraram o fragmento do páreo junto aos caçadores de inéditos que alimentam a indústria de teses e dissertações acadêmicas. Além do que Pompéia saiu de moda na universidade, depois de "O Ateneu" ter sido entronizado por Afrânio Coutinho - o último grande especialista em Pompéia, falecido em 2000 - como iniciador do Impressionismo no romance brasileiro e comparado ao livro "Chansons de Maldoror" (1868), de Lautréamont, por Leyla Perrone-Moisés, em "O Ateneu: Retórica e Paixão", de 1988; como era moda na época, a crítica denominou o livro de "antropofágico". Mesmo fora da onda e tendo nada a ver com Oswald de Andrade, "O Ateneu" permanece como base da ficção supra-realista nacional. Traz a sátira ao sistema educacional e ao meio social - o "ouriço invertido", espinhando quem dele toma parte - do Brasil do Segundo Império, um país que o narrador define em termos nada carinhosos: "Charco de 20 províncias, estagnadas na modorra paludosa da mais desgraçada indiferença." Seus 12 capítulos exibem um "tom de pânico", nos termos forjados ainda em 1889 pelo crítico Araripe Júnior, que se expande numa escritura "quebrada" semelhante às imagens de lanterna mágica. Araripe Júnior ensina que Pompéia confeccionou "gnomos verbais" cuja energia de expressão se fundamenta na "impropriedade dos vocábulos". Em 1943, Mário de Andrade denominou a obra de "biografia intelectual". Para José Guilherme Merquior, em "De Anchieta a Euclides", de 1979, ela narra uma paixão e reflete a personalidade "fragmentária e camaleônica" do autor. Em "Prosa de Ficção, de 1870 a 1920", publicado em 1950, Lucia Miguel-Pereira vê no livro o segredo do destino de Pompéia. Para ela, o romance traça o "drama da solidão" de um menino tímido e hipersensível. Pensa que não é romance de tese, apesar de defender uma - a de que os internatos massacram a sexualidade: "Não faz o feitio de Sérgio depender das suas condições físicas e, se apresenta a homossexualidade como quase geral entre rapazes privados de contatos femininos, não a explica em termos biológicos; aliás, não explica nunca coisa alguma."

Não bastasse a megafortuna crítica, o romance recebeu pelo menos duas edições "definitivas", confrontadas com os originais: a de Afrânio Coutinho (Civilização Brasileira, 1981) e a de Therezinha Bartholo (Livraria Francisco Alves, 1976). Esta edição comentada é, apesar das críticas de Coutinho, a mais completa, pois se debruçou sobre os originais de 126 páginas que o autor vendeu à Alves & Cia., juntamente com 43 desenhos a crayon (mais tarde vendidos à BN), por um conto e meio de réis em junho de 1894. Ao examinar as nove edições "oficiais" anteriores, lançadas de 1905 a 1956, Therezinha concluiu que o original emendado pelo autor havia sido desrespeitado. Este já consistia em uma cópia tipográfica. Munido dela, Pompéia fundiu e separou parágrafos, reposicionou os pronomes átonos e corrigiu palavras e nomes próprios. Ao todo, 18 modificações não haviam sido incorporadas à edição canônica. Elas foram restituídas à versão de 1976. A prova supostamente desapareceu em um incêndio da editora, no fim dos anos 70. O esgotamento das leituras, a consolidação do texto e a morte dos principais estudiosos levavam a supor que o tema estava encerrado.

Só que nenhuma das edições de "O Ateneu" menciona o fragmento da Biblioteca Nacional. De fato, ele não tem o condão de alterar o destino e muito menos o arcabouço de "O Ateneu". Sugere, porém, uma nova leitura sobre fatos e motivações estéticas em que a obra foi engendrada - aspecto que Gomes intuiu. Considerou que, "pelo imprevisto da idéia original da narrativa autobiográfica", o trecho era uma revelação a ser canonizada pela crítica. Mas não obteve repercussão e seu texto se converteu em raridade.

Eugênio Gomes (1897-1972) calhou ser o literato certo para a ocasião. Teve acesso ao texto porque foi diretor da Biblioteca Nacional entre 1951 e 1956. No período, o teórico baiano se valeu do cargo para fazer descobertas, que anunciou em brilhantes artigos de jornal. Entre outras façanhas, achou uma carta de Byron e, machadiano que era, o manuscrito da peça "Forcas Caldinas", de Machado de Assis, jamais encenada. No artigo sobre Pompéia, informa que a folha foi doada à BN pelo historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927).

A partir desse ponto, três fatos intrigantes se justapõem. Capistrano foi amigo de Pompéia. Quando este estreou no romance com "Uma Tragédia no Amazonas", editado pela Typogaphia Cosmopolita, em 1880, Capistrano profetizou que Pompéia se devotaria à narrativa esteticista. A incerta altura da década de 1880, Capistrano perdeu um artigo de jornal que o amigo lhe confiara; pode ser até que tenha extraviado e reencontrado a folha com o início de "O Ateneu". O fato gerou fúria e o rompimento com Capistrano. O segundo fato está em Pompéia ter sido diretor da Biblioteca Nacional, tal como Eugênio Gomes. Apoiou a ditadura de Floriano Peixoto e foi convocado a dirigir a instituição. Ocupou o cargo de 21 de junho de 1894 a 30 de setembro de 1895 e foi exonerado no primeiro despacho do novo presidente da República, Prudente de Moraes. A terceira situação é que, atormentado por um artigo injurioso de outro ex-amigo, Luiz Murat, e do adiamento da publicação de um texto seu em "A Notícia", Pompéia se suicidou, aos 32 anos, na tarde do Natal de 1895. Seu bilhete dirigia-se ao jornal para o qual colaborava, aliás gratuitamente: "À 'Notícia' e ao Brasil declaro que sou um homem de honra." Atribuía alta importância aos tipos impressos e a seus escritos. Como se dizia naquele tempo de classificações lombrosianas, tratava-se de um "nevrótico".

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil, a 18 de maio de 2001.


Luís Antônio Giron
São Paulo, 3/3/2003
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