|
COLUNAS
Terça-feira,
5/9/2006
FLIP X FLAP
Marília Almeida
+ de 4000 Acessos
Grandes questões internacionais e memória de um lado. Questões regionais e crise da literatura contemporânea em outro. Muitas contradições em ambas. Foram estes os principais temas que encarei ao participar da "FLIP - Feira Internacional Literária de Paraty", e da "FLAP"- sigla que não tem sentido algum e pode soar como uma bofetada (na FLIP, logicamente). Apesar da FLAP ser muito nova, criada em julho do ano passado, e ainda não possuir a visibilidade e quantidade de participantes da FLIP, que está em sua quarta edição, juntamente com o festival paratiense pode ser considerada um festival literário relevante pela quantidade e diversidade de autores que reúne e a divulgação que conseguem fazer, cada um a seu modo, do segmento. Mas, afinal, o que ambos têm a oferecer? Esta briga tem sentido?
De outras áreas que envolvem o macrocosmo da cultura, a literatura parece ser o tema mais árido. Mesmo que todas as artes padeçam de falta de incentivos, mercado saturado e crise contemporânea de falta de bons autores frente a um mercado globalizado, isso talvez se intensifique na literatura por suas facetas editoriais diversificadas (só a questão do que é literatura já levanta um grande e polêmico debate), nas raízes da educação no país (aonde quase todas as artes vêm primeiro do que a literatura em termos de popularidade) ou mesmo em um certo 'estrelismo' que envolve o mercado.
Este estrelismo é veemente em ambos os eventos. Na mesa Periferias?, uma das mais polêmicas da versão paulista da FLAP, realizada no alternativo Espaço Satyros, localizado na Praça Roosevelt, o poeta Allan de Rosa caiu em contradição ao dizer que a literatura não precisa de glamour, mas "tem brilho". Já na FLIP o estrelismo residia mais no clima do evento do que propriamente em suas mesas de debate. É um evento caro, sem dúvidas, mas, mais do que isso, cria em torno dos autores a aura de intangíveis - quem pode pagar mais os vê de perto. Muito disso é também reflexo da crescente popularidade do festival. Hoje, é cool participar da FLIP. Afinal, atores globais o fazem, além de madames em férias, estrangeiros e universitários capazes de dizer que querem comprar um óculos igual ao da menina ao lado porque a faz "parecer inteligente".
Mas, com relação ao conteúdo e autores, ambos são válidos. Há, logicamente, uma disritmia, mas que não consegue prejudicá-los. Afinal, não é toda hora que podemos assistir a palestras de autores internacionais ou reunirmos, em uma única mesa, atores periféricos. A FLAP se sobrepõe em sua preocupação de discutir o mercado literário, em mesas como Gestão de Políticas Culturais, com a participação da vereadora paulista Soninha Francine. É muito bom saber que há movimentos e manifestos em andamento que visam criar um fundo para a criação literária, como exemplificado pelo escritor "Ademir Assunção". Mas por outro lado, é extremamente desanimador o quadro dado por Soninha: da demora de aprovação de projetos e panelinhas constantemente beneficiadas. Algo um tanto quanto pisado e repisado. Imutável.
Foco principal da FLAP, que este ano o mudou um pouco para a literatura marginal (talvez porque muitos atores contemporâneos migraram para Paraty, como o próprio fundador da FLAP,
"Marcelino Freire", apesar de ter participado da FLAP-RJ), a FLIP não esqueceu de expor a literatura contemporânea. Uma das mesas que talvez melhor o fez foi Do Amor e Outros Demônios, composta por André Sant´anna, Lourenço Mutarelli e Reinaldo Moraes. Houve um bate-papo descontraído e bastante revelador dos três autores, com leveza que o próprio tema pedia. André leu trecho de seu terceiro livro, o elogiado romance O Paraíso é Bem Bacana, que tem como temática o terrorismo com uma visão bem-humorada. Lourenço estreou nos quadrinhos em 1991 e repisa no mal-do-escritor diante do papel em branco. Com mais de 50 anos, Reinaldo lançou seu primeiro livro e mostrou trecho de um ainda inédito. O fato de a mesa ter se destacado é por ter mantido o foco na criação dos autores. Questões como "para quem" e "como se escreve", influências e o embate entre o clássico e contemporâneo renderam bons depoimentos, como o de Reinaldo contando sua viagem com Foucault e muitas desmistificações encabeçadas por André, que, apesar de todo seu experimentalismo na forma e linguagem, afirmou que quer escrever um grande clássico.
Uma palestra oposta a estes preceitos foi a Profissão Repórter: Na Linha de Frente, composta pelo escritor, jornalista e deputado federal Fernando Gabeira, autor de O Que é Isso Companheiro, e o jornalista polemista (ou seria o contrário?) americano Christopher Hitchens. A grande reportagem de Gabeira feita em 1987, intitulada Goiânia, Rua 57 - O Nuclear na Terra do Sol, e sua experiência nos principais jornais do país, assim como o novo livro de Hitchens, Amor, Pobreza e Guerra, lançado durante o evento e que fala sobre o massacre de Ruanda, ficaram em segundo plano. Tudo o que se viu foi a sempre fútil troca de elogios entre esquerda e direita em um mundo com ideologias cada vez mais difusas e desesperadoras.
A FLIP talvez seja um evento interessante por dar a oportunidade de presenciarmos uma leitura de um poema árabe pelo seu próprio autor, o poeta palestino Mourid Barghouti. As lembranças e grandes questões políticas foi o tema da mesa Muitas Vozes, também composta pelo poeta Ferreira Gullar. Além da leitura e curiosidades sobre o seu clássico Poema Sujo, escrito em plena ditadura militar há 30 anos, Gullar é uma figura que sempre arranca aplausos em palestras em suas divagações sobre a própria poesia. Já Mourid, que viveu fora de seu país por 30 anos, mostrou todo rancor de um país sem pátria. Principalmente quando perguntado se concorda com o escritor israelense Amos Óz, de que israelenses e palestinos são um casal divorciado obrigados a viver na mesma casa. Mourid resumiu a palestra dizendo que conflitos como esses não cabem em afirmações tão simples assim. Ponto para a FLIP, por mostrar uma de muitas vozes esquecidas.
Por fim, há sempre a questão sobre a crise da literatura, presente na Off Flip e na FLAP. Na mesa Onde estamos?, da FLAP-SP, foram discutidos temas como a omissão e padronização da crítica literária atual, a homogeneidade de autores e os leitores modernos. Por outro lado, como bem afirmou o escritor
"Xico Sá", o mercado literário nunca produziu tanto, principalmente nos blogs literários que pululam por aí. Mas, enquanto a literatura contemporânea passa por uma crise de identidade, conforme pôde ser absorvido da FLAP, a literatura periférica se faz cada vez mais presente. Projetos como a Cooperifa, dirigidos por Sérgio Vaz, e iniciativas como as bibliotecas de Ferréz, pequenas, mas que começam a mudar o panorama desesperançado destas regiões urbanas, são uma luz a mais no mercado literário, extremamente necessária quando pensamos nos milhões de leitores não atingidos pela literatura de centro.
No fim, a FLAP e FLIP acabam se complementando. Não há sentido em se degladiarem. Cada um deles tocam em pontos úteis para a divulgação da literatura no país. São os bastidores de ambos que os diferenciam mais. A FLAP é organizada pelo "Projeto Identidade", do qual fazem parte novos escritores e dos quais foram fundadores alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e da Faculdade de Letras e Direito da USP. Proclamando acabar com a fragmentariedade do mercado, profissionalizando-o na era do blog, o grupo possui meios de divulgação de nova produção a exemplo do jornal Casulo, focado em poesia contemporânea, e organizadores para receberem e discutirem trabalhos de escritores de todo Brasil. Já a FLIP é apoiada por gigantes como Companhia das Letras. No balanço que se pode fazer sobre ambos os eventos, tiramos mais vantagens do que desvantagens. E esperamos o próximo ano. Mais diversificado e, principalmente, atuante.
Marília Almeida
São Paulo,
5/9/2006
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
A Poética do Chá de Felipe Leal
02.
Manual prático do ódio de João Luiz Peçanha Couto
03.
Tapa na cara de Ana Elisa Ribeiro
04.
Mãe, lê pra mim? de Ana Elisa Ribeiro
05.
Américas Antigas, de Nicholas Saunders de Ricardo de Mattos
Mais Acessadas de Marília Almeida
em 2006
01.
O diário de Genet - 31/10/2006
02.
Estamira: a salvação no lixo - 19/9/2006
03.
A massa e os especialistas juntos no mesmo patamar - 4/7/2006
04.
Rumos do cinema político brasileiro - 18/7/2006
05.
Mavericks: o cinema americano independente - 5/12/2006
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|
|
|