COLUNAS
Quinta-feira,
29/1/2009
O Teatro gaúcho pede passagem
Marcelo Spalding
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O verão de Porto Alegre é quente, muito quente, um calor abafado que nos joga em cima de um sofá, debaixo de um ventilador ou nos expulsa para o litoral. Mas há 10 anos um grupo de atores, entre eles o meio global Zé Victor Castiel, criou o Porto Verão Alegre, uma espécie de festival que é mais do que festival pela enorme abrangência, variedade e duração.
Durante dois meses, os meses quentes de janeiro e fevereiro, diversos teatros de Porto Alegre recebem diariamente belas montagens gaúchas a preços razoáveis, recrutando um público que não estava acostumado a frequentar teatro e movimentando todo o sistema cênico da capital. Para alguns, é a única oportunidade de encenar suas peças, e só isso já seria um mérito importante do festival, mas aos poucos se percebe que não, que o maior mérito é dar fôlego para que as produções locais não apenas surjam como cresçam, amadureçam e atravessem as estreitas fronteiras do Rio Grande do Sul. E é sobre alguns destes espetáculos que vou escrever, com a certeza de que em algum momento eles estarão na sua cidade, no seu Estado, e desejando com sinceridade que você os assista e descubra que há, nos palcos, vida inteligente fora do eixo Rio-SP.
Bailei na Curva é o caso mais bem-sucedido, pelo menos entre os espetáculos ainda em cartaz. Escrito por Júlio Conte há 26 anos, conta a história do Golpe Militar a partir do ponto de vista de crianças porto-alegrenses, abordando de frente um problema político e social importante sem se tornar em nenhum momento pesado ou superficial, arrancando da platéia gargalhadas e, ao final, a levando às lágrimas, numa raríssima bem-sucedida combinação de comédia e drama.
Por conta do sucesso da montagem, a atriz Patsy Cecato, casada com Júlio Conte e uma das atrizes da primeira montagem de Bailei..., é hoje sócia de uma das produtoras mais ativas da Capital, a Cômica Produtora, responsável por outros tantos espetáculos na programação do Porto Verão Alegre, como Se meu ponto G falasse e Manual Prático da Mulher Moderna. Mas aqui quero indicar outra montagem, Hotel Rosa-Flor, um texto simples, clássico (com início, meio e fim em ordem direta), que poderia ter sido transformado em conto, romance ou cinema, mas virou teatro dirigido por Júlio Conte. Apostando em cenário e figurino completos e grande elenco, a peça nos remete ao ambiente das produções cinematográficas sem abrir mão de um roteiro complexo, avesso a maniqueísmos ou estereótipos. Ano passado, por exemplo, Larissa Maciel atuou em Hotel Rosa-Flor, de onde decerto foi revelada para ser a Maysa da minissérie global.
Outro que começa a ganhar as telas do centro do país é Roberto Birindelli, ator e diretor do monólogo Il Primo Mirácolo. Neste espetáculo, Birindelli interpreta 21 personagens sem recursos de cenografia, figurino ou iluminação, desdobrando-se com versatilidade entre soldado e Rei Mago, anjo e estrela cadente, Jesus, Maria, José e Deus. O espetáculo, há 16 anos em cartaz, foi idealizado como projeto de graduação no Curso de Artes Dramáticas ― Interpretação Teatral da UFRGS, "sendo fruto de uma pesquisa centrada na presença cênica do performer e na relação ator-espectador, baseada em alguns princípios básicos da Antropologia Teatral", segundo consta no site do ator. O público, aliás, disposto ao redor de um quadrado onde a cena ocorre, é mais do que espectador, sendo chamado a participar cantarolando, respondendo, questionando e, talvez mais do que isso, emoldurando a cena, pois como as luzes estão acesas e as pessoas dispostas em quadrado, pode-se ver a reação dos outros espectadores, suas caretas, risadas e surpresas.
O texto de Il Primo Mirácolo é do italiano Dario Fo, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1997. Curiosamente, há outro monólogo de sucesso na capital gaúcha, também em cartaz há mais de 15 anos, cujo texto é adaptado de Dario Fo. Trata-se de Pois é, Vizinha..., de Deborah Finocchiaro. Com mais de 500 apresentações e 200 mil espectadores, o espetáculo conta, através de muitos risos, a trágica história de uma dona-de-casa trancada em casa pelo marido no dia em que ela se depara com uma vizinha do prédio em frente e desabafa. O monólogo tornou Deborah uma figura conhecida entre os porto-alegrenses, e este respaldo permitiu que a atriz apostasse em trabalhos mais autorais, como Sobre Anjos e Grilos ― O universo de Mario Quintana e o recém-lançado Histórias de um Canto do Mundo ― Memórias de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Além disso, investiu na direção e está em cartaz com O Urso, uma inspirada montagem do texto de Tchekhov em que a multiplicação da protagonista em três atrizes, representando os três estados de espírito distintos da viúva, permite numa interseção de ações, falas e gestos que serve de contraponto cênico interessantíssimo para um texto tão cotidiano.
Cotidiano também é a marca do texto de Luis Fernando Verissimo, levado ao palco por Zé Victor Castiel, que interpreta o próprio escritor em O marido do Dr. Pompeu. Na peça, o universo de encontros, cantadas, coincidências, jantares, mentiras, equívocos, gemidos, farsas e decepções de Verissimo é transformado numa interessante história, muito bem costurada e interpretada por João França e Fernanda Carvalho Leite.
Fernanda que, ao lado da também talentosíssima Ingra Liberatto, também protagoniza Inimigas Íntimas, peça em que duas mulheres de meia idade, amigas de infância e adolescência, se reencontram depois de anos e marcam um jantar. O interessante da peça é que a partir desse conflito tão universal, atemporal e explorado pela literatura, pelo teatro ou pela televisão, Fernanda e Ingra conseguem fazer o público rir de suas próprias idiossincrasias, de seus próprios caprichos, e refletir sobre suas próprias amizades e suas próprias invejas.
São sete espetáculos, sete grupos distintos e sete histórias de sucesso do teatro local que começam a aparecer com frequência também nos palcos do centro do país. Porque não é fácil, e disso sabemos todos nós, fazer teatro sem estar na televisão, sem o plim-plim diário tornando o rostinho bonito mais e mais conhecido. Mas aqui em Porto Alegre tem se conseguido fazer, e se falo com orgulho dessa produção do meu Estado não é por bairrismo, mas porque tenho certeza que colunistas de outros estados do país poderiam fazer o mesmo, traçando assim um belo panorama do Teatro profissional brasileiro. Com T maiúsculo.
Marcelo Spalding
Porto Alegre,
29/1/2009
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