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Segunda-feira, 3/5/2010
As fronteiras da ficção científica
Gian Danton
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O livro Os melhores contos brasileiros de ficção científica foi uma das publicações do gênero mais comentadas do ano de 2008. Uma das questões polêmicas foi a inclusão do conto "O imortal", de Machado de Assis, na coletânea. Segundo alguns críticos, o texto estava deslocado, já que não se tratava de FC. A polêmica levou o organizador, Roberto de Souza Causo, a produzir mais uma publicação, focada exatamente em textos que testam as fronteiras do gênero.

A discussão sobre o "O imortal", inclusive, ocupa a maior parte da introdução. "A ousadia não pretendia, porém, afirmar Machado como autor de FC propriamente dita, mas como um escritor que, à parte suas tendências principais, teve contato com ideias, estilos e temas que iam além". Causo contesta também os que argumentaram que o texto de Machado era fantasia, e não FC, denunciando uma espécie de elitismo: "Se 'O Imortal' é um conto fantástico, mantém-se a aura literária de prestígio; porém, se é um conto de ficção científica, supostamente há um enfraquecimento dessa aura".

A discussão sobre a relevância literária da FC parece ultrapassada em vista dos grandes escritores que já se dedicaram ao tema, de Edgar Allan Poe a Ray Bradbury, passando por Monteiro Lobato e Isaac Asimov. Mas a discussão sobre as fronteiras do gênero é rica e pertinente. Causo argumenta que "a ficção científica é ampla o bastante para incorporar características de outros gêneros, sem necessariamente deixar de ser FC".

Os melhores contos brasileiros de ficção científica ― Fronteiras (Devir, 2010, 192 págs.) foi organizado justamente para provar essa tese. São 14 textos tanto de autores tradicionalmente ligados à FC, como Bráulio Tavares, quanto de outros inesperados, como Lima Barreto.

Aliás, Lima Barreto abre o volume, com "A nova Califórnia". No conto, um químico de renome internacional se estabelece na pequena cidade de Tubiacanga e se esmera em conseguir alcançar o objetivo da alquimia: a produção de ouro. Sua pesquisa irá colocar a cidade em polvorosa. Trata-se de uma fábula sobre a ganância humana. Embora não seja uma FC clássica, o conto traz um dos temas prediletos desse gênero: o estudo do impacto da ciência sobre o comportamento das pessoas. Ademais, a prosa deliciosa de Barreto já vale a leitura.

Outra alegoria que se destaca no livro é "A vingança de Mendelejeff", de Berilo Neves, o primeiro escritor brasileiro a se dedicar sistematicamente à FC, com ênfase na sátira social. O conto dialoga com os pulp fiction ao mostrar o vilão como um cientista ensandecido que inventa uma máquina capaz de tirar o oxigênio do ar. Embora tenha um ar "pulp", a história vai além ao fazer referência à corrente determinística segundo a qual somos vítimas de nossos impulsos.

Outro pioneiro da ficção de gênero brasileira que se destaca é Afonso Schmidt, autor de "Delírio". Muito popular em sua época, Schimidt flertava com o espiritismo e a teosofia, uma relação que se reflete no conto escolhido para a coletânea. Em "Delírio", três homens estão morrendo em um hospital. A história, que começa no plano físico, termina no plano espiritual. A prosa poética vai muito além do comum em histórias em ficção científica e parece uma antecipação do estilo Bradbury. Sem dúvida um dos grandes momentos do livro.

Outro clássico da FC nacional, André Carneiro, comparece na coletânea com o conto "O homem que hipnotizava". Por suas características, a ficção científica é perfeita para textos que queiram trabalhar os limites da realidade. Várias obras tratam do assunto, entre elas os filmes da série Matrix. O conto de Carneiro segue essa linha e não decepciona. No final, o leitor se pergunta que realidade é mais concreta: a dos objetos físicos ou a mental, uma questão que já é levantada por cientistas como o chileno Humberto Maturana.

Entre os clássicos, o de maior destaque sem dúvida é Jerônymo Monteiro. Pioneiro da FC no Brasil, Monteiro passou pela radionovela e pela ficção policial. Quando, na década de 1990, a revista Isaac Asimov Magazine resolveu criar um concurso de contos de ficção científica, o nome óbvio para o prêmio foi o de Jerônymo. Só pelas credenciais, esse autor já merecia presença obrigatória no volume, mas o conto "Um braço na quarta dimensão", publicado originalmente no único de livro de contos do autor, Tangentes da realidade, de 1969, é leitura deliciosa e intrigante. Escrito de forma coloquial e sem artificialismos, parece que estamos ouvindo o narrador contar um caso real de um homem dotado de um poder que acaba se revelando uma maldição.

Fugindo do estilo mais característico da FC, Marien Calixte fez um conto poético em "O visitante", que mistura discos voadores com erotismo num resultado interessante. Roberto Causo, na apresentação do autor, aponta que "ele tem uma das prosas mais elegantes dentro os nossos escritores de ficção científica", o que é ratificado por "O visitante".

Jorge Luiz Calife e Bráulio Tavares, dois dos mais badalados autores de FC do Brasil, colaboram com os melhores contos do livro. Em "Uma semana na vida de Fernando Alonso Filho", Calife mostra as atribulações de um brasileiro em Vênus enquanto o planeta é transformado em uma nova Terra, para recebimento de colonos. Adepto da FC hard, o autor usa o conhecimento científico atual para compor o cenário de sua história. O plano de terraformização, inclusive é chamado de Projeto de Sagan, em homenagem ao famoso astrônomo e divulgador científico Carl Sagan. Mas o texto vai além da questão puramente científica, adentrando no impacto psicológico que condições extremas provocam no protagonista.

Braulio Tavares, autor, entre outros livros importantes, do volume Ficção Científica da coleção Primeiros Passos, mostra uma realidade em que o ser humano alcançou o espaço, mas apenas para entrar em uma guerra perpétua com outra raça. O texto "Mestre-de-armas" lembra "O Jogo do exterminador", de Orson Scott Card, na visão crua da guerra.

No geral, os contos da coletânea foram muito bem escolhidos e dão uma visão abrangente da FC nacional em suas várias fronteiras. Um livro que interessa aos fãs e não fãs.

Para ir além






Gian Danton
Macapá, 3/5/2010

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