COLUNAS
Quarta-feira,
7/12/2011
Dostoiévski era um observador da alma humana
Luiz Rebinski Junior
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Pouca coisa a respeito de Dostoiévski ficou para trás depois que Joseph Frank publicou a gigantesca biografia, em cinco enormes volumes, do escritor russo. Ainda assim, quase todo material que sai sobre o autor de desperta interesse. Dostoiéveski, além de um escritor brilhante, sempre foi bom de venda. Seus romances estão sempre na prateleira. O livro Correspondências (1838-1880) tenta refazer a trajetória genial do escritor por meio da pena do próprio Dostoiévski. Aliás, um Dostoiévski na intimidade, revelado em cartas que o escritor enviou a amigos, familiares e editores.
O tradutor dessas cartas - até então inéditas em português -, Robertson Frizero, fala sobre alguns aspectos da obra do genial escritor, como seu suposto antissemitismo, a dependência do jogo e as ideias que originaram obras-primas como Os irmãos Karamazov.
1.Nas correspondências de Dostoiévski que traduziu, é possível sentir uma preocupação política do autor em relação à sua própria ficção? No sentido de direcionar o texto a um determinado viés político?
Dostoiévski sempre teve uma preocupação de abordar, em sua literatura, as questões mais pungentes de seu tempo. O que percebo a partir de suas correspondências - e de sua literatura - é uma mudança marcante de rumo depois de sua prisão, em 1849, acusado de conspirar contra o czar Nicolau I ao pertencer ao grupo de intelectuais conhecido como o "círculo de Petrachevski" - uma alusão ao editor em cuja casa aconteciam as reuniões desse grupo. Antes da prisão, Dostoiévski tinha uma clara intenção política em seus escritos - seu primeiro romance, Gente pobre (1845), ganha a simpatia de um dos principais críticos literários da época, Vissarion Bielinski, justamente por seu alinhamento com suas ideias políticas. O Dostoiévski que surge depois dos anos de prisão e exílio na Sibéria parece mais interessado em estudar os tipos humanos e a consequência de certas ideias na vida em sociedade. Mesmo em romances repletos de política, como Os Demônios (1870), em que acompanha a formação de uma célula revolucionária, o autor mostra-se mais preocupado em compreender o fundo psicológico do que une os revoltosos do que propriamente o panorama social que os motiva; Dostoiévski vê a revolução como uma consequência de uma "doença espiritual" mais que uma "doença social".
2. Nas cartas, é possível ter acesso a informações de "bastidores", de ideias que viriam a se materializar e se tornar livros, não?
Em torno de 1870, Dostoiévski se corresponde com Nikolai Strakhov, seu editor, e Apollon Maikov, escritor e seu amigo, sobre seus dois grandes projetos de romance, aos quais intitulara Ateísmo e O grande pecador, e que posteriormente seriam as sementes de Os Irmãos Karamazov: Dostoiévski fala dos dois projetos sempre sob a perspectiva das implicações morais da ausência de Deus naquela sociedade, está preocupado não com a política, momentânea, mas com os reflexos do que as ideias filosóficas trariam para o futuro da humanidade - e, para isso, parte sempre da criação de personagens que condensem as reações possíveis a tais ideias. É o caso do atormentado Raskólnikov, em Crime e castigo: Dostoiévski, o autor, pergunta-se qual seriam os efeitos na vida de um homem das ideias do super-homem de Nietzsche, do homem que se sente intelectualmente superior ao ponto de não precisar seguir as leis caso suas ações tenham uma causa nobre - e mostra isso através da trajetória de Raskólnikov, do assassinato que comete por razões fúteis à redenção ao assumir sua culpa e entregar-se à justiça.
3. Dostoiévski passou anos na prisão por conta de seu envolvimento político com um grupo que tramava contra o Czar. Dessa experiência nasceu Recordações da casa dos mortos. É possível ler Dostoiévski - e ter um entendimento satisfatório - sem conhecer o contexto histórico e político da época?
Recordações da casa dos mortos é, acima de tudo, um livro sobre a crueldade do cárcere e de como as pessoas reagem diferentemente à prisão. É um livro que nasceu da experiência de Dostoiévski na Sibéria, episódio que teve profundos reflexos em sua vida, mas não é um livro autobiográfico, nem uma obra que exija, para sua compreensão, um conhecimento maior do que era uma prisão russa e das razões pelas quais nobres, aristocratas e gente do povo eram encarceradas juntas, em regime de trabalho forçado. A experiência da perda de liberdade sobressai da obra e é capaz de comover qualquer leitor. Outras camadas de compreensão podem surgir de uma maior informação que se tenha sobre a Rússia de seu tempo, mas o que torna geniais Dostoiévski e outros escritores como ele é a capacidade de oferecer ao leitor a possibilidade de absorver da obra diversos significados e níveis de fruição da leitura.
4. Dostoiévski também foi acusado de flertar com o antissemitismo, mas pouco se fala sobre isso. Acha que seus méritos literários, de certa forma, eclipsaram suas opiniões?
A acusação de antissemitismo atribuída a Dostoiévski geralmente vem da maneira caricatural como ele retratou o personagem judeu Isaac Fomitch em Recordações da casa dos mortos, de algumas passagens em Os irmãos Karamazov e de Os Demônios, e mesmo de alguns escritos esparsos em seu Diário de um Escritor. Caberiam aqui alguns questionamentos - desde a investigação se o antissemitismo de Dostoievski não seria apenas uma extensão de seu combate a tudo o que não fosse eslavo, ou mesmo o discurso de um escritor que busca atingir determinada fatia de seu público numa época em que o exagero da caracterização de Fomitch, por exemplo, era apenas um reflexo do pensamento da época. Não me recordo de outros momentos em sua obra ficcional em que ele tenha reforçado uma postura antissemita, e acho sempre um tanto temerário acusar um autor por conta da voz de um narrador em sua obra ficcional.
Há que se ter em mente, ainda, que o conceito de antissemitismo no século XIX era distinto do que hoje o termo significa para nós, conhecedores do sofrimento imposto ao povo judeu por conta desse antissemitismo disseminado na Europa do século XIX. O curioso é que o próprio Dostoiévski sustentou, em vida, que não era antissemita.
Nesses casos, vale ressaltar o valor literário do autor, e contextualizar aquilo que em sua obra hoje pode soar temerário para o leitor. É o mesmo caso de Mark Twain e sua caracterização do negro em obras como Tom Sawyer e, sobretudo, As aventuras de huckleberry Finn. Há que se recorrer a outras ações da vida do escritor que reforcem ou apaguem as suspeitas - no caso de Dostoiévski, sua posição de defesa dos direitos civis dos judeus junto ao czar Alexandre II mostra que seu possível antissemitismo tinha raízes distintas daquelas do partido nazista alemão; em Twain, observa-se tamanha ironia nas passagens em que os negros são vilipendiados, e sabe-se hoje da luta de Twain pelos direitos dessas pessoas, que se torna tolo condenar sua obra por conta de certas gírias e termos alusivos aos negros que o tempo tornou ofensivos.
5. Além da política, há traços autobiográficos na obra do escritor, como o fascínio (e dependência) ao jogo. Em que esses elementos ajudaram na elaboração da obra do escritor?
Dostoiévski escrevia sobre seus fantasmas. Os Demônios (1870), por exemplo, traz elementos de suas recordações de quando era membro do círculo Petrachevsky e das observações que fez ao acompanhar pessoalmente o julgamento, em 1869, de um grupo de jovens, de uma célula radical chamada "Vingança Popular", que mataram um de seus colegas de grupo político. O jogador (1867) trata não apenas do vício do próprio Dostoievski, que no mesmo ano de lançamento do livro iria perder todo o seu dinheiro em uma mesa de jogo, mas também de muitas cenas que assistira em viagens anteriores feitas à Alemanha, onde os russos perdiam pequenas fortunas na jogatina.
6. Aliás, Dostoiévski pode ser rotulado como um escritor autobiográfico?
Não creio que possamos classificar Dostoiévski como um escritor autobiográfico, não nesse mesmo sentido que entendemos a obra de autores como a Marguerite Duras de O amante - livro no qual ela narra de modo magnífico, em terceira pessoa, seu primeiro envolvimento amoroso. Dostoiévski era um observador da alma humana, que se inspirava em pessoas reais, de nomes célebres da Rússia de seu tempo aos tipos comuns que encontrava nas ruas. Aproveitava essas observações para compor as personagens e, sim, usava muito do que ele mesmo vivia em sua ficção. Mas é um escritor que aprendeu com a vida e foi capaz de tornar sua experiência universal, sem fazer de sua literatura um baú de reminiscências.
7. Os autores russos do século 19 utilizavam a literatura para discutir questões práticas da sociedade em que viviam, ficcionalizando fatos. Acha que, de alguma forma, pode haver prejuízo à literatura quando isso ocorre, já que o livro pode se tornar datado ou mesmo incompreensível fora de um contexto histórico? E porque isso não aconteceu com os livros de Dostoiévski?
A literatura é eminentemente estética, não deve ser vista como registro de eventos históricos, fenômenos sociais ou ideias. Suas ferramentas são de natureza ficcional, metafórica, simbólica, e essas não permitem uma leitura puramente documental dos elementos representados. Mas, ainda assim, ela expressa uma visão de mundo do autor que é, em última análise, sua relação com o tempo e espaço históricos que habita, sua reação emocional diante de certos temas e das soluções que vislumbra para os problemas ao seu redor - e que marca a ligação da obra literária com a sociedade e a História.
A literatura não se ressente de ser usada para discutir as questões práticas e contemporâneas; em verdade, grande parte do que é debatido em filosofia surgiu antes na literatura - os escritores captam o momento, o pensamento da época e colocam essa percepção em suas obras, quase como sibilas que prenunciam algo novo a surgir; os filósofos então lançam sobre essas ocorrências um olhar mais reflexivo, sem o apoio da ficção.
Penso que a literatura se ressente mais de histórias mal contadas que de uma relação mais próxima a um momento histórico determinado. Tomemos como exemplo o grandioso Guerra e Paz, de Liev Tolstói. Ainda que seja um romance de profunda relação factual com o que narra a historiografia, o livro não pode ser visto como fonte histórica; a obra expressa, magistralmente, o espírito de uma época, mas mesmo seus personagens históricos - Napoleão sendo o mais famoso deles, mas estão ali presentes mais de XXX - são recriações ficcionais de Tolstói, ali presentes com uma função na narrativa. O romance tem como pano de fundo as Guerras Napoleônicas e a invasão da Rússia por Bonaparte, mas seus três principais personagens refletem três diferentes perspectivas da aristocracia russa naquele momento de surgimento de uma Rússia que rompia com o Ocidente e buscava uma identidade própria. Hoje, o romance de Tolstói sobrevive justamente porque o talento do escritor para contar os dramas pessoais daqueles personagens faz com que eles se aproximem da vida dos leitores contemporâneos, como parte da experiência humana.
Luiz Rebinski Junior
Curitiba,
7/12/2011
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