COLUNAS
Quinta-feira,
14/8/2014
O turista imobiliário
Marta Barcellos
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Tem gente que mora a vida inteira na mesma casa, outros já perderam a conta dos endereços. Particularmente, acredito que o movimento de mudar - de moradia, de emprego, de interesses - é salutar, de tempos em tempos. Por isso, andei pensando em trocar de apartamento, naquele tipo de negócio em que é preciso praticamente sincronizar a venda do imóvel próprio com a compra de outro.
Eu tinha uma turva lembrança da encrenca que isso era, por uma experiência anterior em São Paulo, mas mesmo assim não desanimei: estava entusiasmada com o plano, que parecia bastante factível.
Na prática, porém, percebi que a ideia de escancarar o aconchego de meu lar para a curiosidade de estranhos me agradava bem menos do que espiar o apartamento alheio. Estaria eu descobrindo a minha faceta de turista imobiliário?
Este tipo de turista é tão conhecido no setor que os lançamentos imobiliários parecem dispostos a aceitá-los como uma espécie de "animadores" - penetras bem vindos para agitar a festa. São casais sem programa para o fim de semana que entram e saem de estandes de vendas e apartamentos artificialmente decorados por construtoras, dando uma movimentação ao lugar que pode acabar fisgando o único comprador verdadeiramente interessado que surgir por ali: com tanta gente aparentemente interessada, o pobre (ou melhor, o único "rico" da história) imagina que precisa fechar o negócio rapidamente. Antes dos "outros". É algo semelhante à estratégia do anúncio de "últimas unidades à venda", ou, ainda, de "último lugar disponível" (em sites de passagens aéreas ou hotéis).
Mesmo em imóveis usados ou para alugar, não deve ser coincidência que os interessados (e pseudointeressados) se esbarrem tanto durante a procura: tudo indica que os corretores cuidam direitinho para criar um clima de concorrência. Justo quando você está examinando a cozinha, e constatando que seu espaço jamais será suficiente abrigar uma mesa, chega outra família para olhar o mesmo imóvel. Que cozinha pequena! - é o que lhe ocorre comentar, apenas para mostrar o defeito ao agora rival, já que de repente lhe dá uma enorme vontade de ganhar aquela parada.
Mas digamos que você não seja tão influenciável e, como eu, esteja em busca de um negócio que agrade verdadeiramente a todos - o comprador de seu antigo apartamento, o vendedor do novo e os corretores que provavelmente merecem a comissão por aturarem tanto turista imobiliário. É aí que uma qualidade se torna imprescindível: a paciência. Ao decidir abrir as portas de seu imóvel para um suposto pretendente (depois de gastar uma hora guardando dezenas de objetos que estavam inexplicavelmente fora de lugar), eis que ele surge como uma esfinge, e não como o sujeito com as dúvidas naturais de quem pretende morar no local. Se o corretor não o fizer, você mesmo quebra o silêncio; tagarela sobre as vantagens de morar ali e até é sincero sobre seus motivos para se mudar. Nada. No dia seguinte, nem um telefonema do corretor. Você nunca saberá se perdeu seu tempo por causa de um turista imobiliário ou de um corretor que mostra imóveis de dois dormitórios a quem insistiu que só quer de três.
Finalmente, chega a sua vez de entrar na casa alheia.
Se ela estiver vazia, sem móveis, será divertido planejar como dispor os seus em cada cômodo. Imaginar como seria a sua vida, apreciando o sol da manhã batendo na sala, conforme enfatiza o corretor. Diante de um banheiro antigo, a possibilidade de uma reforma, os armários embutidos perfeitos, quem sabe a banheira tão sonhada. Naquela casa, com tantas qualidades exaltadas pelo corretor que você esquece ser parcial, finalmente encontrará a paz, a vida perfeita. Claro que você ainda não viu a vaga impossível na garagem nem o barzinho infernal localizado bem em frente.
Na hora do sonho, é possível entender a existência do turista imobiliário. Sonhar a vida perfeita, a do comercial de margarina, não custa nada neste tipo de turismo. E a experiência é bem mais intensa do que a de ler sobre viagens exóticas e milionárias em cadernos e sites de viagens - com contingente de leitores composto muito mais por sonhadores do que por turistas com dinheiro para as tais aventuras.
O sonho individualizado, porém, pode ser perturbado, no caso de o turismo imobiliário incluir um imóvel ainda ocupado. Você entrará por cômodos com porta-retratos e notará os objetos alheios que não foram guardados em seus devidos lugares. Saberá que perfume o proprietário usa, ou que come banana no café da manhã.
Numa situação assim, fui recebida por uma senhora proprietária que não parecia nem um pouco constrangida com a situação. Aproveitou para contar a história de sua vida, como o marido falecido era perfeito, como os netos brincaram na varanda mas depois sumiram de vista na adolescência. Eu não sabia se media com os olhos o tamanho da cozinha ou se aceitava o cafezinho.
Ela parecia disposta a escolher, por simpatia, a quem vender o apartamento onde fora feliz por tantas décadas. Fiquei comovida. No elevador, no entanto, me surpreendi com as informações do corretor: a tal senhora aceitava, sim, contrapropostas ao valor elevado que estabelecera. Mas, na hora "H", costumava dar para trás, e tirava o imóvel de venda por meses, ou mesmo anos.
Foi assim que descobri o outro tipo "turismo" no setor de imóveis: o do proprietário que revisita a sua própria vida (idealizada?), utilizando para isso os interessados em morar no seu lar doce lar.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
14/8/2014
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