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COLUNAS
Quinta-feira,
7/4/2011
O suplício da pele
Elisa Andrade Buzzo
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 Foto: Magaly Bátory
Em uma passagem do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, Macabéa enamora-se de uma propaganda de "creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela". Sente desejo de comê-lo às colheradas, diretamente do pote. Faltava-lhe gordura ao organismo, dá como explicação a narradora. Seria este creme, tal qual licor espesso, que poderia lhe restituir um pouco da vida que não tivera? A partir de qual momento necessitamos dele?
Não me parece estranho a personagem, tão carente de vida, necessitar não só do creme, de suas propriedades benéficas e nutritivas, como de sua ideia em geral: consistência, espessura, gordura. E até mesmo, senão principalmente, seu sentido figurado de principal, nata, escol. A palavra até enche a boca do poeta quando ele fala do café, Café Creme. A conhecida cereja no topo do bolo ou o crème de la crème. Brilhante metáfora e ironia clariciana.
Outro dia me perguntei: em qual ponto da vida meu organismo sentiu necessidade de engomar-se, besuntar-se em uma camada de óleo e olor; se até então tinha aversão à viscosidade que o creme imprimia à pele? Por que será que os cremes se tornaram tantos e necessários que nos exigem dinheiro e dedicação? Vamos nos resumir a observar a questão pelas bordas.
A história começa com um pote de vidro com creme de amêndoas. Avermelhado, parecia até mesmo de comer. Mas o cheiro era enjoativo, extremamente adocicado, aquele cheiro de fêmea lisongeira, que chega a dar dor de barriga. Não teria sido de propóstio que a filha deixou o pote escapar das mãos? O vidro do pote, trincado, a gordura estatelada já não teria mais uso.
Vamos voltar para um pouco mais próximos do presente. Também está aí o creme como lembrança da sensualidade. O creme é necessário, sacramental, se o que se trata é a conquista da languidez. A mão que acaria o próprio corpo, o emoliente e flácido contato entre peles, há algo de uma lascívia implícita aí. O rosto rebrilha ao longe e ao se aproximar para um beijo, sente-se o cheiro forte, encorpado.
Ela usaria tanto creme para quê? Retardar o envelhecimento? Hidratar a pele? Protegê-la do sol? Ou era sua vida tão exuberantemente vívida, cheia de si, que transbordava, reluzia. Em que momento, afinal, se dá o estalo em que a necessidade de creme é premente? Teria algo a ver com a verdadeira idade adulta, mulheril, o ato de usá-los, aos montes?
Apenas o banho não basta, é o início de um ritual maior que está por vir. O creme não é o elixir da juventude, mas auxilia em um ponto chave: a manutenção. Ele não vai deixar ninguém mais jovem, nem mais bonito, mas vai varrer as escadas, tirar as traças da parede, as ranhuras das superfícies metálicas para então ostentá-las numa oferta ao toque ― pele exposta suplicante. Sinta o breve bem-estar de se contemplar a casa limpa, desepere-se com a impreterível sujeira. O recomeço. Basta usá-lo uma vez para se fazer um escravo do creme.
Quantas vezes não se avistou a necessidade de um creme em uma perna descamada, um cotovelo cinza e áspero, um calcanhar rachado e duro? Tudo isso porque um só produto não basta. O mercado oferece uma infinidade de produtos hidratantes, aromas e cores, creme para os pés, creme para as mãos, creme para o corpo, creme para o rosto, creme para a área dos olhos, todo tipo de bálsamo para acalmar feridas, atritos, decepções. Como vimos, o creme ameniza problemas, não os resolve, não cerra fendas, não cura rugas, se é que elas deveriam ser curadas.
A era dos cremes veio com uma nova mania: o gosto por observar as farmácias. Passei a adivinhar, talvez prevendo o futuro, as novas necessidades que podem surgir no decorrer da vida, xeretei produtos que não vinha dando a mínima atenção. Cremes e óleos à base de amêndoas para evitar estrias relacionadas à gravidez, cremes para alérgicos, esfoliantes. Atenção, nos rótulos, para o uso equilibrado dos verbos: evitar, amenizar, prevenir.
Duas mulheres jogam conversa fora pelo celular. A mais velha diz: "a gente vai ficando velha, a pele vai murchando". Não deixei de notar no tom brincalhão da voz. Estava aí, talvez, o motivo do creme à Macabéa: a gordura vai embora, o viço, logo a mocidade da pele (que, no caso, a personagem de Clarice Lispector nunca teve a chance de ter, quanto mais de um dia perder. Mas não será no rasgo de sua morte que a essência se mostra?).
Assim como a escuridão não cai de uma vez sobre a luz do dia, é aos poucos, quase imperceptivelmente, que a fome de creme aparece, cresce. Até o ponto em que ― como se nos víssemos diante da noite ― nos damos conta de que, afinal, é chegada a hora.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
7/4/2011
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