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Terça-feira,
26/4/2016
Tricordiano, o futebol é cardíaco
Luís Fernando Amâncio
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Atualmente, há quem afirme que o futebol está agonizando. Embora seja uma posição embebida no saudosismo - “ódio eterno ao futebol moderno” – é um sentimento legítimo. Assusta ver o business dominando o esporte. É o tanto de dinheiro envolvido. É o padrão FIFA de estádios, opa, arenas, que mais parecem anfiteatros. São os clássicos com torcida única. São os gols da Alemanha. Às vezes, o melhor é mesmo assistir ao filme do Pelé. O futebol ficou gourmetizado demais.
Mas toda regra tem exceção. Ainda que “todos os caminhos levem a Roma” – ou seja qual for a cidade onde será a final da Champions League – há trilhas mais tortuosas do que outras. A do Clube Atlético Tricordiano, clube modesto do sul de Minas, é torta como as três curvas do Rio Verde.
O Tricordiano é um time novo, fundado em 2008. Porém, ele veio ao mundo com carcaça e alma de velho. De um velho bem específico, aliás: o Atlético Clube Três Corações (ACTC), agremiação que, entre períodos amadores e profissionais, completaria 100 anos em 2013. Antes, porém, de soprar sua 94ª velinha, com uma desastrosa participação no Módulo II do Campeonato Mineiro de 2007 - sem dinheiro e sem estádio para mandar seus jogos, precisou abandonar o certame depois de cinco jogos - o Atlético de Três Corações fechou as portas atolado em dívidas.
O Tricordiano surgiu no ano seguinte com uma missão bem definida: não deixar órfã de futebol a cidade que se orgulha de ter o Rei como filho ilustre. E, ao ter a existência atrelada a um torrão, o Tricordiano já nasceu rebelde, quebrando a tendência itinerante dos times jovens. Observem só: o Grêmio Barueri já foi Prudente, o Ipatinga passou por Betim, o Guaratinguetá já foi à Americana, o Audax deixou a zona sul paulistana para ir à Osasco e o Nacional Esporte Clube já passou por Coronel Fabriciano, Nova Serrana, Muriaé e, ufa, chegou a Esmeraldas. Dentre outros.
 O simpático símbolo do Tricordiano
Os times que nasceram nas últimas décadas já vieram com o DNA do futebol moderno. Eles surgem atrelados ao capital de grupos de empresários ou empresas multinacionais, com centros de treinamentos melhores do que os de times tradicionais, estrutura administrativa, CEO e tantas outras papagaiadas. Surgiu a curiosa figura do “dono do time”, empresário que não entra no futebol para perder dinheiro. Se a mão invisível do mercado apontar para outra direção, um abraço. O dono leva embora o investimento, o time e a ilusão da torcida.
Se existe algo que não manda no Tricordiano, é o dinheiro. Até porque ele falta. Sem mecenas para descarregar dinheiro no clube, seu maior patrocinador costuma ser a prefeitura municipal. O que, convenhamos, passa longe de ser o ideal. Tornar o time sustentável, com receitas estáveis, é o árduo desafio. O perrengue financeiro é tanto que, em um dos primeiros mantos sagrados do Tricordiano, uma igreja evangélica constava entre os patrocinadores. Um verdadeiro time ungido.
Mas, se há um proprietário do Tricordiano, é a sua torcida. Poucos times do interior têm seguidores tão fanáticos quanto os de Três Corações. A Galofúria, sua torcida organizada, transforma o Elias Arbex, o estádio, num caldeirão. Ou caldeirinha, já que a cancha, acanhada e com arquibancadas arcaicas, tem público liberado para 2500 pessoas. Os “desorganizados” também cumprem o seu papel. Tem fumaça vermelha, ola, tios cuspindo marimbondos no alambrados, do ladinho dos bandeirinhas, churrasquinho, cantoria... Quando vou ao Elias Arbex, me sinto a Globo contabilizando as manifestações pelo impeachment da Dilma: saio sempre com a impressão de ter uns 50 bilhões de torcedores. Jogar como adversário em Três Corações não é fácil. Assistir a jogos lá, um espetáculo.
 O terreiro do Galo, onde o lugar mais concorrido é o alambrado
Sinta só como foi o clima na cancha de Três Corações em 2009, quando o time ficou em terceiro na Segunda Divisão do Campeonato Mineiro – que, na prática, é nossa terceirona – e ganhou a dignidade mínima de disputar um campeonato onde há o risco do rebaixamento.
Destaque para a torcida ovacionando Binho CACHACEIRO, ídolo do time. Um craque com essa alcunha é uma prova de que o futebol respira.
O êxtase não foi diferente na virada épica contra o Uberlândia, em 2015. Ora, um time sair perdendo de 4 a 0 em casa parece uma catástrofe irremediável. Eu, que estava no estádio, já me intrigava com a temperatura glacial dos meus pés. Não os arredei de lá, todavia, numa das decisões mais acertadas da minha vida. No segundo tempo, a reação espetacular, uma das maiores da História – com agá maiúsculo mesmo, me permitam. Fim de jogo e 5 a 4 para o Tricordiano. Só não foi 6 a 4 para não parecer que foi fácil. Dizem que nas semanas seguintes um DVD com a partida na íntegra estava sendo vendido em Três Corações. Eu compraria sem perguntar o preço.
Neste ano, outro dia histórico: nova virada, desta vez contra o poderoso Atlético Mineiro, no Independência, La Bombonera de Minas (“caiu no Horto, tá morto”?). 4 a 2 para os visitantes. Fora o baile. Um feito para um time que fazia um campeonato atrapalhado e parecia destinado ao rebaixamento – sobre a jornada de 2016, indico o texto do amigo Thales Machado. Farra para os 131 torcedores adversários que puderam cantar “o Independência é nosso, aha uhu”. Esses caipiras do interior, uns abusados, fizeram até “olé”. Nunca antes na história desse modesto time, amigos. E não me venham com mesquinharias de que o time da capital era o reserva, de que o terceiro gol foi, na verdade, um cruzamento errado. Erro é não reconhecer uma pintura daquelas. Foi diante dos meus olhos.
 O Independência foi nosso
Por tudo isso, para a turma que está se arrumando para o velório do futebol, um conselho: mude de canal. Ou melhor, desligue a tv. Há partidas extraordinárias acontecendo naquele campinho que você não dá nada por ele. É só arriscar. O Tricordiano está arriscando. Em tempos de futebol gourmet, o Tricordiano é aquele lanche X-Podrão do trailer da esquina. Sem firulas. Só sabor.
Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte,
26/4/2016
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