COLUNAS
Terça-feira,
27/6/2023
Nasce uma grande pintora: Glória Nogueira
Jardel Dias Cavalcanti
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Glória Nogueira começou a pintar durante a pandemia. Sem formação artística, parece que guardava dentro de si um universo pronto para desaguar sobre a tela. Talvez nem ela pudesse imaginar que um mundo de cores e formas se revelaria surgindo de suas mãos no dia em que segurasse um pincel. E o fato disso ocorrer após os 60 anos de idade torna tudo mais surpreendente ainda.
O milagre está aí (em suas telas), que já lhe rendeu uma primeira exposição, que aconteceu na Galeria Rose Malveira, em Campinas, no mês de março de 2023.
O que é mais excepcional numa pintura abstrata encontra-se na obra de Glória Nogueira: a capacidade de equilibrar forma, ritmo e cor. É notável, por exemplo, a sua capacidade de aproximar uma cor rosa matinal de um amarelo-alaranjado, conjugar formas sinuosas curtas com formas alongadas, e permeando-as por pontos que se sobrepõem ou se interpõem criando mundos que não poderíamos imaginar nem em sonhos. É como se estivéssemos diante de veios de cores preciosas que faíscam dentro de uma mina, como se diamantes e ouro pudessem ser encontrados nas fissuras dessas cortinas de cores e formas.
Embora sua pintura possa ser de alguma maneira aproximada do expressionismo abstrato americano, diferencia-se dele por seu aspecto sensual, que não busca um sentido dramático-existencial, filosófico, etnográfico ou social como acontecia na pintura dos americanos Rothko, Newman, Pollock, De Kooning, Gottlieb e Klein.
A linguagem autossuficiente da trama das formas criadas por Glória Nogueira ― com sua indiferença aos valores externos à obra ― exige do público uma aproximação direta com a tela sem os referenciais tradicionais que poderiam possibilitar uma interpretação objetiva das pinturas. Estamos diante de uma espécie de mundo inacessível ao espectador senão pelo encantamento.
O sentido da pintura de Glória Nogueira vem da própria pintura enquanto textura e forma e, para além desses elementos, da força que a cor ocupa em cada tela. A ausência de um desenho programado, que poderia ser preenchido posteriormente pela cor, dá a artista a liberdade de ter (e tecer) a cor como princípio que estabelece o andamento da criação das telas. Uma liberdade sem limites, no fim das contas, possibilitando que forma, textura e movimento se relacionem através de vibrações inusitadas produzidas pela aproximação de tons que fazem soar agradavelmente – e com tal maestria - essa música visual.
Alguns teóricos defendem a importância da cor na pintura e exaltam o seu encanto e brilho chegando a denominar a pintura, por seu encantamento, de “a bela feiticeira”. Outros defendem a cor como “a alma e a perfeição última da pintura”. Como se a cor desse alma e vida ao corpo da pintura, possibilitando no seu movimento, a sensação de algo vivo. E, por sua natureza sensível, seria a cor quem proporcionaria o prazer gerado pela pintura.
No seu Ensaios sobre a pintura (1795), Diderot exalta a cor: “É o desenho que dá forma aos seres; é a cor que lhes dá vida. Eis o sopro divino que os anima. Não faltam excelentes desenhistas; mas há poucos grandes coloristas.”
Desde Delacroix, a ideia de que a forma deve nascer da própria cor vai se afirmando na arte. Nos seus Diários (1852-1854), afirma que o artista deveria estudar as cores em si mesmas, em relação aos seus contrastes. Dizia ainda: “Os coloristas devem modelar com a cor assim como o escultor modela com a argila. É preciso sempre modelar com massas sinuosas. Entendo por cor verdadeira aquela que produz o sentimento de espessura”.
A pintura de Glória Nogueira está dentro dessa perspectiva. O que a aproxima também das ideias de Baudelaire, para quem os verdadeiros desenhistas são os coloristas: eles desenham “porque colorem”, dizia, afirmando o valor da cor.
A própria ideia das “correspondências” nasce da ideia do valor das cores: “encontro uma analogia e uma relação íntima entre as cores, os sons e os perfumes. As margaridas amarelas e vermelhas produzem em mim um efeito mágico. Ele me faz cair num devaneio profundo, e então escuto, como que ao longe, os sons graves e profundos do oboé”. Baudelaire, ainda afirmando o valor da cor, contrapunha, “os desenhistas puros, que são filósofos e teóricos, aos coloristas, que são verdadeiros poetas épicos.”
Na pintura de Glória Nogueira o abundante fluxo de cores e formas em perfeita harmonia, dilatando-se aqui e ali na tela, como fragmentos que reunidos formam um conjunto admirável de imagens, transporta o espectador para espaços não conhecidos, cuja expressão, criada na soma das pinceladas, nos coloca num terreno difícil de explicar. Uma espécie de silêncio da razão se impõe (talvez a artista não pense no que está criando, mas intua formas que se dependesse do aprendizado formal da arte não encontraria ali o espaço de sua expressão ou existência).
Se quisermos nos aproximar do resultado visual das telas de Glória Nogueira com alguma imagem objetiva... talvez campos floridos, céus movimentados, tempestades de cor, chuva de pétalas de flores ou campos de folhas coloridas caídas em algum outono de nossa memória ― estas imagens poderiam dar conta daquilo que forma suas telas: um acorde harmônico fruto da reunião de formas e cores.
O trabalho de Glória Nogueira é daqueles que existem para nos provar de que a arte sempre está na dianteira da explicação; e que a explicação não consegue, de fato, jamais alcançá-la. É um mistério, um enigma, com lados obscuros, que mesmo a perspicácia da razão não dá conta de penetrar. A obra de arte é a morte dos seus pretendentes.
O que a pintura de Glória Nogueira exige é que acionemos a nossa sensibilidade, instrumento que nos permite encontrar o Belo encarnado, revestido de uma forma sensível na arte.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
27/6/2023
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