COLUNAS
Quinta-feira,
3/4/2003
O lado A e o lado B de Durval Discos
Lucas Rodrigues Pires
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O slogan de publicidade do filme Durval Discos afirma que "tudo na vida tem um lado A e um lado B". O filme de Anna Muylaert, já em exibição nos cinemas, é exatamente assim: tem um lado A que caminha muito bem, mas o lado B deixa um pouco a desejar.
Lado A
Para começar, Durval Discos tem uma das aberturas mais criativas e fantásticas do cinema brasileiro contemporâneo. A câmera flutua pelas ruas de Pinheiros, bairro da cidade de São Paulo, e em sua paisagem natural inclui os créditos do filme, ora mergulhando em lanchonetes, chaveiros, casa de jogos e mesmo nos transeuntes do momento. É uma seqüência longa, de uns quatro minutos, sem cortes, que lembra muito a célebre cena inicial de A Marca da Maldade, de Orson Welles. Depois disso, entram em cena os personagens. Durval é um quarentão dono de uma loja de discos de vinil - que não aderiu ao CD e nem pretende - que mora com a mãe num dos sobrados de Pinheiros. Solteiro, ele segue sua vidinha sem graça com a sempre constante presença castradora da mãe, numa atuação excepcional de Etty Fraser. Tudo muda quando decidem contratar uma empregada para ajudar nos afazeres domésticos. Eis que surge Célia, amável e que inexplicavelmente aceitou um salário de 100 reais. Dois dias depois ela some e deixa uma garota de 5 anos, Kiki, e um bilhete, onde pede que cuidem da menina enquanto estiver fora. A partir daí, o roteiro, escrito pela própria diretora, dá uma reviravolta non-sense, deixando o espectador deslocado na trama, perdido entre o suspense e o surrealismo da situação. Não revelarei o que acontece para não estragar a história de quem ainda não viu o filme.
Lado B
Dada a linha narrativa da história, é preciso ressaltar alguns pontos cruciais na produção. Uma delas é a trilha sonora. Houve um apreço muito grande por parte da equipe em conseguir algumas canções para o filme. Há desde Tim Maia a Novos Baianos, passando por Jorge Ben Jor, Elis Regina e Toquinho e Vinicius. Tais músicas estão inseridas no ambiente do filme, tocadas na vitrola antiga de Durval. E exatamente por isso que em muitas passagens o som da música atrapalha a compreensão dos diálogos. Num dos primeiros papos de Durval com Elizabeth (Marisa Orth) é quase impossível entender o que dizem.
Lado A
Em compensação, Durval Discos é aula de cinema a quem gosta da arte. Se disse acima que a abertura era digna de Orson Welles, reforço afirmando que todo o filme tem elementos do cinema do gênio que filmou Cidadão Kane. Muitos elementos, inclusive deste, como os ângulos inusitados de câmera, o aprofundamento de campo e o enquadramento que rebaixa o teto da casa, o que cria um aspecto de achatamento e deformação dos objetos em cena. Tudo isso foi visto em Cidadão Kane e parece que Anna Muylaert incorporou a seu trabalho.
O trabalho de fotografia e câmera lembra, trazendo a comparação ao campo presente, o cinema de M. Night Shyamalan, em especial Corpo Fechado. Poucas vezes a câmera fica estática. O movimento suave de aproximação e recuo, além do artifício de dar o olhar subjetivo do protagonista (quando a câmera segue o olho do personagem), dão ao filme um respiro de criatividade e diferencial no meio do cinema chapa branca que se vê atualmente no mundo hollywoodiano.
Se Durval Discos não traz uma estética moderna para o cinema brasileiro, como fizeram O Invasor, Cidade de Deus e Abril Despedaçado, viaja no tempo e recria o cinema clássico alternativo americano, no qual Orson Welles se inclui como seu maior expoente. Bebendo nessa fonte, aliada à trilha sonora escolhida a dedo, a diretora construiu um filme repleto de cenas marcantes que vão ficar marcado na história do cinema brasileiro da Retomada. É exatamente esse aspecto que explica os sete prêmios recebidos pelo filme no último festival de Gramado, onde concorreu com o excelente Dois Perdidos numa Noite Suja, que entra em cartaz dia 4 de abril. Como exemplo de cenas memoráveis, que ficam na mente do espectador ao final da sessão, incluo a já citada abertura; a corrida de Kiki de bicicleta pela casa; a dança de Durval e Kiki em volta do balcão de discos ao som de "Mestre Jonas"; e a mais surreal das cenas, digna de um quadro de Dali - a composição de um cavalo montado por uma garota vestida de bailarina pintando a parede com uma vassoura embebida em sangue, um cadáver deitado na cama, uma senhora a arrumar o guarda-roupa, e tudo isso dentro de um quarto de um sobrado!!! Não posso esquecer de inserir outra cena magistral nesse rol de preciosidades - a volta de charrete pelo asfalto de São Paulo ao som de "Besta É Tu" com os Novos Baianos. Mais um momento magistral que há em Durval Discos.
Pesando positivamente também está o elenco. Ary França, com seu cabelo enorme e cara de bobo inocente, passa toda a desilusão de um solteirão preso à mãe. Etty Fraser está sublime como essa mãe que, viúva, só teve como pedir socorro ao filho e nele se apoiar. Com a chegada da menina, o objeto de devoção da mãe passa a ser a pequena, a quem até um cavalo de verdade é dado e levado pra dentro de casa. Essa ligação, de um simples gostar torna-se obsessão e culmina com a loucura plena. Foi esse sentimento de transformação, de evolução da insanidade - muito bem caracterizado pela atriz - que fez com que o absurdo daquilo fosse realmente visto como absurdo.
Lado B
Se for assim, esse absurdo acaba por explicar o non-sense pelo qual critiquei o filme anteriormente. Pensando bem, faz parte do contexto e da idéia de filme idealizada por Muylaert.
Lucas Rodrigues Pires
São Paulo,
3/4/2003
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