COLUNAS
Quinta-feira,
1/7/2004
Mínimos, Múltiplos, Comuns, de João Gilberto Noll
Ricardo de Mattos
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Creio que Mínimos, Múltiplos, Comuns (2.003), de João Gilberto Noll (1.946), é o livro mais difícil que recebi não para ler, mas para comentar. Primeiro porque o essencial a ser falado sobre o volume já consta da apresentação de Wagner Carelli e da introdução, que à falta de assinatura pressuponho ser d'ele mesmo. Segundo porque posso dar uma ideia da excelência do todo, mas ser negligente com a excelência da parte. Falar demais a respeito dele é assumir o comportamento do visitante que narra pelo telefone celular cada fotografia ou tela vista n'uma boa exposição. Primeira sugestão, portanto, é o silêncio durante a apreciação.
O volume é composto por 338 textos escritos para publicação na Folha de São Paulo entre Agosto de 1.998 e Dezembro de 2.001. Por opção do escritor, cada texto deveria ter o máximo de 130 palavras. Não faço grande questão de classificar um texto como novela, ensaio ficcional, conto, miniconto, romance. Nome por nome, prefiro o escolhido pelo próprio autor para classificação dos pequenos textos: instantes ficcionais. Tidos por ele mesmo como um "franco hibridismo entre a prosa e a poesia", não deve ser grande pecado apresentá-los, em suma, como prosa poética.
Os textos não foram publicados em jornal na mesma ordem constante do livro. O critério para o agrupamento posterior visou formar cinco conjuntos sucessivos seguindo uma "cronologia da Criação: Gênese, Os Elementos, As Criaturas, O Mundo e O Retorno". Estes conjuntos subdividem-se em outros subconjuntos, tornando a coesão perceptível e apreciável d'estes "microcontos poemáticos em que você suspende por agudos momentos o fluxo normal de uma narrativa, a princípio mais extensa e que parece correr pelo livro todo. Essa narrativa, é claro, só vai aparecer na ponta de icebergs de cada peça de escrita. Então a coerência do título: Mínimos, Múltiplos, Comuns" (entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo de 27 de julho de 2003).
Algumas narrativas parecem recortadas de uma situação. Outras são uma síntese, uma conclusão, e há ainda as possuidoras de começo, meio e fim. Alguns d'estes minicontos tratam de pontos do cotidiano sem grande expressão temporal - Fôlegos. Outros, pelo contrário, referem-se àquele instante em que o homem dá-se conta da totalidade d'uma situação, o momento da conclusão de uma meditação paralela inconsciente - O Não. Ou um quadro trazido inteiro pela memória - Sarça Ardente. São mínimos na expressão do tempo, múltiplos pois corriqueiros - salvo exceções - e comuns, tão comuns que podemos vivenciá-los imperceptivelmente. Recomendo a leitura vagarosa, pausada e atenta, não o pantagruelismo que cometi.
Fúria, de Salman Rushdie.

Se Versos Satânicos colocou o escritor indiano Salman Rushdie (1.947) entre as personae non gratae do islamismo, seu romance Fúria (2.001) não provoca sustos sequer na velhinha mais sensível.
O personagem principal d'este romance é Malik Solanka, professor universitário e artesão de bonecos. O argumento é fraco: Solanka criava bonecos como passatempo. Um d'estes, "Little Brain", ganhou um programa de televisão cuja finalidade inicial era apresentar os grandes filósofos ao público. A boneca torna-se uma celebridade e foge do seu controle, desencadeando-lhe uma neurastenia que, muito mal conduzida, quase culmina na morte da mulher e do filho. Dificilmente o professor ganhará um lugar entre os famosos mal-humorados da literatura universal.
Após o quase homicídio, o personagem refugia-se nos Estados Unidos da América. Parece uma contradição, pois o anti-americanismo é o vinagre amaríssimo a encharcar as páginas. Se possui pavor indescritível pelo país, por que o escolheu como refúgio? A resposta demora um pouco, mas é presente. Espezinhado pelo remorso, reflecte durante uma conversa com o amigo Jack Rhinehart: "Como dizer a América é a grande devoradora, eu vim à América para ser devorado?". A intenção da viagem é sua própria aniquilação, como penitência pela ameaça infligida à família.
Em Fúria, Rushdie destaca-se pela prolixidade. Diz em dez páginas o que poderia resumir em apenas uma. Repete-se tanto que se pularmos alguns parágrafos, e mesmo algumas páginas, a compreensão da narrativa não é prejudicada. Daí duas perguntas. A primeira: se for para ler aos saltos, para que ler? A segunda: é realmente interessante uma estória que admite tanta superficialidade em sua leitura? Eis um dano causado pelo escritor a si mesmo. O que é uma pena, pois enxuto e bem ordenado o texto, teríamos um livrete interessante. Tenho para mim que a prolixidade, se contaminada pela repetição, revela pressa e falta de revisão. No geral, talvez indiferença da pessoa com seu trabalho. Por isso temos uma obra onde impera o "quase". "Quase" romance de ideias; "quase" ficção policial; "quase" romance psicológico. O personagem é "quase" ateu e "quase" politicamente correto.
As duas principais referências do professor Solanka têm verniz de ilustração. Para iniciar a confeição de bonecos, não lhe serviu um fantoche qualquer, mas precisou maravilhar-se com a exposição de casas de bonecas vista no Rijksmuseum de Amsterdan. Para explicar sua fuga de Londres a New York, e apesar de reconhecer a contradição, recorreu à filosofia indiana e proclamou-se adepto d'um tipo mui pessoal de sanyasi. O sanyasi pode ser entendido como o quarto estágio evolutivo da vida humana, caracterizado pela renúncia à totalidade dos bens materiais e pela busca solitária da divindade. Já foi mencionado com maior precisão n'O Fio da Navalha, de Maughan. O professor Solanka, contudo, renunciou à família e ao meio social em que vivia e esta renúncia é mero eufemismo para abandono. De mudança para New York, continuou recebendo seus direitos pela criação da boneca "Little Brain". Não se tornou mendicante nem abandonou o conforto habitual. Além disso, o estágio sanyasi pressupõe três anteriores: o brahmacharya, o grehasta - ou grhastha - e o vanaprastha. Mal e mal mencionando aquela quarta etapa, Rushdie perdeu a oportunidade de apresentar-nos mais de sua cultura original através d'uma obra mais consistente. Contudo, acaba descrevendo a situação de quem nem abandonou completamente as origens e nem foi completamente aceito pelo novo meio.
Para ir além






Ricardo de Mattos
Taubaté,
1/7/2004
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