COLUNAS
Terça-feira,
13/5/2008
Um clássico argentino
Daniel Lopes
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Como uma pequena história de amor e desamor, juventude esperançosa e vida adulta desiludida consegue fazer tanto sucesso? Porque Boquitas pintadas, de Manuel Puig, foi um sucesso, traduzido mais recentemente no Brasil pela José Olympio (Boquinhas pintadas, José Olympio, 2004, 238 págs.). Lançado em 1969 e levado ao cinema cinco anos depois pelo diretor Leopoldo Nilsson, catapultou a carreira de seu autor. Uma das razões para tal recepção, conforme já amplamente abordado pela crítica, é a forma do livro. No quesito vanguarda, o New York Review of Books colocou Puig junto a Flaubert e Joyce.
Minha relação com os romances de montagem mirabolante não é de muito sucesso. Para ficar com os brasileiros: adorei A febre amorosa (1984), de Eustáquio Gomes, mas apenas consegui acabar A festa (1976), de Ivan Angelo; e em Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, não passei nem da décima página, coitado de mim, o simples folhear das páginas ― cheias de esqueletos humanos, tópicos em negrito, adições e subtrações matemáticas, imagens geométricas, boxes de notícias, diálogos com pontuação no início da frase, onomatopéias em fontes berrantes... ― tudo isso e muito mais me deixou com pesadelos por pelo menos três noites.
No caso do romance do escritor argentino, há expedientes tais como cartas; descrição ultra-detalhada de álbuns de fotografia; trechos de agendas; ocorrências em um dia de vida dos personagens, com profusão de detalhes, incluídas marcações cronológicas; despachos burocráticos; fichas médicas; boletins de ocorrência policiais; confissões na igreja, onde espaços em tab fazem as vezes da fala do padre; seções de astrologia; orações; conversas telefônicas em seqüência; diálogos secos sem personagens identificadas, com a transcrição de seus pensamentos logo em seguida, o que muitas vezes contradiz o significado das falas; e muito fluxo de consciência, no melhor estilo joyceano. Ufa!
E a verdade é que, displicente, nem anotei todas as artimanhas de que lança mão Manuel Puig.
(Seu livro pode parecer anti-convencional, e é, mas perto de Zero é quase canônico. Enfim.)
Muitos desses recortes sofrem apenas ligeiras interrupções de uma voz narradora que, muitas vezes, vem em itálico e se contenta em passar informações protocolares, sem qualquer julgamento. Daí uma das observações mais feitas em relação às obras de Puig, principalmente as primeiras, ser de que quem escreve os livros são os personagens, e não o autor. Um exagero, que, por isso mesmo, esconde muito de verdade.
O romance começa em 1947. E começa pelo fim ― o que, a essas alturas do campeonato, nem é mais algo tão original assim. Uma revista mensal de Coronel Vallejos, povoado que dividirá nossa atenção com a capital Buenos Aires, informa da morte de Juan Carlos Etchepare, aos 29 anos, por problemas pulmonares. Sucessivas cartas de Nélida Fernandez de Massa, a Nené, chegam de Buenos Aires para dona Leonor, mãe do recém-falecido e moradora de Vallejos. Solicitam, as missivas, que Leonor encontre e devolva a correspondência que Nené enviara a Juan quando os dois eram mais próximos, ainda na pequena cidade.
A escrita dessas cartas de 1947 mostra uma Nené casada, mãe de dois filhos pequenos, com um marido bem sucedido nos negócios, e que freqüenta os melhores centros da capital argentina. Uma típica família de classe média alta. As linhas do narrador entre uma carta e outra são tão breves que poderia-se mesmo dizer que são inconvenientes, intromissões em vez de intervenções. Mas são utilíssimas. Mostram-nos uma Nené deixada sozinha em casa com os meninos, aos quais se refere como "animais", enquanto o marido anda por aí. Insatisfeita, enojada de uma vida que deveria ser o sonho de qualquer aspirante a bem-sucedida (aspirante que ela mesma fora nos tempos de vacas magras no interior do país), mas que mostrou-se uma sucessão de aborrecimentos a servir de alimento para a nostalgia, saudade de um tempo em que Juan Carlos, lá na pequena Vallejos, era tudo que ela queria.
Depois dessas cartas, a narrativa regride dez anos. De 1937 adiante, saberemos dos desenvolvimentos que levaram àquele final do início. Outros personagens entram em cena, sempre no povoado. Os principais são a professora María Mabel Sáenz, que divide seu coração entre Juan Carlos e um "jovem estancieiro de origem inglesa" e do agrado de sua família; o operário Francisco Catalino Páez; a ingênua doméstica Antonia Josefa, que terá um filho com Francisco; e, claro, o próprio Juan, agora mais que uma mera presença em nota de revista, e em torno do qual todos giram.
Com problemas de saúde, Juan teria que levar uma vida de restrições quanto a cigarros, bebida e mulheres, além de tratamentos médicos. Garoto festivo, de classe média, não leva a sério nenhuma das prescrições dos médicos, os quais, a propósito, visita com uma freqüência bem abaixo da recomendável. Diz ao amigo Francisco Páez que prefere viver pouco fazendo as coisas que lhe dão prazer do que viver muitos e infinitos dias insossos. Uma resolução corajosa do nosso herói, brioso de seus dotes e poder de sedução, talvez mesmo achando improvável morrer (ele!) de uma mísera doença pulmonar. Orgulhoso mesmo quando está numa casa de repouso para pacientes em estado grave. Mas a morte, que não tem nada com isso, como vimos o levou antes dos 30.
Ardiloso, Manuel Puig saca da manga um assassinato já no último terço do livro, quando o leitor já começava a pensar que a história andava em banho-maria para um fim previsível. Claro que não digo quem é o assassino ou a assassina. Mas e o assassinado ou assassinada, conto ou não? Não, não vou contar. Porque se eu contasse estaria livre para traçar mais algumas considerações sobre o interessante final, mas também estaria livre para ouvir dois ou três palavrões de quem não gosta de balde de água fria ― seu isso, seu aquilo!
Um panorama pelos personagens (os que restaram) no ano de 1968 é como acaba Boquitas pintadas. Cobrimos assim, bem ou mal, 30 anos na história desses argentinos e dessa Argentina cindida entre a província que sobrevive na memória e a cidade que retribui a esperança com ingratidão.
As repentinas e constantes mudanças de cena e de focos narrativos, a linguagem seca que produz imagens que mais parecem frutos de um instantâneo que de uma junção de orações, pra não falar do gosto que muitos dos personagens têm em ir ao cinema, nada disso é obra do acaso. Manuel Puig era um cinéfilo. Dizem que sua mãe lhe incutiu o hábito diário do cinema quando contava ainda quatro anos de idade. Há uma tradição arrogante que quer sempre culpar aquele que não consegue passar das primeiras páginas de um romance hermético pela leitura fracassada, e sempre isentar os escritores que escondem a incompetência na inteligibilidade. Há, há sim. Pode procurar no suplemento literário do seu gosto. Não com Manuel Puig. Fascinado com o poder de comunicabilidade dos filmes, ele viu nestes uma força que falta a muitos livros que não conseguem cativar o público. Portanto, mesmo se é um criador de primeira grandeza, Puig nunca se fecha na torre de marfim, nem a suas histórias.
Me resta um último parágrafo para escrever, e é para lembrar dos últimos anos de vida de Puig, intimamente ligados ao Brasil, mais precisamente ao Rio de Janeiro. Tendo na década de 70 os exemplares de Boquitas pintadas recolhidos pela censura argentina, o escritor deixa para sempre seu país e, depois de passagens por México e EUA, foi à capital carioca. Essa estadia de Puig no exílio ― ou seria melhor dizer nos exílios? ― marca sua produção restante, incluído aí o romance O beijo da mulher aranha (1976), outro clássico da literatura latino-americana, e Sangre de amor correspondido (1982) e Cae la noche tropical (1988), as duas escritas e ambientadas no Rio. Sangre... é visto por muitos críticos como seu mais ambicioso "experimento hiper-realista" (Graciela Speranza, que escreveu o prólogo para uma edição da Sudamericana), e Cae la noche..., um diálogo entre duas idosas argentinas nos trópicos, é o último livro de Manuel, que morreu em 1990, na Cidade do México.
Para ir além
Daniel Lopes
Teresina,
13/5/2008
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