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Sexta-feira,
31/12/2010
O ano do Nobel a Vargas Llosa e do livro digital
Marcelo Spalding
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Dois mil e dez chega ao fim com uma farta lista de acontecimentos, da eleição de Dilma ao resgate dos mineiros no Chile, da ocupação dos morros no Rio ao título mundial da Espanha, mas no mundo da cultura e da tecnologia poderíamos dizer que o maior acontecimento é o surgimento do iPad, o novo aparelho da Apple lançado em janeiro de 2010 e que em pouco tempo tornou-se sinônimo de tablet, bagunçou o mercado de desktops e notebooks e reinventou o que temos chamado de livro digital.
Já havia leitores de livros digitais, aparelhos que tentavam em tudo ser igual ao livro, agregando uma ou outra vantagem aqui e ali. Mas o tablet vai além, aliando o formato e a portabilidade do impresso às inúmeras ferramentas da Era Digital, como a interatividade, a multimídia, a conectividade. Alice no País das Maravilhas para iPad já é um clássico pela animação cinética, ainda que um clássico ultrapassado tamanha a gama de possibilidades abertas pelo novo equipamento do Midas Jobs. Finalmente, o tempo dos livros em PDF chamados de e-book pode estar com os dias contados.
Na contramão, outro acontecimento de 2010 foi o Prêmio Nobel de Literatura para Mario Vargas Llosa, romancista peruano, o quinto (de 107!) para um latino-americano. Vargas Llosa estreou na literatura em 1959, com Os chefes, mas foi a partir de 1963, com o premiado Batismo de Fogo, que se tornou mundialmente conhecido. Ao lado de Gabriel García Márquez, tornou-se ícone do chamado realismo mágico no boom do romance latino-americano da metade do século XX, revelando um pedaço do mundo até então exótico e desconhecido aos eurocêntricos intelectuais de então.
Podemos citar, entre suas obras mais conhecidas, Pantaleão e as visitadoras (1973), Tia Júlia e o escrevinhador (1977), A Guerra do Fim do Mundo (sobre a Guerra de Canudos, 1981), Cartas a um jovem escritor (1997) e Travessuras da menina má (2006). No belo Cartas a um jovem escritor (Elsevier, 2006, 182 págs.), Vargas Llosa fala do texto, da concepção de romance como arquitetura, esquema narrativo, chegando a afirmar que nenhum romancista obteve sucesso fulminante, todos foram frutos de anos de disciplina e perseverança.
Disciplina e perseverança são a marca de Travessuras da menina má (Alfaguara, 2006, 304 págs.), recente romance de formação do peruano. A obra traz um narrador em primeira pessoa, Ricardo Somocurcio, intérprete e tradutor apresentado em diferentes fases de sua vida, nos mais variados cantos do mundo, sempre apaixonado pela tal menina má. No primeiro capítulo, Ricardo é um pré-adolescente de Lima, Peru, encantado por uma menina que se diz chilena e, ao final, revela-se uma pobre peruana querendo se passar por chilena. Seu sonho desde pequeno é viver em Paris, e já no segundo capítulo Ricardo está em Paris tentando a vida como intérprete e tradutor, quando casualmente encontrará novamente seu primeiro amor. Entre encontros e desencontros, passam por Londres, Tóquio, Madrid e Paris novamente.
A volta ao mundo que o romance promete (e cumpre), associada à sensação de perda da identidade do protagonista ― "durante as semanas que permaneci no Peru fui abatido por uma sensação opressiva e me senti órfão no meu próprio país" ― estão em absoluta sintonia com os temas preferidos dos acadêmicos contemporâneos, e é sintomático que depois desse romance o peruano tenha sido lembrado por uma academia que há mais de vinte anos premiara seu contemporâneo García Márquez.
Não que Travessuras da menina má seja um grande romance. A bagagem histórica e cultural do narrador e a visão panorâmica do nosso breve século XX permitem comentários e reflexões precisos sobre a política peruana ou a sociedade europeia, com claros reflexos no mundo todo, como nesta bela síntese sobre o surgimento dos hippies: "Na segunda metade dos anos 60, Londres substituiu Paris como a cidade das modas que, partindo da Europa, se espalhavam pelo mundo. A música substituiu os livros e as ideias como centro de atração para os jovens, principalmente a partir dos Beatles, mas também de Cliff Richard, Shadows, Rolling Stones com Mick Jagger e outras bandas e cantores ingleses, e dos hippies e a revolução psicodélica dos flower children. Assim como antes iam fazer a revolução em Paris, muitos latino-americanos emigraram para Londres e se alistaram nas hostes da cannabis, da música pop e da vida promíscua. Carnaby Street substituiu Saint Germain como umbigo do mundo. Em Londres nasceram a minissaia, os cabelos compridos e as roupas extravagantes que consagraram as músicas "Hair" e "Jesus Christ Superstar", a popularização das drogas, a começar pela maconha indo até o ácido lisérgico, a fascinação pelo espiritualismo hindu, o budismo, a prática do amor livre, a saída do armário dos homossexuais e as campanhas de orgulho gay, assim como uma rejeição em bloco do establishment burguês, não em nome da revolução socialista, à qual os hippies eram indiferentes, mas sim de um pacifismo hedonista e anárquico, matizado pelo amor à natureza e aos animais por uma renegação da moral tradicional".
A história, entretanto, é pueril, calcada num amor incondicional e inverossímil e numa perspectiva estereotipada e machista. Ricardo, o homem, é fiel, romântico, dedicado, apaixonado, capaz de tudo por aquela que foi seu primeiro amor na adolescência, e o encontrará outras tantas vezes ao longo da vida. A menina má, a mulher, é sedutora, manipuladora, interesseira, fria. Má, como resume o título.
Evidentemente, não podemos esquecer a perspectiva de um narrador em primeira pessoa, contando sua versão dos fatos em retrospectiva, como o Bentinho machadiano do século retrasado ou o Humbert de Lolita, do século passado. Ainda assim a previsibilidade das personagens, a desmedida do amor de Ricardito e a singeleza do final do romance comprometem a obra, especialmente se lidas a partir de suas próprias considerações sobre o romance: "A ficção", escreve em Cartas a um Jovem Escritor, "é uma mentira que encobre uma verdade profunda, é a vida que não foi, a que os homens e mulheres de determinada época quiseram levar e não levaram, precisando, por isso, inventá-la".
Talvez por tentar abraçar o mundo e metade do século é que tenha faltado essa verdade profunda aos protagonistas de Travessuas da menina má, ainda mais se comparado aos clássicos de Vargas Llosa, como Pantaleãon e as visitadoras, de 1973, em que a hipocrisia e a crise de valores da sociedade peruana (clérigo, militares, imprensa) são representadas em um curioso batalhão de prostitutas.
De qualquer forma, o Nobel para um romancista que ao longo de sua trajetória não se furtou a representar as mazelas políticas e sociais, um latino-americano em permanente diálogo com os escritores brasileiros deve ser saudado como um acontecimento no ano do iPad.
Marcelo Spalding
Porto Alegre,
31/12/2010
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