COLUNAS
Quinta-feira,
8/8/2013
A São Paulo em dias de greve geral
Elisa Andrade Buzzo
+ de 3700 Acessos
ilustra: Renato Lima
"De que são feitos os mais belos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de ilusões, de dores,
De misérias, de mágoas, de agonias!"
("Hino da manhã", Antero de Quental)
A delícia que é andar pela cidade atropelada em seus dias calmos... O sol perpassa tímido os vãos entre os prédios da Avenida, palco de trabalho e guerra. Passamos em câmera-lenta, como que dando um tempo, um merecido descanso da implacabilidade da vida, dos confrontos entre manifestantes e polícia. Tudo vai parecendo tão distante, como se tivesse sido encenado imerso em gás diáfano. Não são as férias de inverno o motivo de tal disparate que afaga o coração dos paulistanos: são os dias de greve geral.
No entanto, esta greve não é uma greve de fato. Nesta cidade tudo se inverte, sua lógica ultrapassa nosso raciocínio e, então, o rico convive com o pobre, as casas são demolidas indistintamente e a dita greve não é deveras uma paralisação. Sim, o povo, com medo de sair nas ruas e enfrentar protestos, trânsito, caos, falta de transporte coletivo, fica em casa. Por outro lado, as lideranças são desastradas, mil vozes em que não se distingue uma unicidade, uma só leitura audível que fale alto aos corações. E que seja justa, e boa. Este continua sendo um tempo de homens partidos.
Assim, é uma experimentação, um andar num laboratório de gente meio viva, meio morta, andar por uma cidade levemente adormecida. Os ladrões dão uma trela na criminalidade, as gentes caminham numa profusão de desfile, em bandos pantaneiros pela Avenida. Isso porque a cidade não parou, não, ela entrou apenas e simplesmente em um estado latente de dormência, difícil mesmo de se ver. Uma doença que dorme, cheia de piedade, mas que não se dissuadirá da sua vocação de dor. Bastará o pouso mais aflito de uma mosca para despertá-la.
Enquanto isso, alguns paulistanos aproveitam para percorrer a cidade tal como ela nunca mais será. Nunca mais a cidade será como ela tem sido agora, branca, julgando-se na iminência da querida liberdade, igualmente. Quem viajou neste julho de sol e frio não viu. Apenas os cidadãos que, pacientemente, dispendem seu tempo e descanso em observar as sutis mudanças porque passam nosso lugar. Temido, sentido, pisado, porém submisso aos nossos terríveis desejos, famintos que somos por movimento e prazer justamente por aqui estarmos em ritmo de roda-viva.
O interlúdio se acaba. Brilhosa, rara e pacífica, a cidade vai arrefecendo. Precisamos, cada um de seus habitantes, encontrar motivos para levantar amanhã, unir força e decisão para o impulso inicial, lavar o corpo e colocá-lo em desalinho na rua. Estaremos vulneráveis, mas preparados para o sempre novo. Pois é esta a delícia de se viver, mesmo que numa diminuta fração de tempo, nesta São Paulo em que o povo lentamente se subleva.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
8/8/2013
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