COLUNAS
Quarta-feira,
8/2/2017
Nuvem Negra*
Marilia Mota Silva
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Nuvem Negra é o título do segundo romance de Eliana Cardoso, mais conhecida por seus livros de economia, em que o rigor da análise e da reflexão se valem das artes e manifestações culturais para iluminar conceitos, áridos às vezes, tornando o texto um caleidoscópio de conexões originais e inspiradoras.
Quem não conhece sua obra como economista, mas lê suas colunas no Valor Econômico e a acompanha nas redes sociais, sabe da riqueza do seu universo de referências, da leveza com que estabelece pontes entre terrenos distantes, e dos insights e perspectivas novas com que brinda o leitor.
Agora, de uns tempos para cá, Eliana resolveu abraçar a literatura. Escrever ficção, depois de uma vida dedicada à análise imparcial de números e fatos e às colunas culturais, é como reinventar-se, abrir caminho na trilha menos explorada da imaginação.
Mas, pelo que vemos, isso não a intimidou. Tanto que esse é seu segundo romance em dois anos. O primeiro foi Bonecas Russas, que fala sobre mães, filhas, tias, enteadas, mulheres múltiplas, interligadas, como as bonecas do título.
Já Nuvem Negra conta a história de um brasileiro, Manfred Mann, neto de alemão e italiana que imigraram para o Brasil na virada do século passado.
O relato traça, em 110 páginas apenas, como se tivesse urgência, um retrato do Brasil de hoje, o Brasil sob a nuvem negra da corrupção, da irresponsabilidade, de desastres ambientais irredimíveis como o da Samarco, em Mariana, Minas Gerais.
Não vou resumir toda a narrativa aqui. Vou apenas destacar alguns pontos.
Manfred Mann, o protagonista, passou boa parte da juventude nos Estados Unidos, quando o pai trabalhava no Banco Mundial. Lá ele estudou engenharia e só voltou ao Brasil quando seus pais morreram. Em São Paulo, ele se casou com a sedutora Glória, filha de empreiteiro com estreitas ligações com um senador.
Ali, por insegurança ou covardia, ele se torna cúmplice de obras super-faturadas e concorda, embora relutante, em usar na construção da obra, material de qualidade inferior ao especificado nos contratos. Criado nos Estados Unidos, ele sente medo de ir para a cadeia por essas fraudes, mas é tranquilizado pelo sogro, não havia esse risco: Rico não vai pra cadeia!
No entanto, o medo e a consciência pesada acabam por levá-lo a uma reação dramática quando julga que aconteceu o desastre que temia. Ele foge, vai para o Norte. Vira garimpeiro em Serra Pelada e começa a reconstruir sua vida, agora como João da Silva.
Mais tarde, conhece Kalu, uma mulher mais jovem, cozinheira respeitada e dona do restaurante "Colher de Pau". Eles passam juntos as décadas seguintes, ele, João da Silva, reticente, obscuro, vivendo meia-vida. O passado o assalta em pesadelos: ele sente medo e culpa,e se pergunta, como teria sido sua vida se tivesse enfrentado suas responsabilidades?
Kalu, ao contrário de Manfred, é digna e corajosa. Expulsa de casa pela mãe, aos 13 anos, por causa de abuso sexual do pai alcoólatra, ela encontrou seu caminho através do trabalho, do esforço pessoal e do auto-respeito.
Há outros personagens importantes nessa história. Lotta, por exemplo, tia de Manfred, seu conforto e segurança quando era criança. Militante de esquerda, Lotta desaparece durante os anos de ditadura, quando Manfred e familia vivem nos Estados Unidos, e passam-se décadas sem que ele tenha notícias dela. Em um romance que tem,como gênese e cenário, nossa história das últimas décadas, não poderia faltar um personagem como ela. Mas há muitos outros: Amélia, mãe de Manfred, mulher frágil e submissa a um marido ambicioso, egoísta e bruto. O pai, que não lhe deixou boas lembranças. A fascinante Glória, o sogro e o senador, exemplares dessa elite bem conhecida, que ultimamente enfeitam as listas de delações.
Há os avós de Manfred, que embora passem rapidamente pelo romance, sao marcos importantes: no final da II Guerra quando seus países de origem, Alemanha e Itália são derrotados, os dois se suicidam, deixando uma carta em que dizem que "um homem pertence ao lugar em que nasce e tem raízes e conversa com elas de forma única e intraduzível", sentimento que certamente encontra ressonância nos que emigram.
Haveria muito o que destacar dessa leitura: momentos de reflexão, imagens poéticas, a sagacidade da trama, a oportunidade do tema, sugestões que surgem das entrelinhas: Quando fechei o livro, me veio à mente Macunaíma.
Manfred me lembrou Macunaíma. Os dois, separados por quase um século, se completam.
Macunaíma nasceu índio e preto, no norte, e foi para São Paulo. Depois de correr vários pontos do país e aprontar muito, tendo inclusive ficado branco por algum tempo, voltou para o norte.
Manfred nasceu no sul, é branco, tem cara de alemão. Perfence à classe média-alta, estudou no estrangeiro, e fez a viagem inversa de Macunaíma, foi de São Paulo para o Norte, Belém, Marabá, Manaus. Nessa viagem, também se transformou: saiu Manfred Mann e chegou João da Silva; abrasileirou-se.
Macunaíma é nativo, preguiçoso, malandro, e não tem nenhum caráter. Manfred veio de fora, é da elite, medroso, omisso, cúmplice e, se tem algum caráter, é muito fraco.
Será por isso que hoje nosso céu está tão carregado que já não vemos o horizonte?
O romance Nuvem Negra, apesar do quadro sombrio, não sucumbe à desesperança. .
Kalu, a moça desamparada até pela própria mãe, conquista seu lugar no mundo, com trabalho, honestidade e amor. Ou, nesses tempos cínicos, seria melhor dizer: ela conquista o sucesso e uma vida feliz mesmo trabalhando honestamente, sendo solidária e íntegra em seus afetos.
Manfred resolve enfrentar seu passado, vê que das obras que tinha construido restaram escombros e uma vila abandonada, como ocorre tantas vezes com obras do governo.
Glória, sua ex-mulher casou-se com o filho do senador, e todos continuam livres e ricos. Até quando? A lei que dizia que rico nao vai pra cadeia é coisa do século passado.
Manfred vai, então, para Mariana onde o desastre que o acaso lhe poupou, realmente aconteceu, em proporções devastadoras: o rompimento da barragem da Samarco. Ele vai tentar se redimir, dessa vez com mais coragem, mais responsabilidade.
É possível que estejamos, de fato, nesse momento da nossa história. Mesmo que demore, o processo está em marcha: Manns e Silvas dispostos a abandonar a passividade e o medo, assumindo a responsabilidade que nos cabe a cada um. Antes que chuva caia, como diz a narradora de Nuvem Negra, encerrando a história.
* Nuvem Negra, editado pela Companhia das Letras, 2016
Marilia Mota Silva
Washington,
8/2/2017
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