COLUNAS
Terça-feira,
17/4/2018
Aleksander Dugin e a marcha da Tradição
Celso A. Uequed Pitol
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A Biblioteca Estatal Russa ocupa um grande e privilegiado espaço no centro de Moscou. Localizada nas proximidades do Kremlin, é considerada a terceira maior do mundo, contando aproximadamente 18 milhões de volumes dispostos em prateleiras que, colocadas lado a lado, somam 280 quilômetros em linha reta, informação que os orgulhosos guias fazem questão de dar ao visitante. Em uma de suas grandes salas de leitura, este visitante encontrará a estátua de um senhor careca e de barba, sentado, concentrado numa leitura que parece muito importante. Não é preciso pedir ajuda do guia para identifica-lo: é Lênin. Mas, o que faz a estátua ali? O guia pode responder: criada em 1862 pelo czar, a biblioteca recebeu o nome do líder bolchevique logo após a Revolução de 1917 e o conservou até o fim da URSS, em 1991. Depois disso, manteve apenas a estátua.
Hoje ela é apenas uma estátua. Mas já foi mais do que isso. Durante os anos de comunismo, a presença majestosa do camarada Lênin naquele espaço demandava exclusividade: livros e autores considerados indesejáveis para a formação do bom cidadão soviético não lhe podiam fazer companhia. Quem cuidava de manter o ambiente livre deles era a Glavit, o órgão responsável pela censura estatal, formado por 70 mil censores que não deixavam passar nem mesmo rótulos de vodca tidos como inadequados. Aos livros, é claro, dedicava-se redobrado cuidado. Não eram admitidas obras contendo pornografia ou religião, entendidas como formas de imoralidade - e a moral, como se sabe, era escrupulosamente cuidada na União Soviética; também não eram admitidos livros ocidentais - quer dizer, os ocidentais do tipo errado, assim como não eram aceitos os livros russos do tipo errado. Às vezes, nem mesmo os livros de comunistas eram aceitos, se o comunista fosse um do tipo errado, como Trotsky, que não podia sequer ser citado em manuais. Apenas obras do tipo certo podiam ali adentrar - obras que o camarada Lênin aprovaria para lhe servir de companhia.
Por isso, impressiona que a biblioteca que recebe o nome de Lênin, situada a poucos passos do Kremlin, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, pátria do materialismo, inimiga das religiões e libertadora do homem (no sentido peculiar que os comunistas dão à palavra "libertação"), tenha dado entrada a livros que defendiam, entre outras coisas, que o mundo moderno é uma degeneração do mundo tradicional; que a metafísica não é um simples ramo da filosofia, estando mesmo além dela; que um dos sintomas da decadência moderna estava na perda do sentido das castas e da hierarquia entre as raças; que Marx era um dos principais responsáveis pela corrupção materialista do mundo de hoje; e que, ao fim de tudo, era tarefa do Oriente iluminar o Ocidente - ideia que, para um russo soviético, talvez até soasse simpática, não fosse esta iluminação de ordem puramente espiritual e totalmente desvinculada das condições materiais. Estas obras, de cunho tão marcada e evidentemente reacionário, foram, em sua maioria, adquiridas nos anos 1960 e 1970 e formavam juntas uma verdadeira coleção que, em 1978, chegava a 87 volumes. Eram 17 livros de René Guénon, um francês convertido ao Islã e inimigo declarado do progresso, do materialismo e da cultura moderna ocidental de modo geral; 14 de Titus Burckhardt, suíço também convertido ao Islã, especialista em arte muçulmana; 38 de Ananda Coomaraswamy, um cavalheiro britânico nascido no Sri Lanka, estudioso de metafísica, arte e simbolismo orientais; 12 de Frithjof Schuon, outro suíço convertido ao Islã, fundador da tariqa Maryamiyya; e seis de Julius Evola, italiano associado ao nazifascismo (que ele, no entanto, nunca apoiou na íntegra), crítico das sociedades igualitárias, defensor do que chamou de "racismo espiritual" e do retorno aos valores tradicionais pré-cristãos. Nesta coleção havia espaço até mesmo para raridades, como o poema "La parole obscure du paysage intérieur", de Evola, impresso em 1920 numa edição limitada de 99 cópias numeradas. Estes autores receberam no Ocidente o título de "perenialistas" ou "tradicionalistas", eram pouco frequentados e, salvo uma ou outra exceção, não muito respeitados no meio acadêmico, raramente conseguindo espaço em bibliotecas universitárias: mesmo hoje, em 2012, sem censura e com facilidades comunicacionais incomparavelmente maiores, a biblioteca da USP registra muito menos títulos destes autores do que a sua congênere soviética em 1978 - menos da metade, para sermos mais exatos. Eram, em suma, e para dizer as coisas de modo claro e definitivo, livros e autores que não deveriam estar ali.
Não deveriam, mas estavam. E, como seria de se esperar, acabaram sendo descobertos por alguém. Este alguém foi o jovem Yevgueny Golovin. Estudante de filologia na Universidade Estatal de Moscou, ele havia conhecido aqueles autores através da leitura do best seller O Despertar dos Mágicos, de Louis Pawels e Jacques Bergier, que teve excertos publicados em 1960 pela revista soviética Nauka i Religiia(Ciência e Religião). Aproveitando a condição de acadêmico, que lhe permitia ter acesso a todo o catálogo (parte dos livros dos autores tradicionalistas estavam em seções especiais, com acesso restrito a acadêmicos), tomou contato com as obras e, aos poucos, conseguiu formar um grupo de interessados que incluía o escritor Yuri Mamleev e o pensador muçulmano Geydar Dzemal, dois expoentes da contracultura dissidente soviética. Este grupo, marcado pela sua rejeição à experiência comunista e ao Ocidente materialista moderno, reunia-se na própria Biblioteca Lênin para ler e discutir os textos descobertos, muitas vezes até altas horas da noite. Tudo sob o olhar grave e penetrante do camarada Lênin, cujo desgosto diante de tal cena nem podemos imaginar.
Mas os encontros destes senhores não se limitaram à biblioteca. Frequentemente eram realizados em suas casas, onde os debates e saraus adentravam madrugada. No fim dos anos 1970, um filho de um oficial da KGB, contando menos de 20 anos, ingressava no grupo. Anos depois ele descreveria estes senhores como "um pequeno círculo de pessoas que recusou conscientemente a participação na vida cultural soviética", escolhendo em vez disso o que chamou de "uma existência subterrânea". Este jovem se tornaria, em poucos anos, o maior e mais influente nome dentre aqueles frequentadores e atendia pelo nome de Alexander Dugin.
Apesar de Dugin ter descrito a atividade de seus companheiros de Biblioteca Lênin, e a sua própria à época, como "subterrânea" e apartada da vida cultural soviética, não se pode dizer que tenha sido totalmente desconectada do clima geral do país. O período pós-stalinista na URSS - e, em especial, o das décadas de 1960 e 1970 - é entendido como um momento de renascimento do interesse pela religião e pelas ciências ocultas no país: cabala, budismo, esoterismo, mística islâmica e magia passaram a ganhar popularidade entre os soviéticos, e o cristianismo ortodoxo, por anos associado ao czarismo e às forças da reação, voltou a fazer parte do horizonte de poetas, artistas e intelectuais. Dugin está no centro deste processo de retomada da tradição russa e de incorporação de elementos esotéricos e tradicionalistas. Autodefinido como cristão ortodoxo, sua trajetória intelectual é fortemente marcada pela presença do perenialismo, sobretudo através das obras de Julius Evola e René Guénon, os dois maiores nomes desta linha de pensamento. Guénon entende a Tradição - nas palavras do próprio Dugin - como a totalidade do conhecimento não-humano e divinamente revelado, que determinou a formação de todas as civilizações sagradas - dos Impérios pré-históricos da Idade do Ouro que desapareceram há milênios, à civilização medieval que, em suas variadas formas (cristã, islâmica, budista, etc.) reproduziu os parâmetros fundamentais da Ordem Sagrada. As verdadeiras religiões e tradições esotéricas trariam consigo, de uma forma ou de outra, resquícios da antiga Tradição Primordial, e o retorno a elas seria a única maneira de o mundo moderno reverter a sua escalada de contínua degradação. Por mundo moderno Guénon entende, principalmente, o mundo ocidental moderno. Para ele, assim como para os perenialistas em geral, a Tradição está muito melhor preservada no Oriente, cuja tarefa seria "iluminar" o Ocidente refém do materialismo (mais tarde, pouco antes de morrer, Guénon faria a distinção entre o Oriente geográfico e o Oriente místico, sendo este último o depositório da tradição de que ele falava). Quanto a Evola, seu pensamento apresenta alguns pontos de contato com o de Guénon e há por parte dele um grande respeito pelo trabalho do francês, a quem definiu como "o maior mestre de nosso tempo". Ambos concordam quanto à ideia de Tradição primordial e a de degeneração do mundo moderno, mas diferem quanto à atitude diante desta crise: enquanto Guénon entende que a iniciação de indivíduos duma elite em tradições verdadeiras era o caminho para salvar o Ocidente, Evola demonstra dúvidas quanto à possibilidade de que isso de fato ocorra: em entrevista dos anos 1960 ele chega a dizer que a posição de Guénon oferece pouco atrativo para quem não quiser assumir um estilo de vida oriental ou islâmico. Em vez disso, opina que a transformação do indivíduo, que Guénon afirma se dar por iniciação, dar-se-á apenas após a transformação de toda a sociedade. Marca desta diferença é o editorial do primeiro número de sua revistaLa Torre, em que ele afirma que a publicação "não será um refúgio para um escapismo mais ou menos místico, mas um posto avançado de resistência, de combate e de realismo superior". Diante disto, torna-se fácil entender o por que das tentativas evolianas de aproximação com movimentos políticos como o fascismo, coisa que Guénon jamais tentou fazer e que, aliás, abertamente criticou nas sociedades islâmicas que encontrou no Cairo, imersas em retórica anticolonial.
Central para esta diferença de abordagem é a maneira como cada um encara a estrutura do sistema de castas hindus. Guénon afirma que, nas sociedades tradicionais, a casta sacerdotal - os brâmanes - representando a autoridade espiritual, era distinta (e superior) a dos guerreiros e governantes, a kshatryia, estando esta necessariamente dependente daquela. Evola, por outro lado, entendia que as duas eram originalmente unidas, separando-se no decorrer do processo de declínio da Tradição primordial. Não será difícil perceber que esta diferença marca, também, o ponto que separa as personalidades de Guénon e Evola de forma definitiva: enquanto o primeiro tem a atitude contemplativa característica de um brâmane, o segundo, sendo adepto da ação, lembra muito mais o típico kshatryia - ou, mais precisamente, um membro da casta que, na aurora dos tempos, sob o domínio da Tradição, unia o místico contemplativo e o líder heroico, o sábio e o guerreiro, a autoridade espiritual e o poder temporal num só. Tomando os títulos de duas de suas maiores obras, podemos dizer que enquanto Guénon nos apresenta, como um mestre diante de seus discípulos, à Crise do Mundo Moderno, Evola nos convoca a promover uma Revolta contra o Mundo Moderno.
Dugin foi e é um grande divulgador da obra de Guénon entre os russos, e não deixa de reconhecer sua dívida para com ele. No entanto, não resta dúvida de que está mais próximo de Evola. Além de ele lhe fornecer uma série de conceitos e análises importantes, como a interpretação da divisão tantrista entre o caminho da mão direita e o caminho da mão esquerda - que Dugin aplica, com algumas diferenças, aos conceitos tradicionais de direita e esquerda - a ênfase do pensador italiano na ação concreta e no aspecto heroico da existência é imediatamente identificável no discurso do russo, que inclui passagens como esta: "Precisamos de um novo partido. Um partido a morte (..) Um partido de Deus, a versão russa do Hezbollah, que agirá de acordo com regras totalmente diferentes (...)". Tais aspectos dizem-lhe muito mais respeito do que "escapismos mais ou menos místicos" , para usar a expressão do editorial de sua revista: interessa-lhe sobretudo a "resistência, o combate, o realismo superior".
Não escapará ao leitor mais atento de Evola uma aparente incoerência no discurso de Dugin: como pode alguém identificado com um pensador tão marcadamente anticristão como Evola (e, de modo bem menos enfático, e sob outros aspectos, também Guénon) dizer-se cristão ortodoxo? Afinal, como se sabe, Evola entendia o cristianismo - marca do espírito meridional semítico, plebeu, igualitário e, portanto, antitradicional - como um fator a mais no processo da decadência do Ocidente e da Europa tradicional. Guénon, por outro lado, apontava a falta de um caráter iniciático e esotérico dentro da tradição cristã, sem o qual não seria possível chegar à Verdade. Dugin responde a ambos asseverando que tanto Guénon quanto Evola conheciam apenas o catolicismo e protestantismo, em que os fenômenos que descrevem de fato ocorreriam, e sublinha que a Ortodoxia - respondendo, aí, à crítica guenoniana ao cristianismo - possui, assim como o Islã e ao contrário do cristianismo ocidental, uma via de realização espiritual completa que engloba esoterismo e exoterismo, o aspecto iniciático e o exterior. A ortodoxia, diz Dugin, não busca "apenas a salvação da alma individual", mas "a realização espiritual e metafísica e, portanto, supraindividual e suprafísica". Por outro lado, às acusações de plebeísmo e "semitismo" que Evola lança contra o cristianismo, o russo afirma que, mais uma vez, elas dizem respeito apenas ao cristianismo ocidental. Na ortodoxia, segundo Dugin, há a predominância de elementos helênicos e a veneração a apóstolos antijudaicos, como João, André e Paulo, enquanto São Pedro, por exemplo, um dos nomes mais importantes do chamado "judeo-cristianismo" e venerado pela Igreja Católica (produto, para Dugin, deste mesmo '"judeo-cristianismo"), ocupa ali um lugar secundário. Ademais, predominaria na Igreja russa, ligada ao tzar e fortemente ligada as ideias de missão nacional, um espírito "aristocrático e ascético, ativo e heroico", que está, sem dúvida, em conformidade com Evola.
Nota-se neste procedimento de Dugin uma tentativa de justificação de sua religião perante os ínclitos mestres da Tradição, e, especialmente, perante Evola. Ele parece pouco preocupado em saber o que a Igreja Ortodoxa pensa de Guenon e Evola, mas não poupa esforços para que ela faça boa figura diante deles. Fica claro que, antes de ser cristão, antes de ser nacional-bolchevique, antes de ser nacionalista russo, antes de ser anti-atlantista ou anti-americano, Alexander Dugin é um tradicionalista do tipo evoliano, que submete tudo à aprovação do mestre e conforma tudo aos seus ensinamentos. Ao mesmo tempo, ele é mestre para muitos: principal líder do movimento eurasiano, professor universitário, autor de dezenas de livros e apoiador do governo Putin, a posição que ocupa é - ao contrário da que ocupou outrora - a de participante ativo da vida cultural e política de seu país. Os anos de reuniões na biblioteca Lênin com seus camaradas ficaram para trás: a situação é hoje outra. Na Rússia de hoje - e não só nela - os defensores da Tradição já não levam vidas subterrâneas. Ao contrário: com força, fé e entusiasmo, marcham sobre a terra.
Celso A. Uequed Pitol
Canoas,
17/4/2018
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