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Terça-feira, 14/1/2003
O pulo do negro gato
Waldemar Pavan
+ de 7700 Acessos
+ 1 Comentário(s)

A década de 60, berço da Bossa Nova e da Jovem Guarda, rolava solta, o período era o pré-tudo: pílula anti-concepcional, motel, preservativo e liberdade sexual.

Namorava-se simplesmente, tendo para isso que realizar o pedido formal: 'Quer namorar comigo?'. A espera pela resposta - sempre era solicitado um tempo para se pensar no assunto - era algo torturante.

O namoro obedecia regras formais e temporais: em duas semanas podia-se 'pegar na mão' e 'beijar no rosto' , para só depois de um mês, em média, 'beijar na boca' (claro, a quantidade e a intensidade dos beijos sempre era regulada pelas meninas - a preservação da imagem de boa menina era tudo, um pequeno deslize e a fama de 'menina fácil' e de 'vassourinha' que a todos os meninos da redondeza varria, rapidamente se espalharia caso...).

O beijo de língua era considerado - só pelas meninas - pecaminoso e caso o garoto, com sua lingua aflita e curiosa, ousasse vasculhar o céu da boca da gatinha manhosa a reprimenda era certa, não importando se o namoro transcorria há um ou três anos. Beijo de língua era considerado imoral para o padrão comportamental feminimo.

As garotas mais 'avançadas' - conhecidas também por ' as prafrentex' - vez ou outra, permitiam - por descuido - algo a mais, mas era tudo muito controlado, somente em ocasiões bastantes especiais.

Neste tempo bebia-se milk shake, frapê, refrescos de frutas, ice cream soda e vaca preta, refrigerante só rolava em festa de aniversário.

As poucas emissoras e aparelhos de TV transmitiam programação em preto e branco e ao vivo, não existia o video tape. Geladeira era Frigidaire.

CD era um indicativo de Compacto Duplo, disco de vinil que continha 4 faixas (CS era compacto simples, duas músicas). Tempo em que o suco de laranja era chamado de laranjada. 'É du caramba' era então 'uma brasa, mora' e 'tá legal' era 'barra limpa'.

Os carangos bacanas eram o Simca Chambord, Aero Willys e o invocado JK, já a Rural Willys era a pajero da família. As grifes da moda eram a calça bicolor Calhambeque, o cinturão e a botinha Tremendão. As calças jeans Lee e Levi's eram importadas por contrabandistas, sua versão genérica e nacional era a desengonçada e desprezada Far West, que antes do advento 'importadas' atendiam pela denomição de 'calças rancheiras', por serem fartamente utilizadas no ambiente de produção agropecuária.

Óculos: o objeto do desejo masculino era o 'aviador' da Ray Ban, e as meninas, lindas, não fugiam à regra: óculos imitando o formato dos olhos das gatas.

A relação de produtos de consumo citados encerra também esta pequena lista dos desejos materiais na época, não existia tanta variedade de produtos comercialmente ofertados, não tinhamos grana, no problem, em contrapartida também não havia demanda de oferta.

A televisão anunciava as concorrentes cêras dominó x parquetina, fósforos fiat lux e toda a sorte de utensílios para o lar, ainda não acontecia o marketing do apelo promocional para milhões.

Tanto a Bossa Nova quanto a Jovem Guarda floresceram nesse ambiente pouca realização intíma, era muito romance e pouca ação.

No Brasil e no mundo todo, cantava-se o amor recatado porque o comportamento estabelecido para desejar e encantar uma mulher assim o era, havia muito espaço para os devaneios oriundos do coração.

Em São Paulo, o movimento Jovem Guarda depertava o interesse do broto legal com promessas e convites de passeios em "O Calhambeque".

No Rio de Janeiro, a Bossa Nova cantava o amor da tardinha que cai, aquele que surgiria no inocente passeio em "O Barquinho".

Enquanto a João Gilberto cantava 'o pato que fazia qüen-qüen', o Trio Esperança propagava a leveza do 'passo do elefantinho, veja como ele é bonitinho'. Enquanto Renato e Seus Blue Caps cantavam 'menina linda eu te adoro', João Gilberto cantava ' você é mais bonita que a flor '.

Já no período mais audacioso de ambas, a Jovem Guarda cantava o 'negro gato de arrepiar', enquanto a Bossa Nova se atreveu com 'o Lobo Mau que resolveu jantar Chapéuzinho de Maiô'.

Roberto Carlos também ousou ao perfilar-se à matilha: 'Me chamam lobo mau, me chamam lobo mau, eu sou o tal, tal, tal, tal ...".

Para se permitir às canções deste tempo é interessante que se perceba um pouco das delícias e aflições inerentes.

Hoje, quase quatro décadas depois, a temática poética da Jovem Guarda geralmente é estigmatizada como sendo uma temática romântica de qualidade menor, se comparada à sua contemporânea, a Bossa Nova.

No entanto, abraços, beijinhos e carinhos sem fim eram desejos comuns e possíveis tanto à garotada da Jovem Guarda quanto à da Bossa Nova.

A mais notável e saudável diferença entre estes dois gêneros musicais foi a eletrificação: enquanto a Bossa Nova seguia o padrão - hoje denominado - desplugado, a Jovem Guarda introduzia (êpa!) a guitarra elétrica em nossa música.

A Jovem Guarda é tão rica temas poéticos-banais e singelezas de um tempo quanto foi a Bossa Nova. Dois discos de gente do período Jovem Guarda foram recentemente lançados para comprovar a tese, aparentemente tresloucada:

"O Pulo do Negro Gato" é um merecido e bem vindo tributo a Getúlio Côrtes, que teve 14 de suas criações gravadas por Roberto Carlos: "Negro Gato", "Pega Ladrão", "O Gênio", "O Sósia" e a amantissima "Quase Fui Lhe Procurar". Fazem todas parte do repertório do tributo que conta com as presenças de Erasmo Carlos, Wanderléa, Fagner, Golden Boys, Jerry Adriani, Eduardo Dusek, Léo Jaime, Renato e Seus Blue Caps, Leno, Getúlio Côrtes e, por seu seu irmão, ninguém menos que o soul man Gerson King Combo.

A produção do CD é econômica de instrumentalização, a direção musical, é de Leno, ex-integrante da dupla Leno & Lilian, também da Jovem Guarda e responsável pelo segundo disco da recomendação:

"Um Show de Jovem Guarda". Discretamente ao vivo, quase um acústico, Leno desfila canções consagradas de sua autoria ("Quando a Cidade Dorme"), sucessos da extinta dupla de ex-namorados ("Eu Não Sabia Que Você Existia", "Devolva-me", regravada por Adriana Calcanhoto, "Festa Dos Seus 15 Anos"), ainda versões ("Coisinha Estúpida", "Pobre Menina") e até uma canção que Raulzito Seixas fez especialmente para a voz de Leno ("Objeto Voador").

A gravadora destes CDs é a Natal Records e maiores informações podem serem obtidas através do e-mail contido no site de Leno:

www.leno.com.br


Waldemar Pavan
São Paulo, 14/1/2003

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Os Eleitos, de Tom Wolfe de Jorge Wagner
02. 2008 e os meus CDs de Rafael Fernandes


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* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
16/1/2003
15h19min
Caro Waldemar, Que bom que voce voltou. Sua precisão na definição da década de 60 é fantástica. Eu perdi um pouco da jovem guarda por ter vivido mais os subterraneos da liberdade. Depois escrevo mais pois vou correndo procurar esses dois cds. Muito obrigado
[Leia outros Comentários de Gil Fernandes de Sá]
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