COLUNAS
Sexta-feira,
13/8/2004
De outra volta ao Brasil
Eduardo Carvalho
+ de 4600 Acessos

Acabei de voltar de mais uma viagem pelo Brasil - depois de, coincidentemente, ter escrito as duas colunas passadas sobre outra viagem que fiz. Esta foi mais curta, em tempo e distância: rodamos - eu e meu pai -, de carro, 5.000 km em dez dias. Saímos de São Paulo em direção a Campo Grande, e depois passamos por Cuiabá, Mineiros, Rio Verde, Goiânia, etc. Em resumo, a impressão foi a seguinte: o Brasil está mudando - ou já mudou? - numa velocidade incrível.
É impressionante o que se encontra hoje no interior do Mato Grosso, onde, há uma ou duas décadas, havia apenas pecuária extensiva e desprofissionalizada. Gaúchos e catarinenses, na maioria, estão cultivando um oceano de soja, milho e algodão, com a mais avançada tecnologia do mundo e em parceria com empresas internacionais. As cidades estão crescendo e se organizando, acompanhando o enriquecimento do campo: comércio e serviços estão em ebulição, abrindo espaço ao empreendedorismo honesto.
Esse fenômeno passa quase despercebido por São Paulo, que o acompanha pela televisão e pelo jornal apenas. Pouca gente, a não ser que esteja ligada ao assunto, visita esses lugares, para ver de perto o impacto da macroeconomia na micro. Os exemplos usados para ilustrar a - argh! - "globalização" são normalmente depreciativos, o que distorce a impressão dos mais ingênuos. É no mínimo ilustrativo descobrir que o hectare de terra cultivável pode chegar, no Mato Grosso, a 100 mil reais, enquanto em grandes cidades do interior de São Paulo ele oscila, no alto, em torno de 25 mil. O avanço do agronegócio no Brasil também é resultado da - argh! - globalização.
Esse assunto merece, urgentemente, um documentário completo, para que, com informações e imagens, o paulistano comum se dê conta do que acontece no resto do Brasil - em vez de esgotar sua paciência com caricaturas de pobreza na tela do cinema. Já tem gente de olho, e injetando muito dinheiro nisso, segundo o dono do hotel que me hospedei em Mineiros: "De uns 3 anos pra cá, tem aumentado muito o número de estrangeiros aqui. E, vou te contar, eles não vêm pra cá só por causa da beleza, não". Deu pra perceber. Na semana seguinte, o jornal Valor Econômico publicou uma série de reportagens sobre fundos estrangeiros especializados em investimento no cerrado brasileiro. Esse provavelmente é, no Brasil, o assunto mais importante no momento.
Documentado errado
Sugeri que se faça um documentário sobre as regiões de fronteira agrícola brasileira, que mostre a evolução dessas áreas em relação ao que eram há pouco tempo, mas que, por favor, não seja dirigido pela mesma equipe que foi para a China produzir o Globo Repórter sobre o país. Que os comentários de um programa assim, tão popular, sejam superficiais, é compreensível, mas a última frase da repórter foi arrepiante, começando assim: "Depois de milênios (sic) parada no tempo", e continuava dizendo que agora, talvez, a China emplaque definitivamente.
Reabro Uma História Íntima da Humanidade, de Theodore Zeldin, antes de dormir, e por acaso encontro esta passagem: "É claro que a China teve a sua Revolução Industrial e experimentou a produção em massa, enquanto a Europa permanecia na Idade Média. Mil anos atrás, a China passou por uma revolução financeira e nas comunicações, quando inventou o papel moeda, a impressão e um sistema barato de transporte aquático através de canais, criando um vasto mercado nacional e um indústria de exportação poderosa, que se tornou na principal fonte de produtos do mundo. Provavelmente a China lucrou mais com a descoberta das Américas do que qualquer outro país, pois metade da prata ali minerada antes de 1800 acabou em seus cofres para pagamento de seda, cerâmica e chá, que eram os refrigeradores, televisores e computadores dos dias de hoje".
Outro livro altamente recomendável à repórter é História do Mundo, de J. M. Roberts - que, com apenas 800 páginas, oferece um panorama do que aconteceu na terra desde a pré-história. É agradável e informativo e, se o leitor não decorar tudo - ninguém decora -, pelo menos descobre que nem tudo que se passou na Terra a gente aprende durante o colegial.
Uma história íntima
Uma história íntima da humanidade, de Theodore Zeldin, é um dos livros mais fascinantes que conheço. Talvez o título passe uma idéia distorcida do assunto: a intenção não é apresentar fofocas esquecidas de personalidades históricas - o que também é um assunto curioso, mas batido. A linha de uma História íntima é bem diferente: Theodore Zeldin, no início de cada capítulo, apresenta a situação de uma mulher francesa - seus problemas pessoais, profissionais e emocionais -, com informações coletadas numa ampla pesquisa de campo. E busca no desenvolvimento da civilização ocidental a origem dos problemas dessas mulheres, para depois, comparando hábitos de outros países e civilizações, propor soluções para eles.
O cientificismo histórico e o relativismo cultural barraram, por décadas, iniciativas como a de Zeldin. Uma história íntima é escrito num método incomum para obras acadêmicas, porque inclui opiniões pessoais e comparações entre culturas - duas características inaceitáveis em redações "científicas", principalmente em paises atrasados. Zeldin, porém, é catedrático de Oxford, e acredita no seguinte: que ideologias como o nacionalismo e o marxismo esvaziaram as ambições dos historiadores, que agora se limitam a tentar reproduzir o que aconteceu no passado - em vez de oferecer opções à sociedade contemporânea baseadas em experiências em outras épocas ou em outros lugares.
E cada capitulo começa com uma pergunta ou uma afirmação: "Como homens e mulheres lentamente aprenderam a ter conversas interessantes"; "Como algumas pessoas adiquiriram imunidade à solidão"; "Como as pessoas se libertam do medo ao conhecer medo novos"; "Como a curiosidade se tornou a chave da liberdade"; "Por que as pessoas são incapazes de encontrar tempo para viver várias vidas"; "O que se torna possível quando almas gêmeas se encontram"; e assim por diante. E Zeldin transporta o leitor, num estilo fácil, das particularidades da pessoa descrita para história de civilizações distantes: mostrando que não sofremos sozinhos no mundo, e que soluções encontradas por uma sociedade pode resolver problemas de outras.
O livro não é, porém, um ataque à Civilização Ocidental. Muito ao contrário: em grande parte, é um elogio à capacidade de comunicação e exploração do Ocidente. Mas expõe os seus defeitos: Zeldin insiste que muitos dos nossos costumes precisam ser - e serão - revistos, porque estão em desacordo com a nossa própria condição humana.
Só que, nesse meio tempo, muita gente está sofrendo por isso: mulheres que assumem múltiplas responsabilidades, chefes que abusam de uma autoridade artificial, casais que se desentendem à toa, crianças que são educadas por teorias da moda, etc. Ou seja: em estado invisível, erros cometidos pelos nossos antepassados afetam diretamente a forma como nos relacionamos hoje. Esses erros, no entanto, podem ser corrigidos. Essa é a intenção de Zeldin: apresentar escolhas ao modo como aproveitamos o mundo. Porque ele não precisava ser assim. E pode, portanto, ser diferente.
Eduardo Carvalho
São Paulo,
13/8/2004
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Eleições nos Estados Unidos de Marilia Mota Silva
02.
Juan José Morosoli - a solidão, a pureza, a viagem de Eduardo Maretti
03.
Uísque ruim, degustador incompetente de Ana Elisa Ribeiro
04.
Livros do amanhã de Gian Danton
Mais Acessadas de Eduardo Carvalho
em 2004
01.
De uma volta ao Brasil - 23/7/2004
02.
A melhor revista do mundo - 8/10/2004
03.
Por que não estudo Literatura - 24/9/2004
04.
Como mudar a sua vida - 21/5/2004
05.
O chinês do yakissoba - 5/3/2004
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|