Seus amigos e familiares começam a dizer que você deveria escrever suas memórias. São tantos casos pitorescos, engraçados, inusitados que andou colecionando por todos esses anos... Talvez valesse mesmo a pena compartilhar isso tudo com o resto da humanidade, deixar para as futuras gerações todo o seu aprendizado.
Que não seja uma autobiografia... Vai que você quer escrever dicas de bem viver, máximas otimistas, um tratado sobre "relacionamentos interpessoais" (e existe outro tipo?) ou mesmo suas experiências como administrador da própria vida, aplicando no cotidiano aquilo que aprendeu na carreira...
Sejamos francos e vamos aos fatos:
1. Um pouco de humildade cai bem Somos mais de seis bilhões de pessoas no planeta e cada uma tem uma trajetória marcante. Ao menos para si mesma. O que o faz pensar que a sua se destaca dessas outras tantas e seja merecedora de um lugar nas estantes? Pode até ser que se destaque mesmo e mereça virar um livro. Mas antes de sair por aí, procurando de forma estabanada uma editora ou alguém que empreenda seu projeto, reflita sobre isso.
2. A mão que escreve Ok, você refletiu e chegou à conclusão de que tem mesmo que escrever algo ou essa idéia o consumirá até o fim dos dias. Então, "mãos à obra". As suas ou as de um profissional?
Seu professor da segunda série ginasial, lá nos idos de mil-oitocentos-e-refrigerante-com-rolha disse, certa vez, que sua redação estava ótima. E você acreditou. Mas de lá para cá, você nunca mais escreveu nada além de atas de condomínio, bilhetes de porta de geladeira, e-mails, lista de compras e um ou outro relatório técnico.
Vez por outra, você até arrisca uns versinhos em papel de padaria, ou escreve mesmo num caderninho. Você fala de vento, sol, mar e passarinhos. E como as palavras rimam, você acha que escreveu um poema e mostra para os amigos numa roda de chope, em meio a um churrasco. Eles não entendem patavinas de literatura, mas acham bacana e dizem que você é um "poeta". E, mais uma vez, você acredita.
Você pode até escrever bem, sem nunca ter passado por uma faculdade de Letras, afinal, faculdades de Letras não formam escritores, embora devessem. Mas comentários de família e amigos, nessas horas, não valem. Essa gente é suspeita para falar e, se não gostarem do que você faz, dificilmente dirão a verdade, para não magoá-lo. Como eu não estou aqui para isso, prepare sua auto-estima e respire fundo...
Baixe a crista e contrate logo um profissional para te ajudar. Alguém que se dedique à escrita. Um escritor de verdade, reconhecido, que tenha mais tempo de estrada e de experiência do que você. Ou um editor literário. Literário, veja bem! Cuidado com jornalistas e publicitários que nunca fizeram um trabalho de cunho literário ou é provável que seu escrito vire uma grande reportagem do Globo Repórter. Se é isso o que você quer, dirija-se ao guichê do lado. Caso a sua idéia seja a de um livro mesmo, por favor, queira continuar esta leitura.
O profissional contratado poderá escrever por você ― e aí ele recebe o nome de ghost writer ― ou ao menos analisar seu texto e te dar um parecer, editar, organizar ou preparar seu material. O preço vai depender da trabalheira que você der a ele. Convenhamos, nada mais justo.
De qualquer forma, é muito importante que você ouça a opinião de um profissional. Se puder, até de mais de um. Um profissional não vai dizer que seu texto é um primor ou uma "tosqueira" completa. Ele vai apontar o que está bom e o que não está. O que pode melhorar, o que deve ser enxugado ou desenvolvido, vai dizer se o registro verbal e discursivo está coerente com a sua proposta: narrativa em primeira ou terceira pessoa? Verbo no passado ou presente? Rigidez da conformidade gramatical, eruditismo ou uso coloquial? Linguagem acadêmica? Jornalística? Publicitária? Jargão jurídico?
3. Os recursos da escrita Hoje, um escritor de livro infanto-juvenil, por exemplo, tem que tomar muito cuidado ao usar o pretérito-mais-que-perfeito ("fizera", "andara", "falara"). Há muito que esse tempo verbal desapareceu da fala cotidiana não apenas na língua portuguesa. Em Francês, seu correspondente, o passé simple, também é chamado de "passado literário". Mas até a literatura vem abandonando esse tempo verbal devido ao cheiro de mofo e à quantidade de ácaros que ele traz consigo. O pretérito-mais-que-perfeito pode ser facilmente substituído pelo pretérito perfeito ("fez", "andou", "falou"), sem alterar o sentido e com a vantagem de não exalar esse componente arcaico. O mais-que-perfeito pode até ficar bom num texto, mas desde que não se misture com neologismos, gírias e estrangeirismos, porque estes sim têm um jeitão contemporâneo. É essa mistura impensada que denuncia a falta de técnica de um escritor.
Escrever um texto é como pintar. Imagine muitas cores e muitos materiais: giz de cera, aquarela, guache, tinta a óleo etc. O artista de verdade escolhe o material e combina cores e traços de forma consciente. Essa combinação de técnicas produz um efeito parcialmente premeditado. Ou intuído. Se o leitor vai captar esse efeito, já é algo que está além da instância de criação. Mas mesmo não tendo a garantia da interpretação, o artista tem que ter em mente os seus 50% de responsabilidade do sentido de um texto.
Assim, voltando ao nosso exemplo, o escritor de um livro infanto-juvenil precisa perceber que o pretérito-mais-que-perfeito é parente do "doravante", "outrora", "aurora" e, para rimar, da "vitrola". Do outro lado do ringue, estão os recursos da modernidade, com seus coloquialismos diretos. Não apenas a gíria, mas a forma direta do pretérito perfeito, o "a partir de agora", "antigamente", "madrugada" e, sem rima alguma, o "mp3", só para exemplificar.
A escolha de termos, palavras, expressões, tamanho dos períodos, ordem direta e quantidade de apostos são critérios que o escritor deve ter em mente no momento em que escreve ― ou no momento em que "deita" a idéia no papel.
4. Escritor não é quem publica um livro Como se vê, além de conteúdo, histórias interessantes, criatividade, sensibilidade e boa observação, o escritor deve entender e dominar a linguagem que usa.
Não existe nenhum órgão público, sindicato ou nenhuma associação que proíba as pessoas de escreverem e publicarem livros. Do mesmo modo, não existe uma lei que obrigue o sujeito a ter diploma de Letras para isso. Não acho que seria o caso de haver esse tipo de exigência, mas aqueles que se aventuram nessa tarefa deveriam, ao menos, aprimorar o próprio bom-senso.
Primeiramente, papel é árvore e, em tempos de aquecimento global e discussões ecológicas, faríamos bem poupando alguns representantes do "povo-em-pé" das bobagens que lhe são imprimidas.
Segundamente (como diria o Odorico Paraguassu), é preciso dar um basta nesse consumismo ocidental desenfreado que transforma todo produto em lixo. No fim das contas, há gente escrevendo por aí e editoras publicando material de qualidade ruim fundamentadas unicamente no marketing e transformando os olhos dos leitores em penico. Há muitos textos sendo publicados antes da maturação. Textos que os escritores poderiam lapidar melhor, antes de despejar nas nossas estantes. Talvez assim muitos livros deixassem de ser mais um calço de mesa para se tornarem boas obras ou até mesmo obras-primas. Da forma como estamos, o livro-objeto tem superado o livro-conceito. Ou seja, interessa mais ter um livro gordinho, cor-de-rosa, cheio de fotos e de capa dura na estante do que um bom romance, com trama bem amarrada e instigante. Assim como a Bíblia, o livro tem virado bibelô, objeto de enfeite.
5. Eu não entendo nada de contabilidade Eu poderia, perfeitamente, estudar matemática, ler aqui e ali e começar a fazer as contas da minha empresa sozinha ou a fazer minha declaração do imposto sem a ajuda de ninguém. O risco de cair na malha fina é muito maior do que se eu contratasse um bom contador. Contratar significa reconhecer o trabalho desse profissional e pagar por ele. Por mais que ele faça minhas contas "com o pé nas costas" e "plantando bananeira", ele passou a vida se preparando para isso. Eu, não.
Da mesma forma, preciso de alguém capaz de criar estratégias de venda para essa empresa. Preciso de um encanador que faça um trabalho bem feito, um médico, um advogado etc. Eu poderia fazer tudo por minha conta e aí eu teria uma gambiarra que não impediria o vazamento na pia, a queda de vendas da empresa, uma gripe que virasse pneumonia, ou um processo na justiça. Por que com a escrita e a linguagem haveria de ser diferente?
Meu negócio é a linguagem escrita. Tenho estudado muito e hoje sou capaz de escrever e analisar os textos mais variados, editá-los, transformá-los, reescrevê-los, revisá-los. Essa é a minha profissão. E profissão a gente aperfeiçoa incansavelmente, dia a dia (assim, sem hífen mesmo. E se quiser me perguntar por que, por favor, queira consultar minha tabela de honorários). Não dá para achar que já chegou ao topo e pronto.
6. Então você ainda quer escrever um livro... Planeje sua escrita, seu enredo, a narrativa. Amarre a trama. Construa bons personagens e diálogos. Atente para a descrição. Se tiver cacife para tal, escolha palavras que tenham uma combinação sinestésica, sonoras e poéticas. Quando bem feita, a narrativa fantástica ou poética pode transformar qualquer enredo banal em algo genial.
Escolha com cuidado o material lingüístico e discursivo que vai usar. Se for poema, tenha em mente a musicalidade das palavras e sílabas e cuidado com a rima pobre para seus versos não virarem um jogralzinho "mequetrefe" do pré-primário.
Tenha em mente o efeito que deseja ao usar frases longas ou curtas demais. Cuidado com o uso de ironias, metáforas e ambigüidades: esses recursos produzem múltiplas interpretações e costumam ser um fiasco quando mal utilizados. Quando bem produzidos, entretanto, é a glória!
Saiba que não há palavras, expressões e recursos ruins na escrita, mas sim mau uso deles. E, claro, cuide da ortografia, das concordâncias e regências, porque o trabalho do revisor é corrigir o que passou despercebido, não ensinar a você o que deveria ter aprendido na escola.
Se você acha que não conseguirá dominar todas essas técnicas, mas ainda assim quer escrever um livro, vai por mim, cara, contrate um profissional.
Gostei de suas dicas. Se grande parte de pretensos escritores seguisse um pouco esses conselhos, certamente, não teríamos tantos livros terríveis. Mas não sei se conseguiriam perceber realmente o que você quis dizer. Será que estou sendo cruel demais??
Olá, Pilar
Quando eu tinha 1 ou 2 anos de idade, alguém abandonou uma gatinha recém-nascida em frente à porta da casa onde morava. Eu peguei ela no colo, fiz-lhe umas festinhas e disse: "nina, nina" (ainda não sabia dizer coitadinha, coitadinha). A minha mãe também teve pena da gatinha, e a Nina ficou como animal de estimação. Afeiçoei-me à Nina e ela acabou por se tornar a minha "irmã de pelo", e fazíamos tudo juntos. Quando me deitava, ela também se deitava junto aos meus pés, muitas vezes por baixo de lençóis, e ia subindo até se enroscar junto ao meu peito. Quando, já adulta, tinha filhotes, chamava-me para os esconder nos sítios mais variados, pois sabia, instintivamente, que eles iriam desaparecer. Com os dentes, pegava num filho pela pele do cachaço e olhava para mim, ansiosa, pedindo-me que fizesse o mesmo. Eu pegava noutro com os dedos e acompanhava-a para o local escolhido. A minha vida com a Nina durou 14 anos. Posso afirmar que existem relacionamentos interanimais.
Sei, é horrível ler algo ruim. Mais que isso, é ruim ter pago por algo ruim! Seus conselhos são realmente muito pertinentes quanto a necessidade de se consultar um profissional antes de publicar, mas acho que quem paga para publicar, dificilmente tem grana extra para pagar para que lhe ponham os pés no chão (o que deveria vir primeiro). Normalmente seus pés aterrissam quando não têm o que fazer com os livros depois que não vendem nada, e a grana já se foi. Seria muito mais barato ter pago pelo revisor, certo? Pois vou dizer uma coisa. Não me considero um craque na escrita, por isso, quando fui me meter a publicar, paguei por um leitor crítico primeiro, e depois por uma revisão profissional; e sabe da maior?: descobri que escrevo e reviso melhor que o tal profissional. Não adiantou nada ser humilde, achando que era tão ruim que qualquer um poderia ser melhor. Não é verdade! Por isso, amigos, cuidado com quem vai deixar seu dinheiro, que, embora seja feito de papel, "não nasce em árvores".
Pilar, adorei as dicas. No momento, estou preparando dois romances para começar a busca por editoras. Vou rever as minhas observações.
Continue dividido seus conhecimentos.
É... foi um tapa na cara dos que acham que escrevem. Ao mesmo tempo, mais um incentivo aos que sabem que sabem disso. Ainda assim, escritores-de-estante como eu (de-estante porque colecionamos originais por mil vezes recusados), não mais sabemos o que fazer quando, mesmo seguindo dicas como as suas, não somos relevados.
Ainda bem que o papel eletrônico, leia-se computador+monitor+teclado+editor de texto, está ajudando a preservar a madeira em pé! E na terra dos que não conseguem entender o que lêem, quando sabem ler, escrever um bilhete já é façanha. Teus conselhos e dicas, caríssima Mestra, são de enorme valia, principalmente, para os que conseguem exercitar um mínimo de autocrítica. A eles, o blog. Viva a escrita eletrônica! Não custa (quase) nada, a gente corrige ou apaga com facilidade, mostra para a família, infla o ego e não esperdiça dinheiro com "encalhes" garantidos. Do outro lado, os editores tambem estão precisando de um "upgrade". Fazem cada escolha... Tal como vc diz, Faculdades não formam nem produzem escritores, bons ou maus.
Acho que faltou mencionar a vocação, o dom, o "borogodó" especial, além do conhecimento técnico, sem o qual, nem com ajuda de gohst-writers, orientadores, mestres, etc., um deslumbrado vai virar a produzir literatura.
Cara Pilar, notei em seu artigo uma velada sugestão para que os candidatos a escritores façam o curso de Letras. Permita-me uma opinião: se alguém quiser ficar íntimo das palavras, leia. Leia tudo: histórias em quadrinhos, romances da Barbara Cotland, sacrifique-se com os textos de Guimarães Rosa, penetre no cipoal dos escritos de James Joyce - leia de bula de remédio aos blogueiros juvenis. Com o tempo será capaz de separar o joio do trigo. Se quiser ser um professor, faça a faculdade de Letras - quem sabe um dia possa ocupar a cadeira do mestre...
Inda bem, ou lamentável, que só tenha lido esse teu cometário sobre preservar as árvores agora. Publiquei 1 mil exemplares de uma novela (O dia do descanso de Deus) há ano e meio. Tenho menos de 100 exemplares em casa e em duas livrarias. Um programa em Pelotas dia 11/10 e outro em Livramento dia 6/11. Edição do autor, vendi uns 200 pela Internet, desde relações havidas em Overmundo, Recanto das Letras e Orkut. Tem em duas livrarias de Porto Alegre, a Nova Roma e a Palavraria. Vendi também em conversas com pessoas que lêem, um programa que faço em bairros sobre literatura. É meu primeiro livro. Miseravelmente, sou apenas jornalista. Não fiz Letras. Não paguei um tostão para qualquer profissional resenhar ou caitituar. E já plantei algumas centenas de árvores no meu meio século de existência.
Curioso: o primeiro texto meu que elogiaram em público foi uma composição escolar no primário sobre O Dia da Árvore, em 1964. Governava já o partido verde oliva. Viva a liberdade!
Achei um ótimo texto, parabéns. No entanto, gostaria de dizer que não concordo com sua opinião em relação ao pretérito-mais-que-perfeito. Sim, não é usado na linguagem coloquial; mas é necessário para descrever o passado do passado, coisa que o pretérito simples não faz direito. Se dizemos "O homem foi ao banco. Teve um pressentimento..." é uma coisa. Agora, "O homem foi ao banco. Tivera um pressentimento..." você já sabe que o pressentimento foi antes de ir ao banco. Há gramaticistas que defendem o uso do mais-que-perfeito apenas para a troca pelo "havia tido" ou "havia havido" (dada a relação pré-existente entre os verbos ter e haver), limitando seu uso para "tivera" e "houvera" apenas. Não concordo. Acho que este tempo verbal tem sua função e deve ser usado. Se não fosse útil, concordaria.
É por sermos em maioria humildes demais que poucos de nós enriquecem; não acreditamos sermos capazes de fazer algo suficientemente importante e criativo que mereça nos enriquecer de forma justa. O comentário de Paralaze contando a história de seu gato, apenas uma parte da vida de uma das "seis bilhões de pessoas no planeta que tem uma trajetória marcante. Ao menos para si mesma", me tocou. Fosse a orelha de um livro, eu o teria comprado... ou ao menos teria dado uma espiada na livraria. Cada um de nós tem algo especial a compartilhar, a menos que não acredite em si mesmo e não faça nada, não crie nada. Acreditem e criem, não sejam humildes e não se preocupem com os outros 6 bilhões de pessoas que pensam ter uma história de vida surpreendente mas simplesmente nunca farão disso inspiração para uma bela criação.
Apenas para atualizar a url do blogue meu. Minha opinião sobre o escrito continua sendo a mesma. Plantei mais algumas árvores. Vendi ou distribuí toda a edição impressa da minha primeira novela. Estou concluindo a segunda, um romance policial, também no perfil novela. E - pasme! - vou imprimir em papel, antes que o mundo acabe em 2012. Consultei um avatar e ele me disse que não serei eu a desequilibrar o planeta. Viva a liberdade de expressão, de impressão e as impressões sobre a liberdade.
Lembro que, na minha infância, no primário, ganhei um concurso de redação. E foi isso que, naquela época, numa cidade de pouco mais de 5 mil habitantes, me deu impulso para gostar de ler. Meu pai sempre incentivou a leitura e a estante de casa, repleta de obras literárias, sempre esteve ao alcance das minhas mãos. Não cursei Letras, não tenho o menor interesse em pagar editora para publicar um livro e acho que maioria delas publica obras apenas pelo retorno financeiro e não pela qualidade do trabalho. Acredito que, se o ensino público no Brasil fosse de melhor qualidade, a produção literária dos anônimos que se sentem poetas ou contistas também seria muito melhor. Num país em que alfabetizar significa apenas saber juntar letras para escrever o nome e em que inclusão digital é a mesma coisa que dar Ipad para todo mundo, a força de vontade daqueles que se empenham para aprender, por conta própria, sobre o (muitas vezes inacessível) mundo literário é de grande valor.