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COLUNAS
Quinta-feira,
10/2/2022
Retrato arredio de cavalo
Elisa Andrade Buzzo
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Monto em um cavalo ou um cavalo que monta em mim? Um cavalo que me carrega ou carrego um cavalo? Ou seria um camelo, um jumento, ou qualquer outro animal de montaria, cujo perfil me confunde e se confunde em mim? Bordejo mentalmente o gradeado da hípica em seus limites com a sela do real. O focinho úmido e preto de um animal mergulha no feno quente, num dia que é de sol. Esse contato que é prazer e necessidade unidos, em conformidade com a ânsia e com o que deve ser feito. Sem rodeios, assim será repetido na medida justa da calma fome do perfil de animal ruminante.
E penso em um dia pensar nisso, adiante, e escrever sobre, se assim fosse possível ser como um bonito consolo, como uma possibilidade de alento, como uma imagem densa e clareada para ver de olhos fechados, a qual os transpassa como um foco de luz estourando na escuridão da retina. O pensamento começa com o vento que traz cheiro de esterco e um relincho ao longe. Dobra-se uma curva ressequida de cinzas, e se adentra por um portão inexistente, onde há apenas uma coluna cimentada de demarcação de início. E onde não há término, apenas contemplações em movimentos circulares, números colados nas ancas, doloridas ferraduras e espaços quaisquer e totais de corridas e cavalgadas malucas.
O severo Auriga de Delfos. Canelas de cavalo. Um braço. Rédeas de cavalos partidos. O corpo que é corpo e coluna. Uma escultura como busto de cavalo. Olhos de pedra. Uma montaria em moto-contínuo. Partes de um cavalo formam um perfil tardio de cavalo ou de homem. Um animal cubista, espalhado, abstrato, passível de ser montado ou de montar? Rostos que se perdem, patas que correm, um rosto antigo que se vê no rosto presente, e esse rosto é uma ilusória realidade. Não se sabe se se acredita ou se descredita em faces bifrontes. Um rosto que sorriu um sorriso já sorrido; e, no entanto, agora sorri como se fosse pela primeira vez.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
10/2/2022
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