|
COLUNAS
Sexta-feira,
1/7/2022
As fezes da esperança
Luís Fernando Amâncio
+ de 8600 Acessos
Em uma mesma manhã, presenciei duas cenas que me levaram da desesperança à fé em um futuro melhor.
A primeira aconteceu em um supermercado. Eu saía com minhas compras – três itens e três dígitos de desfalque no cartão de crédito, como habitual. E, no sentido contrário, um homem discutia com o segurança.
– Então chama o gerente. É um absurdo me barrarem por não usar máscara! Isso não tem embasamento sanitário ou jurídico. Vocês vão cobrar também a cartela de vacinação?
O nervosinho mentia. Há embasamentos científicos e jurídicos para a abordagem. Em Belo Horizonte, o uso de máscaras em lugares fechados voltou a ser obrigatório desde o dia 14 de junho, através de decreto municipal. Mas, como não tenho paciência para defensores do direito de “expor os outros às gotículas de saliva”, segui o meu caminho. Triste, confesso. Qual a dificuldade em usar uma máscara no rosto?
Metros adiante, presenciei a segunda cena. A da esperança. Ela começa com fezes abandonadas em frente a um prédio em que funcionam duas agências bancárias. Não posso afirmar se eram excrementos humanos. Pela proporção, entretanto, me atrevo a dizer que a matéria não seria proveniente de um cachorro pequeno.

Curiosamente, as duas agências bancárias são especiais. Não integram a categoria daquelas em que você enfrenta fila para se decepcionar com seu extrato nos caixas eletrônicos, ou retira a senha para, uma hora depois, ser assediado com a oferta de títulos de capitalização.
São agências prime. Ou personnalité. Afinal, o requinte só é legítimo quando escrito em língua estrangeira. São filiais exclusivas para os clientes VIPs tomarem um cafezinho enquanto discutem com seus gerentes a sigla da vez para investir. E nenhuma delas é título de capitalização. Isso em um ambiente projetado com muita madeira e plantas artificiais que, diferente das que encontramos nas outras agências, parecem-se muito com as naturais.
Enfim. Voltemos para as fezes. No curto período em que observei a cena – pode não parecer, mas tenho ocupações – vi senhores e senhoras, trajando a elegância que o inverno permite, desviando das fezes com desagravo. Torcendo o nariz para demonstrar repugnância.
E isso me deu esperanças.
É sério. Eu pensava que as pessoas andam anestesiadas demais para sentir asco. Que haviam normalizado, para usar uma palavra da moda, a desgraça. Não se importavam mais com o mau cheiro do que encontravam por aí.
Um exemplo fácil é a gasolina. Anos atrás, um aumento de alguns centavos era o suficiente para se instaurar um clima de guerra civil. Repórteres, direto de postos de gasolina, davam o microfone à voz das ruas, que salivava contra o governo. Hoje, com aumentos bem mais robustos, nada acontece. Ou melhor, pouco. A cada anúncio de aumento, nossos bravos motoristas só lançam mão de uma estratégia: abastecer o máximo possível suas máquinas antes do próximo aumento.
Foi um exemplo banal. As notícias ruins são tantas e as reações, tão tímidas, que eu jurava que o espírito nacional estava morto. Ou, ao menos, adormecido. Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips são ultrajantes. Um horror. Que se soma a um longo histórico de execuções de ativistas que deveria envergonhar até os bebês que nascem no Brasil. Porém, parece que se revoltar com esse tipo de crime é “ser de esquerda”. Vide a dificuldade do presidente em ao menos manifestar sincero pesar com a brutalidade.
E já que o tema é governo, horror ali é o que não falta. O mais recente escândalo, o dos pastores ditando o destino das verbas no Ministério da Educação, é um retrato da pilhagem em que nos encontramos. Estamos no quarto ano da presidência de Bolsonaro e talvez o MEC seja a pasta que mais concentrou lunáticos no seu comando. Um feito, já que a concorrência é grande. Entre olavistas e pastores, a educação ficou relegada a interesses políticos. O escândalo que rendeu a prisão de Milton Ribeiro é só a ponta de um iceberg de desmontes que atingem também outros ministérios.
Os exemplos poderiam se alongar, mas já extrapolei meu espaço. O importante é que, apesar de tudo demonstrar que o brasileiro atualmente aceitaria as piores desgraças com a mais pavorosa inércia, há um sinal vital. As pessoas ainda se repugnam com fezes. Torcem o nariz. Desviam do caminho.
Logo, há chances do gigante acordar. Afinal, merd* é o que não falta por aí.
Nota do Editor
Leia também "Pelo Fim da Palavra VIP".
Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte,
1/7/2022
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Lançamento de Viktor Frankl de Celso A. Uequed Pitol
02.
Xadrez, poesia de Ana Elisa Ribeiro de Jardel Dias Cavalcanti
03.
Discos de MPB essenciais de Jardel Dias Cavalcanti
04.
Road-book em alta velocidade de Marília Almeida
05.
Chicletes de Ana Elisa Ribeiro
Mais Acessadas de Luís Fernando Amâncio
em 2022
01.
As fezes da esperança - 1/7/2022
02.
Epitáfio do que não partiu - 8/4/2022
03.
Mamãe falhei - 11/3/2022
04.
A pior crônica do mundo - 23/9/2022
05.
Uma alucinação chamada dezembro - 11/2/2022
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|
|
|