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Segunda-feira, 1/10/2018
Blog
Redação
 
A melhor versão shakespeariana de Kurosawa

Não fui ao cinema no último final de semana. Embora queira assistir muito do que está em cartaz, não havia tempo. Mas fui ao teatro. Assistir Hamlet, drama de Shakespeare montado pela Armazém Companhia de Teatro. Até então, só havia visto algumas das inúmeras adaptações para o cinema e não fazia ideia que eram versões de obras de Shakespeare, com exceção das que recebiam o nome. Dirigida por Paulo de Moraes e com Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Marcos Martins, Lisa Eiras, Jopa Moraes, Isabel Pacheco e Luiz Felipe Leprevost no elenco, o público presente foi apresentado a umas das tramas mais famosas do dramaturgo inglês. Contando com algumas atualizações, muitas vezes cômicas, deixando o espetáculo mais próximo dos dias de hoje.



Há 4 anos, quando Shakespeare completaria 450 anos, surgiram muitas listas de filmes baseados em sua obra. Revi alguns dos filmes com outros olhos, levando em consideração a história original. Em relação a Hamlet, o que mais me chamou atenção foi 'Homem Mau Dorme Bem’ (1960), de Akira Kurosawa. Uma mostra em homenagem ao diretor, que aconteceu no ano seguinte, descobri que a importância do filme vai muito além de uma nova visão da obra de Shakespeare. Acontece que em 1959, com maior visibilidade, Kurosawa fundou sua própria produtora, a Companhia de Produção Kurosawa. ‘Homem Mau Dorme Bem’ foi uma escolha arriscada como primeira produção. Baseado no roteiro de seu sobrinho, Mike Inoue, o filme trazia aspectos políticos e sociais que não faziam parte de seu repertório em longas anteriores.

Relacionar o filme de Kurosawa a Hamlet não é uma tarefa muito difícil. O Príncipe Hamlet busca vingar a morte de seu pai, o Rei Hamlet. Muitas vezes o personagem parece estar dominado pela loucura, mas tudo parece ações falsas, parte de seu plano para investigar e descobrir quem foi o assassino de seu pai. Já em Homem Mau, Koichi Nishi desconfia da versão contada sobre a morte de seu pai, onde dizem que ele se atirou pela janela há cinco anos. Para investigar o caso, ele acaba por se casar com a filha de um grande empresário do Japão, que era dirigente da empresa onde seu pai trabalhava. ficando próximo de seus suspeitos.

Os primeiros 20 minutos do filme é tido como um dos melhores trabalhos de Kurosawa. O casamento de Koichi nos dá pequenas amostras do que vai acontecer durante o filme, mas nada que deixe a história previsível. Embora o restante não acompanhe a maestria do começo, é interessante ver como o diretor trata temas tão censurados no Japão, como a corrupção e assassinato político. Levando em conta a época, enquanto o filme era produzido muitos japoneses, em sua maioria jovens, se rebelavam contra o Tratado de Segurança EUA-Japão, que ameaçaria a democracia e daria mais poder a políticos e corporações. Quando estreou, embora tenha tido uma bilheteria modesta, ‘Homem Mau Dorme Bem’ foi um sucesso da crítica. Sendo uma das melhores versões shakespeariana do diretor, que levou outras obras ao cinema.

É impossível não fazer paralelos com a situação do Brasil, já nos dias de hoje. Se analisarmos com atenção, temos uma democracia ameaçada e o poder está nas mãos de políticos e corporações e aqueles que deveriam trabalhar a favor do povo, fazem o que bem entendem, silenciando quem os contraria. Essa situação virou algo tão comum que nem é preciso citar nomes para que todos saibam sobre o que/quem estou falando. E existem hoje muitos Hamlets e Nishis em busca de vingança. Mas a tragédia real não consegue ser tão romantizada quanto os que vimos na TV ou no palco. É sempre mais cru, obscuro.

No fim de tudo, Hamlet consegue uma falsa vitória. Descobre que seu tio, Claudius, é o assassino de seu pai. Mata ele e todos os personagens, no fim acaba morrendo junto com eles. Já Koichi Nishi, morre em um acidente de carro, mas deixa a dúvida: foi mesmo um acidente, ou alguém o provocou? Enquanto isso, os assassinos de seu pai saem ilesos. As duas histórias chegam ao fim de maneira fria, impiedosa. Isso deixa o espectador desamparado, depois de um convite para entrar em narrativas tão intensas, um final tão desconcertante chega a ser desapontador. Mas nem sempre um príncipe ou um herói encontram o mistificado final feliz. Mas talvez as duas obras tenham como objetivo mostrar a ganância e impunidade que assolava a Dinamarca em 1600, o Japão em 1960 e o mundo inteiro em 2018. E só nos resta indagar: quanto tempo mais levaremos para aprender?

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Postado por A Lanterna Mágica
1/10/2018 às 21h50

 
VOCÊS

Vocês que não nasceram nestas plagas

este recanto de mar contra a montanha

e não recolheram o azul dos dias

nem o dobraram como um lençol sem costuras

depois de branquejado pelos sóis

nem escutaram o murmúrio dos mariscos

no seu secreto sacrifício

sei que é difícil eu sei

compreender as semanas dessas conchas

ou mesmo o canto das gaivotas brancas

que sobretudo gritam num coral

mas eu sim homem do mar

antes menino dessas águas

conheço todos os caminhos sem pegadas

conducentes além do litoral

lá onde os anjos apedrejam os pombos

e se formam os crepúsculos purpúreos

onde nascem enfim os oceanos.

Vocês que desconhecem

os enredos dessas musgosas pedras

onde rebate o mar bate se esbate

sei que é difícil imaginar castelos

aonde não os há sob o luar

e antever de longe um fogo-fátuo

desses que brilham intensamente sem queimar.

Esses mistérios são os dons cativos

dos que nasceram e viveram à beira-mar

entre golfinhos anêmonas sereias

afogando-se na secura das areias

até a voz faltar.

Ayrton Pereira da Silva

in Umbrais, Ed. 7 Letras



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Postado por Impressões Digitais
1/10/2018 às 16h21

 
Bolsonaristas, Mendes da Rocha e As Brasas

Talvez porque passei muito tempo lendo, estou numa fase mais “outdoor” e têm me atraído as exposições e o teatro.

Acho que nunca vou deixar de ser um analfabeto plástico, no dizer de Nelson Rodrigues. Mas tento evoluir. Ao mesmo tempo, já sei que nunca vou escrever com a mesma fluência do Daniel Piza.

Já o teatro, eu tenho achado mais interessante que o cinema. Minha sensação é a de que estamos “empapuçados” de audiovisual... Dada a onipresença de telas... Também por causa do streaming, que banaliza o consumo.

O teatro ainda é um ritual. Você tem de ir lá. Os atores têm de estar lá. Não é uma reprodução incessante e infinita... Na era da reprodutibilidade técnica, como diria Benjamin, ainda não se conseguiu produzir teatro “em série”.

Toda essa introdução teórica para dizer que rumei para a Paulista de novo - rumo ao Itaú Cultural -, mas errei de exposição. O que não foi de todo perdido - porque encontrei outra (tão interessante quanto - ou mais).

O fato é que estou mais desligado da política, nestas eleições, e dei de cara com a manifestação pró-Bolsonaro. Junto com outros “desligados”, que, já na Consolação, comentaram: “O que é esse pessoal com camisetas da CBF?”.

“Tinha muita gente?”, vão me perguntar. Entre aquelas de 2014 até o impeachment, que eu presenciei, era uma manifestação “média”. Cheia do Masp até a Brigadeiro, mais ou menos. Depois, vazia.

Uma turma aguerrida. Me senti no segundo turno. Não eram só homens. Nem velhinhos pedindo “intervenção militar”. Mas também não eram famílias - como no auge do impeachment...

No primeiro carro, um discurso meio solto e “na espera” por Eduardo Bolsonaro. No segundo carro, Levy Fidélix, com pouca audiência, querendo pegar carona no Bolsonaro e no Mourão.

No terceiro carro, já com bastante audiência, Janaína Paschoal. Relembrando os tempos do impeachment, que, segundo ela, não teve ajuda nenhuma da “oposição”.

Num dado momento, alguém pede para ela dar um recado e Janaína se irrita: “Não; não vou falar nada do que eu não quero falar!”. Chateada, encerra sua fala logo depois - e até se esquece de dar seu número. Quando alguém assume o microfone e lembra: “Mas, Janaína, qual é o seu número?”.

Nessas, eu cheguei no Itaú Cultural. Nem sabia que havia uma “ocupação” do Paulo Mendes da Rocha. Foi o que me salvou. Lógico que eu gosto da Pinacoteca, do Sesc 24 de Maio e até da loja da Forma, mas tão interessante quanto suas obras é ouvir o Paulo Mendes da Rocha falar.

Ele atingiu, há muito tempo, aquele nível de “mestre oral”. Num dos vídeos, conta das origens da sua família, até ele nascer em Vitória e vir morar em São Paulo. De repente, a saga da família dele - que é a saga de muitas famílias paulistanas - adquire tons épicos, só porque ele narra...

Num outro vídeo, conta do seu projeto mirabolante de transformar a Praça da República numa piscina pública. Justifica o quase delírio contando que “ninguém encomendou”, que ele fez algo “totalmente livre” - “como um poema” ou “um conto indignado” (palavras dele). Ressaltando o aspecto “literário” da coisa, conclui: “É um discurso”.

O Paulo Mendes - como diz a Carol, que foi orientada dele - me inspirou a tomar um fôlego e ir até o Sesc Santana, ver a adaptação teatral para a obra de Sándor Márai, “As Brasas”, com Herson Capri.

A turma do Bolsonaro ainda lotava o metrô. No meio, duas senhoras, meio por fora, meio por dentro: “Já votei no Zé Bonitinho uma vez, não voto nele mais”. Estavam falando do João Doria.

Mas todo este texto para tentar te convencer a ir ver “As Brasas”...

Já tinha cruzado com o livro, pela Companhia das Letras, mas nunca tinha lido nada do Sándor Márai. E por falar em política: era aquele autor que a Dilma fingia que lia, numa propaganda, mas tentava citar e se esquecia...

Vou tentar elogiar a peça sem contar o enredo (apesar de ser difícil). É uma história muito bem construída, de dois amigos que se (re)encontram, na velhice, depois de décadas.

Em comum: as lembranças em Viena, na época da guerra, a escola militar, até as caçadas e, é claro, uma mulher. Alguém que morreu e que não está mais para dar a sua versão.

Um dos dois é, claro, o marido, e resolve tirar satisfações com o outro, de episódios que os três viveram, o famoso “triângulo” - episódios que não se esclareceram, mesmo depois de *décadas*...

Não vou contar o final. Até porque - independente dele -, já no meio da peça concluí que muitas das grandes histórias são as que encerram um grande mistério...

Histórias até que *nós* vivemos, e onde nunca vamos saber, ao certo, o que aconteceu... As motivações de cada um... As ações que não compreendemos... As perguntas que gostaríamos de fazer...

Herson Capri está muito bem no papel principal. Igualmente, Genézio de Barros, como coadjuvante. Foram aplaudidos de pé - junto com Naná Carneiro da Cunha, que faz algumas aparições, enquanto toca o “cello”...

Depois da ovação, eles, muito humildemente, disseram que vão ficar só seis semanas em cartaz - e que dependem de nós, da plateia, para fazer do espetáculo um sucesso.

Pois bem, estou fazendo a minha parte. Agora cabe a você ir lá ver. Independente de quem ganhar, ou de quem perder, no domingo que vem ;-)

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Postado por Julio Daio Bløg
1/10/2018 às 10h25

 
A moral da dúvida em Paulo Leminski

Há um poema de Paulo Leminski (1944-1989), sem título, que diz o seguinte:

nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou homem de fé

certezas o vento leva
só dúvidas ficam de pé.
(In: O ex-estranho).

O que se sobressai no poema é a afirmação final: certezas o vento leva / só dúvidas ficam de pé”, sugerindo a perenidade das dúvidas em contraposição à transitoriedade das certezas, como se estas fossem menos importantes. Nesse nível, é um elogio da dúvida, presente desde o primeiro verso “nunca sei ao certo”.

Não raro, a dúvida é estabelecida como característica constituinte de uma individualidade, comportamento e personalidade, como se fosse uma conduta ética particular. Em síntese, eleva-se a dúvida como virtude.

A afirmação final no poema de Leminski – “certezas o vento leva / só dúvidas ficam de pé “ –, parece valorizar a perenidade da dúvida em detrimento das certezas. Contudo, observe que essa “perenidade” advém de uma afirmação um tanto categórica: “certezas o vento leva / só dúvidas ficam de pé”. Se somente as dúvidas permanecem, como é possível estabelecer essa permanência a partir de uma afirmação? Afirmações categóricas pertencem ao campo das certezas, não da dúvida. Como é possível, então, “só as dúvidas ficarem de pé” se está colocado como uma certeza?

Esse paradoxo revela que a dúvida não é uma categoria confortável e, por si mesma, também não é uma virtude. Aplicada ao campo moral e ético, como está sugerido no poema ao indagar-se sobre si mesmo, pode servir como ponto de partida para o autoconhecimento. Entretanto, conhecer-se não é uma tarefa tranquila, pois implica honestidade e coragem para reconhecer defeitos e limitações, assim como vigor para enfrenta-los. Isto é, a dúvida inicial pode ser superada, mas o conhecimento de si mesmo não é um processo rápido, fácil e indolor. Ao contrário: é preciso coragem, paciência e persistência.

Duvidar, inclusive, pode se tornar um gesto conformista e, com isso, legitimar a preguiça, pois simplesmente aceita-se as dúvidas sem tentar superá-las. Não se atenta que elas podem dar um direcionamento reflexivo cuja resposta, inicialmente, é recebida como certeza, mas não implica que seja absoluta; a incerteza pode e deve se renovar, permitindo o surgimento de outras dúvidas. Por isso a hesitação no início do poema: “nunca sei ao certo / se sou um menino de dúvidas / ou homem de fé”; observe a sutileza na associação entre a “dúvida” com “menino”, que pertencente ao universo infantil, talvez “inocente”, e a “certeza” com “homem”, que remete ao universo adulto, sugerindo que vencer as incertezas redunda num processo de amadurecimento. A convicção de hoje não implica, obrigatoriamente, que valerá amanhã, pois o futuro trará outros questionamentos, outras suspeitas, outras indecisões. Trata-se de um processo cíclico, moroso e pungente, em constante renovação.

As dúvidas podem e devem ser superadas, o que não significa transformar as certezas num absoluto. Quando uma dúvida se resolve, outra surge, e é esse o império da dúvida. Não é a permanência da mesma, mas, na sua superação, surgirem outras.

To be continued...

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Postado por Ricardo Gessner
30/9/2018 às 11h30

 
Millôr no IMS Paulista

Saí de casa com a ideia de fazer a “ronda” das exposições. Iria começar pelo IMS, iria seguir para a Fiesp, Casa das Rosas e Itaú Cultural.

Peguei o metrô orgulhoso - na contramão dos torcedores do São Paulo -, desci na Paulista, subi as escadas do Moreira Salles, mas, quando entrei na exposição do Millôr, e vi aqueles murais enormes, comecei a chorar e fui de olhos marejados até o final.

Nem visitei o resto do Instituto Moreira Salles. Desisti do Itaú Cultural, da Casa das Rosas e dispensei até o Rafael - aquele, da turma do Leonardo -, preferi não diluir o impacto do Millôr.

Por que chorei? Não sei; emoção. Quando estive com Millôr, há 15 anos, ele vinha de uma homenagem protocolar, aborrecida... Ao mesmo tempo, sentia-se pouco reconhecido no Brasil - o que parece uma contradição; mas não é, não.

Millôr era muito grande. Difícil receber uma homenagem à altura. Ainda mais no Brasil; ainda mais em vida.

Mas quando entrei na exposição do Moreira Salles e vi aqueles murais enormes, senti, em nova dimensão, o grande artista que ele foi - e que o reconhecimento havia chegado, de alguma forma. Mais de 5 anos depois de sua morte? Sim; mas é a vida! E, no Brasil, antes tarde do que nunca...

“A ideia de um projeto estético tradicional sempre foi estranha a Millôr Fernandes[...] ele dizia-se antes de tudo um jornalista e via o impresso, sobretudo em revistas e jornais, como a realização plena de sua obra”, diz o texto de abertura da exposição.

“Dos autorretratos à visão desencantada do Brasil, passando pelas reflexões sobre a condição humana e pelo prazer puro e simples das formas, ‘Millôr: obra gráfica’ propõe uma visão de conjunto de um dos maiores artistas brasileiros do século XX” - acho que foi quando as lágrimas rolaram...

Estava emocionado pelo Millôr - porque, de fato, ele *foi* um dos maiores artistas brasileiros do século XX. Artista no sentido plástico do termo. Além de escritor; além de intelectual; além de pensador. Sem contar o humorista; o dramaturgo; o tradutor de Shakespeare. O inventor do frescobol! Millôr teve tantas facetas que estamos sempre nos esquecendo de alguma...

Quando estive com ele, havia saído a sua edição do célebre “Cadernos de Literatura” do Instituto Moreira Salles. Daquele seu jeito descontraído, ele me disse em seu estúdio: “Esse pessoal do Moreira Salles esteve aqui... E fez um bom trabalho, viu? Estiveram aqui; pegaram algumas coisas... Foram lá atrás, na minha carreira...”

E hoje temos de reconhecer: foi louvável que o IMS assumiu o acervo de mais de 7 mil desenhos do Millôr. Pois, quantos acervos não se desfizeram quando seus donos se foram? Eu vi alguns. Do Daniel Piza, por exemplo, eu nem tive tempo de ver - quando soube, já havia sido desmembrado...

Ao mesmo tempo, é irônico - porque Millôr olhava com uma certa desconfiança para os Moreira Salles... Por causa do Walter Moreira Salles, o “rico” de sua época.

“Qual a diferença entre eu e o Walter Moreira Salles?”, Millôr se comparava. “Eu moro de frente para a mesma praia que ele” (no Rio, obviamente). “Ele pode viajar... mas eu também posso! Eu posso ficar, sei lá, 10, 20 dias fora... Não; 20 dias é muito!”, o próprio Millôr se emendava...

Sua versão de “Guernica”, de Picasso, na exposição, não é uma escolha aleatória. Tanto quanto o gênio do cubismo, Millôr produziu muito. Ia ao estúdio todos os dias; inclusive sábados e domingos. E foi longevo - quando conversamos tinha, aproximadamente, 80 anos, parecia lépido e fagueiro: com um discurso fluente, bem-humorado e brilhante, o mesmo desde os tempos de “O Cruzeiro”.

Me emocionei com as fotos do estúdio, em Copacabana; principalmente no catálogo da exposição. Me sentei naquele sofá vermelho e Millôr se sentou na poltrona amarela, em frente. Tentei espiar sua biblioteca ao longe e avistei pastas etiquetadas: “Pif Paf” - uma das alas da exposição...

Claro que nem tudo são flores no IMS. Senti um viés “político” ao se colocar os desenhos da época da ditadura militar (1964-1984) logo na entrada. Como um lembrete - de tempos que podem voltar... Talvez por causa de algum candidato militar nas próximas eleições?

Lembrando que Millôr foi um crítico feroz de Fernando Henrique Cardoso, cujos livros “clássicos” não perdia a oportunidade de mostrar que eram intragáveis. E, naturalmente, foi crítico de Lula - sobre quem, afirmava, “a ignorância havia subido à cabeça”. A ignorância.

Ao contrário da turma do Pasquim21, que não quis fazer “humor a favor”, quando Lula assumiu, em 2004 encomendei uma capa, ao Millôr, para a revista do Digestivo com a FGV/SP, e ele não foi nada econômico na legenda: “Os governantes proclamam: Bananas pra nossa cultura” - em pleno governo do PT, em plena gestão de Gilberto Gil, no MinC.

Millôr era da geração do Paulo Francis, que tem uma citação famosa: “Os baianos invadiram o Rio para cantar: ‘Ah, que saudade eu tenho da Bahia’... Se é por falta de adeus, PT saudações”. Caetano brigou com Francis mais de uma vez. E no Pasquim, os invasores baianos eram chamados de “baihunos”, em referência aos bárbaros que invadiram a Europa nos estertores do Império Romano...

O desenho que Millôr fez para o Digestivo está lá, na primeira ala da exposição. Foi selecionado entre os 7 mil de seu espólio. Mas está sem a legenda. Aos organizadores, deve ter parecido familiar... Afinal, eu o divulguei, à época, a torto e a direito... Mas os organizadores não conseguiram se lembrar o suficiente - e, sem a legenda, ele ficou meio fora de contexto... Mas me senti vingado, de alguma forma ;-)

“Daio, cuide da minha glória - antes que ela seja póstuma”, Millôr me escreveu, num e-mail, quando já estava mais pra lá do que pra cá. Não lembro o que respondi na época, mas hoje eu diria que:

“A sua glória está garantida, Millôr. Você não precisa se preocupar. A exposição está linda! Que grande brasileiro você foi... Estou ainda mais honrado de tê-lo conhecido.”

Para ir além
"Meu encontro com o Millôr"

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Postado por Julio Daio Bløg
24/9/2018 às 09h55

 
A dignidade da culpa, em Graciliano Ramos

Em 1934, um brasileiro nascido na cidade de Quebrângulo, Alagoas, chamado Graciliano Ramos, publicou o romance São Bernardo. É um livro que põe o dedo numa ferida sempre aberta, por mais esforços que se faça para silenciá-la: o sentimento de culpa. E não seria exagero dizer que a obra mereceria estar ao lado de Crime e Castigo (Fiódor Dostoievski), Ressurreição (Leon Tolstói) ou Metamorfose (Franz Kafka), num panteão de obras essenciais ao entendimento da natureza humana, não fosse a língua portuguesa que a condenou a ser um “galho menor de um arbusto secundário dos jardins das musas”. Ora, no jardim das musas não há arbustos secundários, e os leitores de língua portuguesa também têm seus privilégios.

O romance é uma espécie de autoanálise em que Paulo Honório, narrador-personagem, reconta a história de sua ascensão social, graças às falcatruas, emboscadas, relações de falsa amizade e interesse. Relembra de como levou Luís Padilha (antigo dono e herdeiro da fazenda São Bernardo) à falência; de como planejou o assassinato de seu vizinho para expandir suas terras; de como perdeu o interesse pelo próprio filho; de como levou sua esposa, Madalena, ao suicídio.

Diante de tais atrocidades, Paulo Honório lamenta-se de uma, em específico: a consciência de não conseguir sentir culpa. Apesar de pequenos indícios de aflição, trata-se de um sentimento ambíguo, pois não brota de um arrependimento, mas da consciência de ser incapaz de arrepender-se. Diz Paulo Honório: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige”; ou seja, mesmo se tivesse uma segunda chance, não faria diferente. Noutra situação, quando manifesta a ausência de amor pelo filho, sua expressão é emblemática: “Nem sequer tenho amizade a meu filho” – veja-se a precisão e sutileza com que se expressa: nem sequer “amizade” sente pelo filho, ou seja, nem mesmo o mínimo de afeição esperada, ao que se completa: “Que miséria!”.

A interjeição diante da falta de “amizade” pelo filho – “que miséria!” – é reveladora. Paulo Honório reconhece a miséria de sua própria condição moral. “Reconhecimento” é um item importante nas tragédias gregas: é o momento em que o herói reconhece sua condição de desgraça. Nesse sentido, São Bernardo é um romance trágico, construído sobre um paradoxo: à medida que Paulo Honório ascende socialmente, decresce moralmente. É uma ironia presente no próprio nome do protagonista: “Honório” provém de “honorius”, que em latim significa “honorífico”, “honrado”, sendo sua raiz etimológica: “honor”: “honra”; entretanto, toda sua honra se restringe à sua condição social, não moral.

A grandiosidade do romance está na figura de Paulo Honório ao reconhecer sua condição moral miserável e assumi-la como sua responsabilidade. Obviamente que não elogio suas ações criminosas, nem as defendo. Por outro lado, ele não mente para si mesmo: “Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu”. Se por um lado é uma fala que revelaria a perversidade do protagonista, por outro é um gesto de coragem, de alguém que assume a responsabilidade diante de sua condição de desgraça, consciente da própria incapacidade de se libertar.

A atualidade de São Bernardo não está na construção do típico “sinhozinho” que é Paulo Honório; não está na caracterização do explorador avaro e sem sentimentos; não está na crítica ao “capitalismo perverso que corrompe as pessoas”. A atualidade de São Bernardo está em ser um contraponto a um mundo que facilita e, silenciosamente, valoriza a mentira para justificar ou negar as próprias falhas, medos e fraquezas. Se Paulo Honório justificasse o suicídio de sua esposa pela adesão ao comunismo – “Comunista, materialista. Bonito casamento!”, exclama o narrador em pensamento, durante uma conversa a respeito de sua esposa –, seria menos doloroso. Contudo, seria menos honesto, menos consciente.

Quando Paulo Honório assume sua responsabilidade diante da própria vida, quando assume ser o culpado de sua desgraça, torna-se moralmente digno, pois sua coragem e sobriedade merecem respeito. Um gesto raro.

Um dos itens que compõe uma obra clássica é a contribuição para um entendimento mais profundo de nossa natureza e condição. São Bernardo é um clássico.

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Postado por Ricardo Gessner
23/9/2018 às 15h59

 
Ingmar Bergman, cada um tem o seu

100 anos de Ingmar Bergman! Demorei um pouco para conhecê-lo, mas logo o tomei como meu diretor favorito. Por ser um diretor tão diversificado, sempre dizem que cada um tem um Bergman e como todo bom bergmaniano, também tenho o meu. Escolhi filmes que me trazem lembranças e experiências, já que escolher analisando a genialidade do diretor seria uma tarefa muito difícil. Selecionei dois filmes: A Hora do Lobo (1968) e Noites de Circo (1953), senão acabaria falando de todos os filmes.

Comecemos então com A Hora do Lobo, o primeiro que assisti. Diz-se que as horas que ficam entre a meia noite e a aurora são as horas do lobo. É nesse momento em que um casal, formado por Erland Josephson (Johan) e Liv Ullmann (Alma), entra em conflito. Depois de mudar para uma ilha habitada por pessoas misteriosas, o casal entra em um estado crítico e as madrugadas são tomadas pelas histórias de Johan, carregadas de dores e aflições. Inicialmente o filme deveria se chamar Os Antropófagos, o que deixaria claro o mistério em torno do estranhos habitantes da ilha. Mas no final, A Hora do Lobo acabou por ser um bom nome.

Outro filme que gosto muito é Noites de Circo (1953). Não é só o expressionismo destacado em uma época em que era requerido, ou as atuações formidáveis que me atraem para Noites de Circo. Existe algo que me faz assistí-lo sempre que quero ver um Bergman. No filme o diretor coloca uma disputa entre o circo e o teatro. Um amante das duas artes, Bergman nos leva aos bastidores mostrando as dificuldades em viver num circo intinerante e as disputas de egos dos artistas de teatro. Mas no filme eles nos mostra o quão comum os dois podem ser.

Com esses 100 anos, vão exibir muitos Bergmans nos cinemas, uma ótima oportunidade para assistir seus filmes na tela grande. Se me permitem uma dica, o documentário 'Bergman - 100 Anos' é uma ótima escolha para quem não conhece o diretor. Mesmo sendo um doc, algumas histórias são tão mirabolantes que até parece ficção.

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Postado por A Lanterna Mágica
11/9/2018 às 08h14

 
Em defesa do preconceito, de Theodore Dalrymple

Recentemente conclui minha releitura do livro Em defesa do preconceito, de Theodore Dalrymple, cujo estilo de escrita não me canso de ler. O título é claramente provocativo; alguns argumentariam que se trata de uma jogada de marketing para chamar nossa atenção. Que seja, pois nesse gesto de “chamar a atenção” ele também revela, sutilmente, a nossa ignorância diante da aplicabilidade do termo “preconceito”, com larga aceitação (ou rejeição), mas, ao mesmo tempo, feita de maneira irrefletida e, não raro, mecânica.

Normalmente o “preconceito” está associado a uma atitude de repúdio anterior à experiência; de rejeitar algo ou alguém antecipadamente, sem conhecimento ou segundo critérios infundados, como: cor da pele, do cabelo, nacionalidade etc. Nesse sentido, “preconceito” é algo deletério; como poderia alguém escrever um livro em sua defesa?

Não é esta acepção que Dalrymple aplica; segundo o autor, há um matiz conceitual que define o “preconceito” como um conjunto de valores morais preconcebidos, construídos ao longo da história e mantidos através da tradição. Diferentemente da acepção comum, neste caso o “preconceito” é algo benéfico e salutar. Nesse sentido, o livro de Dalrymple é tanto uma defesa quanto uma crítica: defende os valores tradicionais e critica aqueles que, sob as mais variadas (e, não raro, infundadas) justificativas, pretendem destruí-los.

Em primeiro lugar, uma pessoa que se declara viver sem preconceitos e os contesta é uma espécie de cartesiano, pois articula um modus operandi similar: se René Descartes preocupou-se em fundamentar um posicionamento filosófico puro, isto é, sem o menor resquício de dúvidas e, desse modo, garantindo-lhe maior segurança para construir um raciocínio o mais próximo da Verdade, alguém “sem preconceitos” almeja, analogamente, um lugar “puro”, sem o menor resquício de preconceito e, assim, apresentar-se como alguém “superior e livre de ideias pré-concebidas”. Em síntese, ao invés da projeção de dúvidas, projetam-se “preconceitos”: “A popularidade do método cartesiano não decorre do desejo de remover as dúvidas metafísicas e encontrar a certeza, mas o que ocorre é precisamente o oposto: jogar dúvida em todas as coisas e, portanto, aumentar o escopo de licenciosidade pessoal ao destruir, de antemão, quaisquer bases filosóficas para a limitação dos próprios apetites” (p. 21)

No entanto, a conduta “anti-preconceito” se apoia numa crítica aos valores tradicionais como forma de justificar filosoficamente comportamentos pessoais licenciosos, assim como alargar (se não, abolir) os limites em torno “dos próprios apetites”. Entenda-se “comportamentos pessoais licenciosos” como sendo os interesses de ordem pessoal, que normalmente são restringidos por alguma “autoridade moral”, por “valores tradicionais” ou algo do gênero.

“Então, subitamente, todos os recursos da filosofia lhes são disponibilizados, e serão imediatamente usados para desqualificar a autoridade moral dos costumes, da lei e da sabedoria milenar” (p. 22)

A História torna-se o centro de contestação, visto que foi através dela – ao longo do desenvolvimento do tempo – que determinados “preconceitos” se formaram e se perpetuaram. Contudo, reconstituir o passado requer uma postura seletiva em relação ao modo e ao que será narrado. Nesse ínterim, um estudioso pode projetar anseios predeterminados ou ideológicos, estabelecendo-os como critério científico de seleção; desse modo, reconfiguram-se outras possibilidades de narrativa histórica, mas que apenas devolve o seu interesse; diz o que se quer ser ouvido.

Um “liberal sem preconceitos”, quando pretende deslegitimar a “autoridade imposta” ao longo da história, estabelece o seu interesse ideológico como critério. Esse gesto demonstra a consequência imediata do combate ao preconceito, cujo resultado não é a sua abolição, mas, no máximo, a substituição por outro preconceito.

“Derrubar determinado preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito” (p. 39)

Nesse sentido, a família, a educação, a história, as artes, a religião, tornam-se alvo de críticas, em que os “caçadores de preconceito” pretendem desmontar a “autoridade repressiva” detrás esses valores. Mas qual o resultado? O que é proposto no lugar? As respostas são várias e estão apresentadas ao longo dos 29 capítulos do livro. Exemplifico com apenas um: as consequências no campo da educação.

“Se alguém se vê moralmente obrigado a limpar a sua mente dos detritos do passado para que possa se tornar um agente moral completamente autônomo, isso implica o dever de não jogar na mente dos mais jovens, os detritos produzidos por nós. Não causa surpresa, portanto, constatar que, de forma crescente, investimos as crianças de autoridade para que administrem as suas próprias vidas, e isso é feito com crianças cada vez menores. Quem somos nós para dizer a elas o que fazer?” (p. 31)

Em termos práticos, isso leva a uma perda de autoridade dos pais diante dos filhos. Na verdade, não se trata precisamente de uma “perda”, mas de uma delegação – consciente ou não – às crianças da responsabilidade de decidirem o que querem comer, assistir, falar, fazer; quando querer dormir, acordar, ir à escola, sem qualquer critério (isto é: valores) pré-estabelecidos. Se isso é visivelmente um gesto de imprudência, que tipo de pais poderiam confiar tamanha responsabilidade aos seus filhos, ainda imaturos?

“Pais preguiçosos e sentimentais, sem dúvida” (p. 33)

As consequências disso podem ser vistas desde em um supermercado, quando uma criança ordena, aos berros, para que lhe compre um pacote de bolachas recheadas para o jantar, ao que a mãe lhe obedece e responde, meio sem graça, às pessoas ao redor: “Ele é assim mesmo”; até a desordem que predomina nas escolas, em que professores são agredidos direta ou indiretamente, física e verbalmente, sem qualquer respeito à sua (antiga, tradicional) autoridade. Em síntese: um mundo predominado de gente mimada e sem o senso de responsabilidade e respeito, que são outros valores tradicionais.

Como o bem disse Dalrymple, numa síntese magistral: “(...) o sábio questiona apenas aquelas coisas que merecem questionamento” (p. 63)

Ora, se por um lado foram os intelectuais quem iniciaram os questionamentos (às vezes convenientes, o que não justifica uma regra) a respeito da “autoridade”, isso não foi mediante uma postura sábia, mas inconsequente, vaidosa e egoísta:

“Em outras palavras, para essa classe, trata-se do mero exercício retórico e de exibicionismo intelectual, no sentido de conferir ao sujeito uma aura de ousadia, generosidade, sagacidade, sugerindo a presença de uma mente independente aos olhos de seus pares, em vez de ser uma real questão de conduta prática” (p. 39)

Combater as “ideias pré-estabelecidas” nem sempre é uma questão de conduta prática, mas é uma atitude típica e artificialmente blasé, de alguém que se pretende colocar num lugar incomum, não-convencional, e que apenas repete o convencionalismo de (tentar) não ser convencional.

Há preconceitos que foram deletérios, claro, o que não justifica a sua generalização ou o constante reexame de toda e qualquer ideia pré-estabelecida. Elas existiram, existem e existirão.

“Temos que ter, ao mesmo tempo, confiança e discernimento para pensarmos logicamente a respeito de nossas crenças herdadas, e a humildade para reconhecermos que o mundo não começou conosco, e tampouco terminará conosco, e que a sabedoria acumulada da humanidade é muito maior do que qualquer coisa que podemos alcançar de forma independente” (p. 137)

Por fim, a sabedoria não está apenas na correção do que deve ser questionado, mas no modo como os valores preconcebidos – os preconceitos – são incorporados na vida prática. “Não se apresenta como uma das grandes glórias de nossa civilização que um homem com habilidades moderadas possa – e talvez deva – saber mais que os grandes cientistas e sábios do passado? Ele vê mais longe por estar sobre os ombros de gigantes, e não porque ele impertinentemente questionou tudo o que alcançou” (p. 129)

O livro de Dalrymple é uma oposição à mentalidade imprudente, pois situa a importância de hábitos e valores importantes em vias de extinção.

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Postado por Ricardo Gessner
9/9/2018 às 17h43

 
Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple

Resenha: Evasivas admiráveis, Theodore Dalrymple

Há alguns anos, durante um jantar, conversava com uma colega sobre a minha afeição pela escrita de Miguel de Unamuno, escritor espanhol e precursor do existencialismo. Aprecio justamente por ele escrever como existencialista, não como filósofo. Para Unamuno, a existência não era uma categoria, nem um conceito ou um sistema abstrato, mas um questionamento sincero sobre aquilo que o fazia sentir-se vivo: seus medos, angústias, aflições. Sua escrita incide sobre questões que lhe interessavam vitalmente, sem reduzi-las a uma dedicação meramente intelectual. Era uma forma de enfrentar seus demônios interiores — se possível superá-los –, mas de maneira nenhuma esquivar-se deles.

Ao concluir, minha interlocutora responde: “Ah… eu não acho que a gente deva ficar pensando muito…”. Ela era psicóloga. E sua resposta ecoava em minha mente enquanto lia Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple. Pois aquela resposta era uma evasiva admirável.

Em várias ocasiões Dalrymple mencionou que um dos seus principais temas de interesse é a respeito da natureza do mal. De fato, o autor discute o assunto em seus vários livros, mas não em termos filosóficos, nem apoiando-se exclusivamente em sistemas abstratos, mas constrói seu raciocínio a partir de sua experiência como psiquiatra e de costumes morais; isto é, de como o fator moral (e sua ausência) influencia comportamentos perigosos, narcisistas e socialmente deletérios.

Contudo, em Evasivas admiráveis foge-se um pouco desse quadro, pois Dalrymple constrói sua reflexão a partir de teorias — teorias psicológicas –, para demonstrar como elas podem, sob o verniz conceitual da ciência, eximir o indivíduo de certas responsabilidades. Noutras palavras, Dalrymple discorre sobre como algumas teorias delegam a fatores externos a responsabilidade dos malefícios individuais, ou incentivam um egocentrismo desonesto, trajado em conceitos como autoaceitação (amar-se acima de qualquer coisa, inclusive os seus demônios interiores), autoperdão (suas ações são culpa de maus pensamentos inculcados pela sociedade opressora, ou de um desequilíbrio químico dos neurotransmissores), Eu-verdadeiro (herança rousseauniana: no âmago, você é bom; são seus demônios interiores — com vida própria — que te atrapalham). São as condutas que dão nome ao livro.

Existe uma diferença entre infelicidade e depressão. Infelicidade está associada a uma capacidade de compreensão; isto é, pressupõe um exercício honesto de identificar e assumir certas responsabilidades sobre decisões erradas, condutas equivocadas, relacionamentos ruins, que trouxeram algum tipo de sofrimento. Dessa forma, infelicidade é um estado de espírito. Depressão, por outro lado, é um quadro clínico, geralmente associado a alguma disfunção neurológica, e o indivíduo não tem controle sobre si ou sobre seus pensamentos. Quando transposto esse quadro àqueles com transtornos psicológicos, há uma confusão entre infelicidade e depressão. “Eles nunca serão responsabilizados pelo seu estado ou situação; são vítimas de algo exterior a elas (nesta circunstância as disfunções do cérebro são consideradas exteriores, e não o eu verdadeiro dessas pessoas)” (p. 42).

Isso explica o fetiche pelos antidepressivos. A promessa de felicidade fácil e rápida, mesmo que os efeitos dos comprimidos não sejam tão eficazes conforme informações divulgadas na mídia. Trata-se, portanto, de uma evasiva admirável.

“Excetuando instâncias específicas, a psicologia não contribui em nada para o autoconhecimento humano, e fez até o oposto; pois ao se meter entre o ser humano e o que Samuel Johnson chamou de ‘movimentos de sua própria mete’, ela atua como um obstáculo ao genuíno (ainda que muitas vezes doloroso) exame de si mesmo” (p. 94).

Em resumo, o autoconhecimento não é sinônimo, nem garantia, de felicidade, pois requer um olhar honesto para si mesmo; requer o reconhecimento das próprias limitações, assim como assumir a responsabilidade sobre os próprios infortúnios e o enfrentamento de suas causas e consequências. O Eu-verdadeiro não é tão bonito quanto se pinta; a autoaceitação, o autoperdão, sem uma responsabilidade moral, legitima um egoísmo narcisista.

A publicação de Evasivas admiráveis, pela editora É Realizações, é um gesto de considerável importância, pois apresenta numa linguagem acessível e elegante, um olhar crítico sobre determinado comportamento marcado por uma “insatisfação, um descontentamento com a vida” (p. 17), em que e a felicidade é concebida como um direito inalienável.

Em síntese, a busca pela felicidade não é uma busca sincera se associada exclusivamente ao autoconhecimento.

Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple. Editora É Realizações, 2017

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Postado por Ricardo Gessner
2/9/2018 às 12h00

 
UM OLHAR SOBRE A FILOSOFIA (PARTE FINAL)

Como estas páginas já se alongam, força é convir ser necessário um corte epistemológico, para chegar-se até o Existencialismo, embora ao elevado custo de omitir referências a grandíssimos mestres da Filosofia, o que de fato é lamentável. Ser o copidesque de si mesmo é um castigo inimaginável, uma espécie de Caixa de Pandora cuja abertura me foi imposta.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), filósofo dinamarquês, é o fundador do Existencialismo, apesar de nem cogitar de atribuir uma denominação ao corpus em que embasou seus conceitos do que depois viria a ser chamado de Existencialismo Cristão. Foi ele o primeiro filósofo a aprofundar-se no tema da existência e da vida, que para ele constitui um enigma, uma contradição, algo que vai além de nossa finitude para alcançar a eternidade. 

Ao contrário de muitos existencialistas que surgiram mais de um século depois, Kierkegaard nunca foi arauto de si mesmo. Era um eremita urbano: separou-se da família, desfez o noivado para dedicar-se exclusivamente à construção de sua obra. Escrevia com diversos pseudônimos, construindo uma espécie de labirinto quase inextricável, onde se abrigava. Quem deu o nome de Existencialismo à sua corrente filosófica foi o filósofo francês Gabriel Marcel, logo depois da 2ª Grande Guerra, quando uma onda de reumanização arejou o planeta.

Kierkegaard professava o cristianismo, consistente no Evangelho. Daí ser considerado o fundador do Existencialismo Cristão, por crer no Cristianismo e não no Velho Testamento anterior a Cristo. Suas dissidências com os bispos e sacerdotes da igreja luterana se agravavam então a cada dia.

O Sócrates dinamarquês, como também o chamavam, é o pensador maior do século XIX. Para ele, existir é uma aventura perigosa, que envolve a opção de lançar-se à vida, construindo-se como se desejaria ser. Ele traça com clareza o perfil da individualidade a partir da dialética vida-morte, que no seu desdobramento nos disponibiliza os dons da existência e da liberdade em potência, que só se transformam em essência, quando o ser humano decide viver em plenitude, durante sua transitória estada no teatro planetário. Ou seja: “a existência precede a essência”, que veio a ser a pedra fundamental do Existencialismo. 

Kierkegaard também analisa, sob o prisma estritamente filosófico, a possibilidade de vivermos sem Deus, ou outro Ser Supremo, abordada por ele e, muito depois, reafirmada por Sartre na esteira do pensamento daquele.

Na visão do filósofo dinamarquês, o homem constrói-se a si próprio na medida em que é produto das suas escolhas ao longo da vida. Sempre estamos às voltas com as circunstâncias que nos envolvem a exigir de nós optarmos que decisão tomar, arcando, necessariamente, com as consequências boas ou más que dela advierem.

Há quem afirme que seria implausível uma filosofia no estádio evolucionário de hoje sem as concepções kierkegaardianas, entre os quais Ludwic Wittgenstein, um dos mais influentes pensadores do século passado.

O boom existencialista só ocorreu — mais de cem anos depois da morte de Kierkegaard — em meados de 1950, com Sartre, Heidegger, Camus e Simone de Beauvoir, entre outros. Todos se declaravam ateus, e rejeitavam ser tachados de existencialistas: diziam-se humanistas. Todavia, reafirmaram o princípio já visualizado mais de cem anos antes pelo Sócrates dinamarquês — quando acentuou que o ser humano é que define, por meio de suas opções, o rumo de sua vida.

Sartre diz, em última análise, o mesmo que Kierkegaard sobre tal aforisma, ou seja, ao nascer o ser humano apenas existe e só principia a viver quando adquire a consciência de si mesmo, de estar no mundo, que o filósofo francês define como o ‘para-si’ (pour-soi), em O ser e o nada. Antes, quando existe, o ser humano é um “nada”, que só começa a “ser” quando inicia as escolhas que irão talhar o seu caminho. E pode fazê-lo com total liberdade por depender só dele.

Jean-Paul Sartre foi o mais conhecido dos existencialistas daquele tempo, sendo tanto festejado quanto hostilizado. Sua obra maior já mencionada é um resumo do seu pensamento autointitulado humanista.

Já Heidegger cunhou uma linguagem própria para o que chamava de analítica existencial, enfeixada no livro Ser e tempo, incidindo no mesmo artifício de não se dizer existencialista e sim humanista. Heidegger não conseguiu deslindar seus próprios conceitos, que deixou no ar...

De Heidegger restaram os conceitos aflorados em seu Ser e tempo, como o ser-aí (dasein), o ser singular que possui existência e vida próprias, sendo o mundo o seu lugar.

Ao fim e ao cabo, o que dele restou não constitui um corpus filosófico, e sim uma série de questionamentos e indagações que deixou sem resposta, perdido na selva oscura de seu próprio linguajar. Isso sem falar nos polêmicos Cadernos negros em que o pensador alemão misturou Filosofia com política, gerando um verdadeiro nó górdio que não conseguiu desfazer.

Por mais um desses paradoxos de que a vida é pródiga, a obra de Martin Heidegger talvez ainda seduza alguns estudiosos em razão do que ficou sem ser decifrado, como uma espécie, algo atípica, de obra em aberto.

Albert Camus e Simone de Beauvoir completam o grupo existencialista do segundo quartel do século XX, ambos eram romancistas. Romancear é filosofar, disse o autor de O mito de Sísifo, prêmio Nobel de literatura.

Simone de Beauvoir teve uma relação conturbada com Sartre. Em A cerimônia do adeus, Beauvoir descreve as reflexões filosóficas de Sartre acerca do processo de envelhecimento.

É de se sublinhar a insistência com que os autointitulados humanistas daquela época negavam a existência de Deus, cuja presença imperceptível pelas vias sensoriais parecia perturbá-los. Este, a meu ver, o ponto nodal do existencialismo ateu, que não cuidou do tema com o devido aprofundamento, talvez por uma questão de coerência com sua ótica materialista, jamais se descolando dessa fixação.

A existência de Deus ou a sua inexistência tem dado margem a infindáveis indagações e especulações desde os pré-socráticos, há cerca de dois milênios e meio. E até hoje persiste sem resposta. Parece até que somos iguais àqueles reclusos da alegórica Caverna de Platão...

Para mim, particularmente, trata-se de um problema que desborda do espectro investigativo da Filosofia, embora me considere cristão. Mas isto é uma opção de foro íntimo. Ontologicamente, a Filosofia trata do ser enquanto ser, que desaparece ao morrer, deixando de ser. O que virá depois é algo que constitui objeto da teologia, da fé, das crenças diversas, das religiões, sejam monistas, dualistas e também da descrença, do ateísmo, do agnosticismo etc. etc. etc.

 Na verdade, a mim me parece, eu que não vou além de um mero aprendiz, que essa controversa e intrincada questão transcende a racionalidade que nos é própria, balizada pela finitude, ou seja, enquanto pudermos exercer o livre-arbítrio, seremos os únicos responsáveis por nossas ações e omissões, durante o tempo e o espaço de nossa breve permanência entre os viventes.

Depois vem o salto no escuro.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Impressões Digitais
1/9/2018 às 10h35

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