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Quinta-feira, 13/8/2015
Flávio Sanso
Flávio Sanso
 
Quase ninguém vê

Há na paisagem urbana muitas ocorrências que rendem registros. São detalhes propícios ao entreouvido. Pretendo iniciar neste espaço uma série em que exponho microcontos baseados nisso que acontece por aí e quase ninguém vê.

A quarta luz

São quatro as luzes do semáforo:
- vermelha
- amarela
- verde
-lua cheia


Homem diminuído

"Homem-Formiga de certa forma é autêntico por abranger o conflito psicológico do homem diminuído."
Foi aí que Kafka se revirou no túmulo.


A inovação dos métodos

"Por Deus, um dinheiro para o almoço."
"Poxa, amigo, saí de casa sem dinheiro."
"Aceito débito ou crédito."


O mundo pesa

Não se admira ter caído de cara no chão.
Carrega o peso do mundo inteiro nas costas.


Só no frio

A garota passa aninhada no próprio abraço.
Reconcilia-se consigo mesma só no frio.


Microcontos extraídos do site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
13/8/2015 às 10h46

 
Das impaciências e incompusturas

Era pra ser ocasião de sorrisos fartos. Fim de semana, há quem tenha contado os dias para então estar ali. Mas no meio da fila uma senhora de maquiagem pesada exibe semblante emburrado de quem está prestes a explodir. É o que acontece. Com braços abertos e cuspindo indignação, ela se aproxima da bilheteria e dispara:

"Como é que é? A fila anda ou não anda?"

Do lado de dentro da bilheteria, a funcionária se aflige, se descabela, age com afobação, faz de tudo para atender às expectativas de quem a enxerga como equipamento autômato. Para ela, não é dia de distração.

Já na sala de cinema, a senhora de maquiagem pesada quebra o silêncio quando ainda faltam três minutos para o início do filme.

"Mas será o Benedito que esse filme nunca começa?"


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
3/8/2015 às 10h42

 
O mestre da inflação

O banquinho é minúsculo, servindo sob medida para suportar quem está sentado nele. Não passa muito do metro e meio, fumante, boné surrado, camisa polo, calças folgadas, lá está o velho ao lado do calibrador. Não é imagem dada a ser vista por tanta gente, só pelos que vão ao posto de gasolina aos domingos pela manhã. É só um carro se aproximar, e o velho do calibrador se levanta do banquinho, agita-se, exala entusiasmo por ainda ter alguma utilidade. Outros detalhes se revelam a quem se aproxima dele. Nos braços, na cara, não há espaço sem ocupação das rugas. Entre a boca e o nariz, espalha-se a ferida que nunca cicatriza. A fala embolada traz suspeitas sobre a ausência de muitos dentes. De mangueira em punho, o velho do calibrador gosta de deixar as coisas às claras:

"Não sou funcionário do posto. O que faço é só um bico pra conseguir comprar o arroz."

O velho do calibrador é generoso em dividir os meandros da sua especialidade. Ensina a medida exata de calibragem para cada tipo de carro, adverte sobre a importância de manter o estepe calibrado, manuseia com cuidado o pino das rodas, afinal, conforme faz questão de explicar, sem os pinos a sujeira entra e entope a passagem do ar. Mas há motoristas que dispensam o serviço, preferindo calibrar os pneus por conta própria. Nessas ocasiões, o velho do calibrador cruza os braços e se afasta constrangido. É o tipo de tristeza que provoca desabafo:

"Não sabem que eu não sou funcionário do posto, não sabem que não tenho carteira de trabalho e preciso de uma ajudinha."

É isso: tirar-lhe a mangueira de calibragem é matá-lo um pouco. Não é exagero, o velho do calibrador ao inflar os pneus acaba por inflar também a própria vida.

Nada como um carro após o outro. O velho do calibrador se surpreende com a nota de cinco reais que lhe chega às mãos em dobras, discreta. O sorriso espontâneo deixa ver a falta dos dentes. O velho do calibrador comemora:

"Hoje posso comprar também o feijão."



Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
30/6/2015 às 10h57

 
Entre cores vermelhas, amarelas e cor de abóbora

Ao lado de i pads, i pods e smartphones, outro símbolo da sociedade contemporânea são as praças de alimentação.

As praças já foram do condor e do povo. Hoje recebem a estranha alcunha de praças de alimentação. O cenário parece ser sempre o mesmo: cadeiras e mesas padronizadas muito perto uma das outras formam uma ilha envolta por restaurantes e lanchonetes do estilo fast food de onde saem bandejas de comida preparada a toque de caixa. Há por toda parte letreiros coloridos, prevalecendo os tons em vermelho, amarelo e cor de abóbora. Aliás, ouso dizer - só por palpite - que há por trás da combinação dessas três cores algum estudo conclusivo sobre a maior capacidade de atrair a atenção do consumidor faminto.

Por ali se propaga uma forma sonora muito particular. A mistura de vozes provoca um burburinho poderoso e incessante que não admite sotaques. Nos shoppings cariocas, paulistas, maranhenses, o burburinho é sempre o mesmo, talvez com alguma variação de volume em decorrência da acústica local.

O menino se opõe à aproximação do garfo que sua mãe pacientemente ostenta no ar. Faz pirraça, chora, balança a cabeça, mas depois de algum tempo recolhe do prato uma batata frita, colocando-a na boca sorrateiramente. Uma família abandona a mesa. A zelosa funcionária retira os entulhos alimentícios com velocidade de mecânico de fórmula um. Tão logo pronta, e a mesa passa a ser ocupada por outra família, que não consegue achar espaço para acomodar as compras. As pessoas desacompanhadas comem depressa, mantêm as cabeças baixas, querem terminar a refeição o quanto antes.

Quem se dispuser a observar o que acontece em volta talvez seja o único a fazê-lo, e por isso passará despercebido como se estivesse invisível. O exercício da contemplação combina melhor com outra praça, a praça do condor, a praça do povo.


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
21/6/2015 às 23h49

 
O pangaré branco

Ao longo do caminho há um terreno baldio. O chão é revestido de mato rasteiro, circunstância em que não é de se espantar a visão, através da tela vazada, de um pangaré branco. Mas ele está indisposto. É velho. Senta-se com enfado e talvez tenha percebido que alguém o observa. Seu rosto pontudo vagueia antes de tombar no chão. Morreu? Imediatamente examino a barriga volumosa. Ela vai e vem; sobe e desce com pressa. Sinto um alívio inocente antes de seguir para o trabalho.

É outro dia e eu já nem me lembro do pangaré branco, pelo menos até olhar novamente para o terreno baldio. Lá está ele. As patas se equilibram no solo desnivelado, o rabo balança espanando o chão, as ferraduras cavoucam o barro, os beiços proeminentes flertam com o capim. Que a ressurreição dure o quanto puder.


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
28/5/2015 às 15h56

 
O homem é bicho de não ser só

Havia no sertão um lugar desabitado. Tão ermo, enfadonho e desolado, que por lá ainda se esperava a chegada de Cabral. Fazia silêncio absoluto, a ponto de primeiro amedrontar e depois enlouquecer até quem tenha predileção pelo sossego. Pois assim parecia que o tempo não passava, ou nem sequer existia. E só se notava que ele existia e passava, por causa da escuridão da noite que rendia o claro do dia. E vice-versa. Na falta de alguém que mandasse, quem reinava mesmo era o sol, que no alto da sua autoridade esturricava tudo, fazia o chão arder e não é qualquer nuvem que ele deixava passear sobre a paisagem. Não tinha culpa. Afinal, se nasceu quente, dourado e explosivo, não se queira que ele pudesse refrescar.

Mas o homem é bicho teimoso.

Seja em solo árido ou pedregoso, sempre há de aparecer pessoa com ânimo de fazer morada, que nem mato, capim e maria-sem-vergonha, que se dão a brotar em qualquer canto. E do nada surgiu uma dupla, que parecia há muito tempo errante. Por falta de olhos que os cercassem, ninguém os viu chegar, a não ser que os calangos possam ter a qualidade de testemunha. Na falta de melhor nomenclatura, convém que Alto e Baixo lhe caibam como alcunha.

Arquitetaram choupana sem teto, de modo a enxergar o céu escuro antes de dormir. Tentavam plantar de tudo, mas só comiam o pouco que a terra se dispusesse a produzir. E não era raro que faltasse alimento. Quando era assim, não sobrava história que calango pudesse contar. Tudo era questão de se adaptar, e da adaptação chegou-se à rotina, que evoluiu para a afeição ao lugar. Se trabalho é ocupação, o Alto e o Baixo trabalhavam até o cansaço dar aviso de chegada, e era menos pela sobrevivência que precisavam manter, e mais para afastar o tédio. Alto e Baixo levavam uma vida de viver só por viver, o que para eles não deixava de ser o melhor sentido que a vida deveria ter.

Diferente das nuvens, o vento, sempre ligeiro e expansivo, circulava livremente sem que fosse incomodado, e isso em decorrência da artimanha de se aproveitar da sua falta de aparência. E num dia em que estava especialmente disposto, levou para lá um objeto diferente que planava suavemente, dançando ao sabor de redemoinhos. O Baixo estranhou a visita, e, com um pulo certeiro, apanhou a coisa suspensa. Quando se deu conta do que se tratava, pôs-se a esbugalhar os olhos, com sintoma de hipnose aguda. Segurava um retrato do mar.

O Baixo passou a carregar o retrato para onde quer que fosse. Bem aos poucos foi nascendo reflexão persistente. Uma ideia tomou de assalto seu pensamento. Era tal como coceira. Ia e vinha sem parar e cada vez que voltava aparecia com mais sustância. Passou a andar arqueado com o peso da perturbação. E num dia, muito de repente, postou-se em paralisia, inerte como tronco enraizado. Sacou o retrato, posicionou-o à sua vista e, sem aviso do que ia fazer, deu um grito de criar eco, ecos e mais ecos, esvaziando todo o ar que tinha guardado nos pulmões. "Eu não fico mais aqui." "É na direção do mar que eu quero ir". Partiu com urgência, sem fazer aceno de despedida.

O Alto não demonstrou reação de se ter abalado. Resignou-se com a imposição do destino, exibindo indiferença que quase esbarrava na altivez. Logo pensou que, se antes eram dois e agora era um, mais comida haveria de sobrar. Deu de ombros e se voltou ao que lhe era rotineiro.

Mas o homem é bicho de não ser só.

Depois que o tempo se arrastou, dando mostras de que a coisa mudou, o Alto se aborreceu de só ter sua consciência para prosear. Pior é que já não havia quem escutasse sua reclamação do calor. Não tinha paz para dormir, tamanha era a aflição de abandonar o corpo desacordado em redor deserto. Nem mais se deleitava com seu prazer de matar sede com água de moringa. Perdia a fome. Sim, tinha desinteresse de comer sua parte da comida e a outra parte que também lhe cabia porque sobrava. Tornou-se dono de tristeza esquisita, e sabia bem a razão. Com o sacrifício dos joelhos, tombou no chão de terra batida e começou a espirrar lágrimas em profusão. Chorou feito criança pirracenta, porque a solidão é coisa que não se aguenta sem chorar.

Enquanto isso, lá pelas bandas do litoral, o Baixo era pessoa transformada e já flertava com o deslumbramento. Conhecia gente, sorvia do coco as delícias da água adocicada, saboreava carne de peixe e salgava-se em banhos demorados.

Mas o homem é bicho inquieto.

Caminhando pela praia, o Baixo desequilibrou-se, tropeçou e caiu de um jeito que foi natural a risada se espalhar. Com o rubor da humilhação, levantou depressa, e olhando para a areia bradou com irritação: "mas que malícia é essa de afundar meus pés? Lá de onde eu vim, tinha a confiança de pisar firme no chão, sem o cuidado de evitar o infortúnio de cair." E depois disso, o Baixo começou a exercitar a comparação. De um lado a areia mole e de cor aguada, do outro a terra dura e de cor marrom-forte, quase avermelhada. Daí se vê que o Baixo ia pelo caminho de cultivar recordação do seu ponto de origem, e é sabido que amontoar lembrança é querer chamar a saudade, que quando chega sabe muito bem marcar presença. É o que dizem por aí: o mar causa enjoo, e o Baixo enjoou do mar.

O sol já se punha, porque até quem tem poder de mando merece descansar. No horizonte pintado de cor-de-abóbora, o Alto avistou a figura do Baixo se aproximar. Os dois correram um contra o outro e se abraçaram com aperto forte, e foi tão forte que rolaram no chão, levantando nuvem de poeira. Aquilo foi de dar nó em garganta de calango curioso. Tudo voltou ao tempo de antigamente.

Mas o homem é bicho rancoroso.

Dizer que tudo voltou ao tempo de antigamente é querer dar conclusão rasa a questão profunda. O Alto tinha no seu íntimo algo desarrumado, reclamando ajuste premente. Memórias sobre a desgraceira do desamparo eram como filme de reprodução repetida. Uma voz interior atiçava com injúria irritante: "tonto, frouxo e paspalhão". Essa mesma voz, teimosa que era, passou a cobrar postura de revide. Por aí é que a inteligência do Alto forjou julgamento fundado no preceito de que cada qual tenha que dar paga pelo mal que causou. A sentença estava pronta e acabada. O Alto partiu sem rumo e sem previsão de parada. Deixou para trás o Baixo, que estava condenado a experimentar a mesma dor da solidão que um dia provocou.

O Alto seguiu caminho com passo acelerado, chutando pedra atrevida que parasse à sua frente. E desse modo percorreu trilha alongada, até quando uma segunda voz anunciou advertência: "se o Baixo inaugurava solidão, por causa de condenação, o Alto já ia para a sua segunda vez, e por causa de orgulho ou ausência de perdão." Então, começou a andar em marcha diminuída. De resoluto passou a vacilante. Agora já quase nem andava. Braços jogados para trás em entrelace nas costas e olhar fixo nos rasgos do terreno. Por ali se viu em grande dilema que precisava solucionar. Parou, fazendo menção de se virar.

Porque o homem sempre será bicho de não ser só.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
11/5/2015 às 12h26

 
A seca e o raso

Então agora temos seca. Agora? Mas e o que sempre tivemos no Nordeste não é seca? Mas lá a coisa é diferente. É? É. O cactus, o sertão alaranjado, os ossos de boi esturricados sob o sol, tudo isso é paisagem regional. Sim, é coisa da paisagem, é o Saara brasileiro. Ah, bom. Mas se agora temos seca no Sudeste, é hora de entender o que há. Sim, o caso de paisagem regional aqui não cola. Não cola mesmo. Bem, então agora vão se mexer e entender o que há. Não sei, temos quinhentos anos e estamos sempre perdidos com essa coisa de entender o que há. Falaram disso no debate eleitoral, será que agora vai? Não sei, tudo é sempre pior do que se diz no debate eleitoral. Soube que o desmatamento na Amazônia pode estar por trás da seca no Sudeste. Isso mesmo, também soube. Repare a comparação: cento e oitenta milhões de campos de futebol devastados. Nossa, nessa área desmatada caberiam um bilhão, novecentos e oitenta milhões de jogadores. Será que sobra espaço pra torcida? Já, já. Que interessante essa coisa de rios aéreos. Sim, eles vêm lá da Floresta Amazônica e se deixam despejar em forma de chuva em cima do Sudeste. É um presentão. Verdade, mas a mamata vai acabar. Estranho, ninguém disse isso no debate eleitoral. Ah, mas o debate eleitoral é tão raso quanto a represa de Guarapiranga. Que clichê. Que clichê, é verdade. Acho que o Saara brasileiro vai crescer. Vai sim, vai virar paisagem nacional. Nunca mais teremos quinhentos anos para entender o que há. Não, nunca mais.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
4/5/2015 às 10h29

 
Dom Casmurro chileno

Quem não conhece o quadro A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, e se propuser a procurá-lo no Google, provavelmente haverá de sentir um sobressalto. A partir dele se desenvolve o livro de mesmo nome em que o médico chileno Patrício Illanes percebe-se atormentado pela desconfiança de que sua mulher o tivesse traído com seu recém-falecido amigo, o boêmio e mulherengo Felipe Díaz.

Qualquer semelhança com o enredo de Dom Casmurro não é mera coincidência. O autor Jorge Edwards já se dedicou a um estudo sobre Machado de Assis e confessadamente diz ter se inspirado na obra do escritor brasileiro para compor a aflitiva dúvida de seu personagem. Aliás, aqui está mais um exemplo a confirmar a importância de Machado de Assis para além das nossas fronteiras.

A trama é ágil, menos por falta de sofisticação narrativa e mais por habilidade técnica do escritor. Nesse aspecto, Mario Vargas Llosa, que assina o posfácio do livro, chama a atenção para a engenhosidade com que foi narrada a morte do personagem Felipe Díaz.

Diferente de Dom Casmurro, o livro de Jorge Edwards não pretende embrenhar-se pelos labirintos das versões enigmáticas. Ao final, ao menos para nós leitores, a questão se resolve sem espaço para dúvidas. E o modo como se revela a verdade é também um grande atrativo do romance. O leitor saberá por quê.





Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
29/4/2015 às 13h42

 
A poética da mendicância

Normalmente o cenário em que se amontoam alguns mendigos de uma cidade é visto como paisagem triste porém merecedora de, no mínimo, dois segundos da atenção que logo se evapora. Assim é que a miséria exposta nos cantos das praças e ruas é ignorada ou, em outra perspectiva, tida como parte componente da sorte que a cada um cabe.

Na obra "O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam", de Evandro Affonso Ferreira, a um mendigo é concedida voz e a partir disso o mundo desses miseráveis destaca-se e recebe uma rajada de luz que os retira, pelo menos durante o período de cento e vinte e sete páginas, de sua insignificância. Diferente do que possa parecer, há sentimento e história em cada ser maltrapilho que se arrasta por entre as pessoas que não o enxergam ou que o desprezam ou que o temem.

Eis uma obra de arte em que o mendigo-narrador, abusando de raciocínios líricos, dramáticos e encantadores, demonstra que mesmo aos menos afortunados é permitido o direito de amar com sofisticação




Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
27/4/2015 às 10h20

 
A descrição piegas de um modo especial de andar

O ponto de ônibus é movimentado, o que não quer dizer que não seja monótono. Todos os ônibus são amarelos. Ao parar, todos produzem o mesmo som estridente. E todos se sucedem após a mesma arrancada impetuosa. No alto, o sinal alterna suas cores de sempre. Ali nunca haverá azul, ou cor-de-abóbora, ou roxo.

Mas alto lá. É preciso estar atento às brechas da rotina. Pela calçada se aproxima um casal de jovens. Bem jovens. Quase ainda crianças. Não os notaria com interesse se estivessem de mãos dadas. Caminham de um jeito singular. Ele a envolve em um abraço por trás. Estão grudados. Friccionam-se. Mas não há nisso qualquer traço de erotismo. Muito pelo contrário: exalam inocência. As pernas se movimentam em sincronia, provocando o efeito de parecerem sustentar um só corpo. As dele seguem as dela como se puxadas por um barbante imaginário. Há quem possa menosprezar a perícia do casal, mas aos implicantes recomendo que tentem fazer igual. Rapidamente perceberão que caminhar dessa forma, mais do que compatibilidade anatômica, requer a sintonia fina atinente aos mais afortunados casais... Meu olhar os acompanha até que eles desapareçam na longitude da noite fria.

Embarco em um dos ônibus amarelos. Junto à janela percebo que alcancei o casal. É a última oportunidade de observar a cena, mesmo que por míseros segundos. Ele é alto. Em relação a ela, é muito alto. Os olhos dela, moldurados por óculos de aros vermelhos, projetam-se para cima. Não procuram as estrelas, nem a lua brilhante. Sorrindo, só o que querem é encontrar os olhos dele.


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
24/4/2015 às 08h32

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