No domingo, 26, completaram-se dois anos do lançamento no YouTube do meu primeiro curta-metragem. Ou seja, a rigor, são dois anos de minha atividade como cineasta. É evidente que, numa arte como o Cinema, a confecção da obra antecede (às vezes de muito) a sua comunicação ao público, mas também não há dúvidas de que um filme, ou qualquer obra de arte, só se realiza de fato quando encontra espectadores dispostos a apreciá-lo.
Exibição do filme Tia Zefa no Dia da Consciência Negra 2014 em Paraíso (TO) - 22.7.15
(Foto: Cláudio Macagi)
Meu primeiro filme lançado, Tia Zefa no Dia da Consciência Negra 2014, fora filmado pouco mais de três meses antes do lançamento - mais exatamente em 20 de novembro de 2014, no Centro de Cultura Negra do Amapá, em Macapá. Este curta inaugurou a série "As Tias do Marabaixo", que abrangeu mais quatro filmes (Tia Chiquinha,Tia Biló,Natalinae Tia Zezé no Encontro dos Tambores). Ainda em 2015, rodei o sexta curta, Você é África, Você é Linda, em Jequié (BA). O sétimo filme, um nanometragem (filme cuja duração é menor que 1 minuto), foi disponibilizado há apenas nove dias: Vê se Vê, produzido em Porto Velho em 2014 e o único lançado no Vimeo.
Sete filmes em dois anos me parece um saldo extremamente positivo, ainda mais se considerar que todos são totalmente independentes, sem financiamento público ou privado para sua realização (como costumo brincar, são "100% Meu Bolso Produções"). De toda essa safra, os mais vistos são os da série "As Tias do Marabaixo", que além de inúmeras exibições em Macapá entre 2015 e 2016, foram apresentados também ao público de Paraíso (TO), Salvador e Porto Velho. Houve ainda exibições para os participantes da minha Oficina de Cinema Independente, que teve duas edições até o momento - Jequié, 2015 e Belém, 2016. Em breve, deverão acontecer novas apresentações, já que o projeto foi selecionado em editais para exibição este ano em Belém e Porto Alegre. O curta Tia Biló abriu a Mostra Cine Redemoinho em Angra dos Reis (RJ) em novembro passado.
A própria Oficina de Cinema, bem como o lançamento de seu texto-base (Cinema Independente) como e-book, é um desdobramento natural do meu trabalho como cineasta. Não basta produzir e exibir, é preciso deixar um legado - o que aprendi com o produtor cultural André Donzelli, o Porkão, grande agitador cultural de Palmas.
Mas, ok, efetivamente são dois anos do primeiro lançamento. O que eu nunca contei antes foi que minha ideia de fazer cinema não começou quando decidi iniciar o projeto "As Tias do Marabaixo", em abril de 2014. O primeiro projeto de filme que escrevi foi em 2005, num edital do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica Clarival do Prado Valadares. O edital contemplaria o financiamento de uma pesquisa, com pelo menos um desdobramento obrigatório (a publicação em livro), porém o proponente ficava livre para sugerir outros produtos derivados. Propus então contar a história do Barra 69, como ficou conhecido o show da despedida de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em julho de 1969, quando a ditadura militar os obrigou a deixar o Brasil. Caetano e Gil foram acompanhados no show realizado no Teatro Castro Alves (Salvador) pela banda Lief''s, integrada por, entre outros, os irmãos Pepeu e Jorginho Gomes; consta que ao final do show Pepeu foi oficialmente convidado por Moraes Moreira e Galvão para fazer parte dos Novos Baianos. O projeto se chamaria "Aquele Abraço (Barra 69)" - Gil gravou o samba "Aquele Abraço" na véspera de partir para o exílio, e lançou a música no show.
Até onde eu saiba, nunca houve um livro no Brasil dedicado a falar de um único show (e, como meu projeto não foi aprovado, continua não havendo - risos). Pois bem: além do livro, resolvi incluir no projeto a realização de um longa-metragem de animação contando a história do show! Um projeto relativamente caro, que de fato só poderia ter sido feito caso eu houvesse vencido aquele edital. Lembro que cheguei a comentar o projeto com o próprio Gil, então ministro da Cultura, na reunião que tivemos no Teatro Apolo, no Recife, em fevereiro de 2007. Também falei dele a Moraes Moreira, quando o entrevistei por ocasião de sua apresentação na Feira do Livro de Porto Alegre de 2008 (inclusive Moraes me disse que ele e Galvão já sacavam o Pepeu antes desse show). Enfim, hoje sei que o projeto não só seria muito caro como envolveria um mar de autorizações de pessoas vivas e de herdeiros de pessoas já falecidas, sem falar nos direitos autorais da trilha sonora (minha ideia era usar como base o LP Barra 69, com o áudio de parte do show).
Agora, a considerar o depoimento de minha mãe, minha vontade de fazer cinema vinha de muuuuito antes de 2005. Lembro que, quando lhe contei do projeto Barra 69, ela recordou uma fala minha ainda muito pequeno, da qual realmente eu não me lembrava, dizendo algo no estilo "Mãe, quando crescer eu quero fazer cinema!". E ela acrescentou que me ouviu e não respondeu, mas ficou pensando: Mas cinema é uma coisa tão cara, como é que a gente vai fazer?
A primeira vez que voei ocorreu na semana seguinte ao atentado às torres gêmeas.
Antes eu não tinha medo de quase nada, só de fantasmas, lobisomem e ratos.
É bem provável que essa lista seja mais extensa, mas voltemos ao avião: o primeiro desconforto foi perceber que aeroporto é um lugar fácil de se perder.
Em meio a setas, monitores e gente estranha, me senti um vencedor quando encontrei o portão de embarque.
Eu estava um pouco ansioso, mas o meu queixo danou a bater quando uma voz feminina anunciou o embarque do vôo 6666 com destino a Campo Grande.
As escadas de alumínio refletiram alguns rostos e senti uma vontade enorme de fugir, recuar, mas nem tive muito tempo de pensar, já arrastado pelos passageiros que vinham atrás.
Meu lugar era na poltrona do meio e me lembro com detalhes o senhor enorme ocupando a janela e uma senhora muito magra que ficou na poltrona do corredor.
Exprimido entre eles, tentei mentalizar a quinta de Beethoven , embora o momento pedisse um rock pauleira.
A voz do piloto ecoou pela nave e bateu de vez o desespero.
Será que ficaria muito chato se eu pedisse para descer?
A comissária se postou ereta à nossa frente, fazendo gestos com os braços, aumentando minha aflição.
O suor quente escorreu por minha testa após o último aviso: em caso de queda no mar, as poltronas serviriam de canoa, ou algo assim: danou tudo, pensei, eu não sei nadar.
Tentei conversar com o sujeito da janela, mas ele estava entretido fazendo palavras cruzadas.
Olhei com olhar de filhote de cachorro para a dona magra no outro lado, mas ela estava em meio a uma oração.
A imagem das torres gêmeas era tudo o que eu conseguia pensar.
A voz do piloto me pareceu grave demais: “tripulação, preparar para decolagem”, e não disse mais nada, o bicho rugiu feio, os motores explodiram e eu percebi o quanto a vida não vale nada, bastava uma faísca errada e todos viraríamos carvão.
Joguei novamente as vistas para o lado da senhora magra e percebi, abismado, que ela simplesmente fechou os olhos e dormiu.
Como alguém consegue dormir estando próximo do fim de tudo?
Veio então o primeiro solavanco e meu olho esquerdo afundou.
Só o esquerdo, o direito permaneceu aberto mais que o normal, em constante vigília.
Novos solavancos se seguiram e tive ímpetos de gritar para que a dona magra do corredor acordasse ou o infeliz da janela parasse com as palavras cruzadas.
As luzes acenderam e a voz grave do comandante avisou que havíamos passado por uma zona de turbulência, garantindo tranqüilidade dali adiante; quanta maldade podia ter avisado antes, talvez eu não tivesse trocado o fígado de lugar com a garganta.
Quando enfim pousamos, abri no rosto o sorriso igual ao gato de Cheshire.
Meus pés tocaram o solo moreno da minha cidade e ainda que os ouvidos zunissem, senti um alívio tão grande que quis dançar a galopeira.
Nesse troço “num munto mais”, pensei, juntando restos de palavras misturadas ao suspiro de alívio.
Muitos vôos depois, já não sinto medo, apenas me entupo de calmantes e durmo a viagem inteira.