Sou do tipo que passa um bom tempo do dia pensando o passado.
São imagens gastas, já em preto e branco.
O ruim disso tudo é quando quero lembrar algum nome e a memória falha.
Ainda há pouco, uma reportagem na TV chamou a minha atenção: falava sobre tartarugas.
Bastou para despencar na minha cabeça a lembrança de quando peguei uma tartaruga para criar.
Era um bicho estranho, não queria nadar, desprezava a alface, gostava mesmo dos besouros.
De repente, outra reportagem, agora sobre chuvas, enchentes e buracos.
Por detrás do repórter, surgem alguns edifícios me arrancando suspiros: O mercado municipal, para mim, tem a mesma beleza misteriosa da torre Eiffel.
Como era mesmo o nome da tartaruga?
Sinto tristeza todas as vezes que me deparo com os restos do Colégio Osvaldo Cruz; o velho prédio agoniza silencioso, levando, nos seus tijolos carcomidos, minha infância e juventude.
Desligo a TV, mas a tartaruga permanece rondando meus pensamentos, misturada com o rosto de um sujeito estranho - um homem esquálido e taciturno - que me cumprimentou num cruzar de caminhos e dele não me recordo o nome, muito embora a certeza que o conheço, porque se esqueço nomes, sou bom de lembrar fisionomias.
O problema nem é tanto o nome, mas o lugar: onde foi que conheci aquele sujeito?
“Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar, na tranqüilidade dos que esqueceram a memória”, essa frase da Adalgisa Neri, tão forte e definitiva, serve de breve alento, entretanto, não espanta do meu pensamento o rosto do homem taciturno, muito menos a imagem da tartaruga.
De perto não sou normal, muitas vezes falo coisa sem coisa, nada coisa, coisa nenhuma, porque quando estou navegando em pensamentos, tudo o que quero é o silêncio das paredes do meu quarto.
Eu canto enquanto penso, assovio enquanto escrevo.
Canto agora uma música entrelaçada de assovios, e nada consegue afugentar as dúvidas caminhando em meus pensamentos.
Num repente, imaginei ter descoberto o nome do sujeito do olhar taciturno, mas logo recuo, ele não é o Antenor, sei disso por conta do riso na cara, sempre estampada na figura do Antenor, antigo conhecido dos tempos de aprendiz de joalheiro.
Por onde andará o Antenor?
Pronto, mais uma coisa para pensar...
Uma palavra me salta da boca: sinantia, cuja sonoridade me faz visualizar mentalmente os misteriosos encantos das flores.
Ao pensar nas flores, descubro que o nome da tartaruga era Rosa!
Não é normal uma criança criar tartarugas, mas não sou normal desde criança.
Rosa tinha um caminhar diferente e no casco umas pintinhas amarelas lembrando o sol.
Eu tentei ser pintor, mas o único desenho que consigo fazer é o sol.
Sou um pintor frustrado, mas nem quero pensar sobre isso.
Fiz de uma velha vasilha cheia d’água a residência oficial de Rosa, mas ela não queria nadar.
Entendo perfeitamente um bicho não comer verduras, mas uma tartaruga não gostar de nadar?
Aquele bicho não era normal.
Num estalo, lembrei do sujeito Taciturno; não o nome, nem o local, mas a função: é um poeta, dos bons e eu o invejo: não sei escrever poesia, até tentei, lá pelo meio da juventude, mas falei tanto sobre flores e passarinhos, nuns rabiscos ingênuos e descuidados, nem percebi o passarinho morrendo, espetado pelos espinhos das flores.
Ah, poesia, tortuoso caminho pelo qual tremem as minhas mãos.
E a tartaruga?
A passos de cágado descobri afinal a causa de todo o mal que sofri: Rosa não era tartaruga, era jabuti.
Termino nessa rima torta, tão igual aos passos daquele bicho estranho; calmo e vagaroso, como devem ser todos os pensamentos...
Já teve casas brancas, algum trocado e fracassos. Seu reino foi muito perto, naquela estrada amarela que leva ao Retiro do Homem Só – um lugarejo que segue a linha do trem de ferro, daquela empresa que manda em tudo na cidade.
Numa noite qualquer cheia de galáxias distantes, amarraram na sua porteira - sempre entreaberta - uns óculos estranhos, bem mais escuros que o breu dos seus cabelos. Ela sabe que ninguém pode fugir do que está tão perto, do que é sem nome. Com o mesmo desdém da manhã nascendo, colocou nos olhos e qual surpresa... Tudo ficou mais iluminado. Uma explosão crescente de estrelas anãs nos seus olhos. Foi ficando cega de tanta luz.
Era verdade diante dos olhos. Cega, completamente cega. Mas a luz saía pelas lentes e devido à cegueira, mal podia controlar seus raios, entrando e saindo pelo decote da camiseta de ordenhar seus pensamentos-gados-leiteiros... Sua primeira roupa do dia.
Assistindo esse mundo de luz, foi voltando pra casa e viu que a estrada era verde-azul. O amarelo envelhecido da poeira era mesmo uma ilusão. Conseguiu também ler numa árvore, gravada em baixo relevo “as perguntas são suas, não devolva a ninguém”.
Seus olhos imediatamente teceram teias de material fino e transparente, formando aquela bolha que só existe nos olhos dos gatos.
Agora estava dentro de seus próprios olhos num mundo de luz sem dor.
Antes de entrar em casa, tropeçou na sua armadura transparente. A segunda roupa do dia, de defesa contra abelhas dulcíssimas.
Abriu a porta de casa, tudo diminuiu de importância. Seus livros se transformaram em roteiros, suas janelas, manivela. Deitou na cama-grama, apertada em coisas da casa.
Alguém mais estava lá e também era luz, era sabor, trouxe um mapa mundi, um cigarro, um sorriso, chicletes, lista de compras, despedidas e chegadas.
Ligou à chave, era casa conduzida. Quando tudo vira cor no vento da viagem, nada sobra de antigamente. Ninguém pode fugir sem permanecer... Quando se tem lugar pra fugir – você nem sabe que estava em fuga – o que você conquista é um lugar redondo. Chamam de abraço. Ou vida.
Fim de ano aí na porta, e mais do que as festas, alguns tomam essa época pra refletir sobre o que tem feito. Os mais jovens talvez menos... Pra alguns deles, o natal ainda pode ser uma época mágica de sonho e fantasia com férias, passeios e luzes incomuns ao resto do ano.
Pra quase todos nós dos 30 em diante, até menos, sobra essa sensação de... Será? Pensando, uma vez ou outra, se fizemos realmente certo quando dissemos não pra aquilo e sim pra isso. Se soubemos lidar de fato com as dificuldades que apareceram e se as consequências obtidas, hoje poderiam ter sido evitadas ou ampliadas.
É tão difícil responder... Quem dera tivéssemos a capa do Dr. Estranho que nos puxasse pro caminho certo quando estivéssemos pra escolher o errado! kkk Claro, às vezes, não dá pra fazer só aquilo que desejamos e isso também é bom, pois há situações onde caminho certo surge dos imprevistos e das respostas inesperadas, o famoso acidente de percurso no encontro aos males que vem pra bem.
Mas e quando nos pegamos com aquelas memórias que quase mostram o quão teimoso e imaturo fomos ao recusar oportunidades que pareciam pequenas e difíceis demais na época, porém que teriam levado a um patamar tão longe do que você se encontra agora.
Um cara joga os mesmos números na loteria durante dias, meses, anos... Um dia, por esquecimento ou frustração ele deixa de jogar e nesse fatídico dia seus números são sorteados. Ele deve se matar por isso? Claro que não, é apenas um exemplo real de tantos outros que acontecem todos os dias e que as pessoas precisam superar e seguir em frente, pois não há como adivinhar o futuro.
Fazemos nossas escolhas baseados naquilo que temos no momento, às vezes pode parecer maravilhosa e ser uma porcaria, outras vezes ter aspecto horrível e depois dar certo. O fato é que ninguém sabe o dia de amanhã, só pareceu ser a melhor opção a ser tomada no momento.
O que não podemos deixar é que ótimas oportunidades, vistas tão claramente, vão embora por medo ou preguiça de ser algo mais. E se mesmo assim o "cavalo selado passar" e você não montá-lo, não adianta viver com a frustração. Não se deixe transformar em alguém amargo que remói o passado enquanto o presente passa em branco e também se transforma num passado ocioso.
Infelizmente, você só tem o presente pra contar como efetivo, então o melhor é engolir e esquecer, na pior das hipóteses, superar e conviver, pelo menos foi escolha sua e de mais ninguém. O que resta aos trintinhas, sessentinhas e agora centenários é fazer o melhor que possa ser feito hoje, indo em busca de um caminho que retorne pra rodovia principal ou o mais próximo dela.
Uma coluna da Folha de São Paulo noticiou que o livro do paraense Edyr Augusto, Pssica (2015), virará filme, produzido pela O2 Filmes, de Fernando Meirelles. A realização ocorrerá, em Belém, em 2018. É uma grande notícia que traz, finalmente, para a “literatura da Amazônia” (a expressão é de Benedito Nunes) e brasileira, uma nova possibilidade de se voltar para essa escrita contemporaneamente regional e estilisticamente cosmopolita.
Seus romances foram traduzidos para o inglês e francês. Casa de caba, de 2004, foi editado em inglês como Hornet’s nest, pela Aflame books e em francês, com o título de Nid de vipères, pela Asphalte, 2015. Também publicados por essa editora foram Os Éguas (1998) e Moscow (2001), em um único volume (Belém et Moscow, 2015) e, neste ano, Pssica.
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Seu primeiro romance, Os Éguas, já demonstrava claramente a que linha essa literatura seguiria. A representação da região e, principalmente, da capital Belém do Pará é completamente diferente de um regionalismo unicamente edificante, entoado pelos mais variados discursos. Belém, através de um investigador de polícia, surge em toda sua decadência moral e material. É corrupta, violenta, aterrorizadora.
Esse livro completará 20 anos no ano feliz que virá, mas ele, que já representava a cidade em permanente queda, talvez não pudesse imaginar que vaticinava apenas uma parte da decadência que viria.
Seus demais romances, e o livro de contos Um sol para cada um (2008), seguem a mesma trajetória. É sempre o caráter pulsional, pusilânime e putrefato a dominar o indivíduo comum, socialites, “homens de família”, políticos, ladrões de beira de rio, jovens afortunados, policiais, jornalistas e traficantes.
Não tenha, por isso, caro leitor, receio de ler; é violento, mas não é – abram alguns jornais e liguem em alguns canais de Tv – abjeto. Mas, desse mundo cão, o escritor não mostra apenas o cadáver, mas a realidade, que ele descreve em decomposição.
Pssica é um exemplo desse estilo. As tramas do livro não procuram ser explicadas por nenhuma tese sociologizante, nenhuma análise psicologizante, ou por um manual literário. Talvez, por isso, sua literatura foi há muito tempo ignorada pela análise acadêmica. Seu primeiro romance, de quase duas décadas, só ganhou uma apreciação da academia em 2011.
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Mas isso, talvez, não queira dizer muita coisa. O presente costuma ser ignorado, quando nele apenas olhamos com os atrofiados olhos do passado – do passado de uma cidade, de uma região.
É na cidade que, em Pssica, a trama começa, com o rapto de Janalice, Jana. Ela é um dos personagens que atravessam a urbe e os rios como se, permanentemente, o barqueiro da morte, os conduzissem. Tráfico, prostituição, bandidos masoquistas, políticos pulhas e pessoas tentando se salvar.
É a região e suas águas, e não mais apenas Belém, que se tornam o cenário predominante desse livro. Essa violência no interior da Amazônia, e especialmente do Pará, em nada, como se sabe, é apenas uma ficção.
Nessa obra de Augusto, as paisagens (Belém, Marajó, Caiena) não parecem iguais somente pela decadência material que as ergue, mas pela semelhança espiritual de desolação desespero e decrepitude que a tudo, casas, moradores e forasteiros, habita.
Nessa escrita não-linear, de frases curtas, com gírias e termos regionais (algumas das principais características de seus romances), o tom detetivesco lembra os romances policiais e o estilo noir, elevando sua literatura – não apenas por isso – a um outro nível, mas, também, porque esse estilo retira parte da imagem ornamentada que estrangeiros e habitantes têm sobre o lugar.
Esqueçam o que leram e ouviram falar sobre a barbárie do interior regional, sobre piratas, ratos d’água e sobre turistas “perdidos”. É Pssicaa melhor representação, a melhor mímesis, dessa realidade.
O que os meios institucionalizados não descrevem, talvez caiba à literatura realizar. Os verdadeiros perdidos são os que nessas terras habitam, desterrados. É sobre eles, nessa obra, que parece pespegado um mal augúrio inescapável. Nesse mundo, as belas fotos, para quem é fotografado, nem sempre representam o paraíso.
Que a literatura de Augusto seja lida e vista. Mas lembremos que, na Amazônia, nas linhas do escritor paraense, como em Pssica, não há filtros que alterem a realidade.
Texto publicado em O Liberal, 07 de dezembro 2017, p. 02. E em: Relivaldo Pinho