O Equilibrista

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Sexta-feira, 22/4/2016
O Equilibrista
Heberti Rodrigo
 
O Autorretrato


Torso/Ritmo, Anita Malfatti. Fonte:www.mac.usp.br


Do que se trata? (Autorretrato, 2010)

Trata-se de minha inocência minada, de minha inocência pisada, de minha inocência perdida. Trata-se de remontar às origens do mundo e de minha própria história. Trata-se de Caim e Abel, de um combate espiritual. Trata-se de não negar Deus, mas de tornar-se Deus; de não recusar a coroa ao rei, mas de se fazer rei. Trata-se de não rezar mais, de não mais pedir a benção, mas de dar a benção. Trata-se de criar, de se tornar “o divino que sorri e brinca”, de Fernando Pessoa. Trata-se de obstinadamente demonstrar a existência em si de algo que “vale a pena”. Trata-se de arriscar-se a perder a vida na aventura de gerar e viver outras vidas: a destes personagens que carrego no peito. Trata-se de esquecer, de recomeçar, de vir a ser criança novamente. Trata-se de tomar consciência de si mesmo. Trata-se de emocionar-me, de tornar-me humano. Trata-se de ceticismo e devoção. Trata-se de deixar de ser um impassível animal de rebanho. Trata-se de reconhecer-me no servo que caminhava cabisbaixo ao sol, sob o temor do chicote de seu senhor, e, ainda que ciente do risco de ser fustigado no rosto e cegar, vira-se exibindo ao seu dominador uma boca enfadada de murmurar “Sim, senhor” e dois olhos faiscantes a protestar: “Isso já foi longe demais, basta!”. Trata-se de ser tomado pelo mesmo furor deste escravo em desejar mais que os outros lhe ensinaram que poderia desejar. Trata-se de atingir o que ninguém ousa atingir. Trata-se de sujeitar-se a ser perseguido, achincalhado, a correr o risco de padecer de fome e frio e abreviar seus dias por acreditar em algo maior que a própria vida. Trata-se de acreditar na liberdade do mundo do faz de conta, na potência criadora da mente humana.Trata-se, também, de dinheiro, mas de algoque nem todo dinheiro do mundo seria capaz de comprar. Trata-se de receber sem pedir, de dar aos meus pais e à minha mulher o que lhes é de direito por terem me estendido as mãos quando eu mais necessitei. Trata-se de se reconhecer vítima não meramente do meio, como crê toda gente comum, mas igualmente de si mesmo, de suas próprias idiossincrasias, virtudes, fraquezas, ambições e vícios. Trata-se de examinar a questão do suicídio, da morte, da iniqüidade e da benevolência humanas, do bem e do mal. Trata-se de ouvir mais a si próprio que aos outros, uma vez que se refere menos ao senso comum que à intuição. Trata-se de, ao amanhecer, ser tomado pela angústia de escrever, de um parto sem hora marcada. Trata-sede uma necessidade diária de solidão. Não se trata, de modo algum, de não sentir dor, de não se sentir infeliz, mas de na infelicidade lobrigar a alegria porque compreendeu que não conhecerá o paraíso sem antes cruzar o inferno. Trata-se, então, de na fraqueza reconhecer a própria força, e na aparente insignificância e esterilidade de seus dias discernir o que há de grande e belo em seu amanhã. Também não se trata de ser completamente distinto dos demais - pois isto é pensar como eles, é ser como eles - mas de na multidão não me perder, não desacreditar no que apenas meus olhos serão capazes de mirar: o meu caminho. Trata-se, então, de questionar a própria noção de igualdade. Trata-se de um sentimento de raiva, de revolta que me lança ao “tudo ou nada”, contra tudo e contra todos. Trata-se de a um só tempo ir contra mim mesmo na defesa de minha pessoa. Trata-se de uma lacuna em meu ser, do martírio de uma ferida que não se cicatriza, da coexistência em meu peito de demasiada carência e um não menor amor-próprio; da necessidade de ser amado, lembrado, mas de negar-se a pedir, a fazer qualquer concessão por um gesto de carinho ou reconhecimento. Trata-se de justificar não a aparente ociosidade, mas o gênio; não o mal, mas o bem. Trata-se de acusar. Trata-se de antes morrer de pé a viver de joelhos. Trata-se de achar imperdoável acreditar na existência de uma divindade se não puder participar dessa divindade. Trata-se de ser impossível, de afigurar-se irredimível se contentar com menos do que se deseja e admira. Trata-se de buscar em mim mesmo o meu próprio mundo, o meu próprio deus, o meu próprio inferno e paraíso. Trata-se da busca pela minha individualidade. Trata-se de ser homem sem deixar de ser menino; de ser humano sem deixar de ser divino. Trata-se de ser mais um na multidão ao mesmo tempo em que se dá conta de haver em si uma multidão de homens e mulheres. Trata-se de ser a regra e a exceção. Trata-se de ser contraditório, caprichoso e incoerente por não ser um, mas muitos e, por isso, ser tão incompreendido. Trata-se de mostrar-lhes “Ah! Vejam quanta injustiça suporto por não aceitar viver como vocês!”. Trata-se de um acerto de contas. Trata-se de minha vingança e de minha redenção. Trata-se de tudo o que eu tenho, de tudo o que eu sou. Trata-se de se entediar com o real, mas deste não prescindir. Trata-se de minha literatura, de dar vida a um mundo que satisfaça a vontade de liberdade e distinção que existe não apenas em meu coração, mas no coração de cada homem.Trata-se de compreender o meu tempo. Trata-se de não temer o orgulho e a revolta, mas de criar minha própria linguagem, revelar uma identidade. Trata-se, enfim, de tornar-se um grande escritor ou nada mais ser nesse mundo.

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Postado por Heberti Rodrigo
22/4/2016 às 19h12

 
Mãos Sujas


by Marcel Caram


"Eu não me desfaria da minha doença, pois há muita coisa em minha arte que devo a ela." Edvard Munch

As vivências de um homem se encadeiam umas às outras numa tal velocidade que poucas vezes ele chega a se tornar consciente de seus estados interiores. Muitos de meus dias transcorrem sendo plenamente absorvidos pelos afazeres cotidianos, pelas preocupações e distrações comuns a um homem casado e pai de um filho. Se há instantes em que é necessário um pouco mais de dedicação e paciência, comumente eles se sucedem sem sobressaltos. São horas vividas sem reflexões ou inquietações mais profundas em que minha vida em si mesma se justifica, inconscientemente se organiza e se ajusta ao ambiente em que vivo. Maquinalmente se vive. De tempos em tempos, entretanto, um sentimento se impõe e tudo se desorganiza. Outrora, quando ainda não o compreendia, lastimava-o. Hoje o aceito, e aceitá-lo significa silenciar e escrever. Está presente em minha vida como o espaço vazio deixado pela ausência de dentes na catraca de uma bicicleta, fazendo com que vez ou outra a corrente saia, interrompendo o movimento que possibilita ao ciclista manter o equilíbrio. Nestes momentos de instabilidade em que sinto a minha vida se desorganizar, distancio-me dos outros. Escrever é uma tentativa de reorganizar-me, de reaproximar-me. Impõe solidão. Exige que eu desça da bicicleta e suje minhas mãos recolocando a corrente em seu lugar para poder seguir em frente. É com as mãos sujas que tomo consciência da singularidade de minha existência. É com as mãos sujas que escrevo. A personalidade de um homem é constituida de muita coisa desagradável, de "defeitos" sem os quais se torna impossível viver. Viver é sujar-se de si mesmo. Sentindo-me à margem, estou entregue à minha sujeira, revirando conflitos íntimos enquanto uma pergunta me angustia: serei capaz de reestruturar-me, de reabilitar-me, através de uma linguagem que comunique o que se passa comigo? O sentimento de vazio, a sensação de desajuste em relação ao ambiente em que vivo e a incerteza de saber se conseguirei comunicar-me e suavizar meu isolamento precedem minha escrita. Jamais escrevo se me sinto plenamente ajustado. Somente comecei a sentir necessidade de escrever após ter tomado consciência da dor de estar só no mundo, descobrindo-me como criatura única e separada. Não escreveria se viver não doesse. Aceitar tudo isso foi muito difícil - toda separação é dolorosa -, mas não posso me furtar aos momentos de solidão, às situações limites e às ocasiões em que tenho de sujar as mãos para seguir traçando meu próprio caminho. Foram essas vivências que fizeram de mim o artista que sou e artista nenhum pode prescindir do que o faz ser ele mesmo se quiser avançar.

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Postado por Heberti Rodrigo
22/4/2016 às 15h05

 
A Decisão


www.desenhoswiki.com


"Tomando a decisão e realmente querendo, os próprios pés o conduzem para a realização." Talmude babilónico


Foi num domingo que tomou uma daquelas decisões que definem um caráter e seu destino. Àquela hora, não somente em sua casa, mas em toda a rua, todos ainda dormiam quando ele ergueu-se da cama decidido a tirar a velha bicicleta do pai da garagem. Se quisesse descobrir – e ele queria – como seu pai realmente se sentia nas aventuras que lhe narrou repetidas vezes, e com um entusiasmo que sempre o contagiava, teria de seguir em frente com aquilo. Cresceu ouvindo coisas como “Há dias, meu filho, em que as nuvens encobrem as montanhas e pedalamos em seu interior. Quando isso acontece, tudo o que me move é o desejo de avançar entre elas para ver o mundo do ponto mais alto. Nesses momentos não penso nem no esforço, nem no cansaço, nem nas dores. É como se os pneus deixassem de tocar o solo. Eu me sinto como se fosse pura vontade. Um dia você entenderá o que estou dizendo e verá como é indescritível a vista do mundo e da vida que se descortina diante de nós quando atingimos semelhantes alturas!”. Estas frases não lhe saíam da cabeça. Queria desvendar o seu real significado, e para isso sabia que deveria dar o primeiro passo.

Quando entrou na garagem, surpreendeu-se ao ver como a bicicleta era grande e pesada. Nunca haviam estado tão próximos. Ao menos, nunca a havia sentido tão próxima de si. Sempre adiou aquele encontro porque se habituou a pensar que não tinha idade suficiente. Na verdade, quem desejava convencê-lo disso era a mãe, sobretudo depois do acidente sofrido pelo pai. Ele, no fundo, mas lá no fundo mesmo, há algum tempo sabia que a idade não era mais um obstáculo. Não que até ali houvesse mentido para si mesmo quanto a isso, pois bastava vê-lo ao lado da única bicicleta da casa para abolir qualquer dúvida: ele era pequeno para ela. Naquele momento, entretanto, de um modo que jamais soube explicar, sentia que não era assim tão pequeno. Por isso, se bem que assustado, resolveu não tornar ao seu quarto.

Respirou fundo buscando se acalmar e ganhar ânimo enquanto se esforçava em rememorar os preparativos do pai antes de pedalar: verificou a pressão dos pneus, ajustou a altura do selim, lubrificou a corrente e os cabos do freio e, certificando-se que estava tudo em ordem, levou-a para a rua com muito cuidado para não fazer barulho. Temia que sua mãe descobrisse o que planejava. Ela sempre descobria o que se passava em sua cabeça. Como ela era capaz disso, ele nunca soube.

Fora de casa, olhou à sua volta à procura de um lugar onde apoiar a bicicleta com segurança para que pudesse subir nela. Encontrou apoio num bloco de pedra. Quando conseguiu sentar no selim, um de seus pés não mais tocava o chão. Dali a instantes, o outro também deixaria de tocá-lo. Sem dar por isso, atingiria, então, aquele ponto em que não haveria como voltar atrás. Como não conseguiria equilibrar-se por muito tempo estando parado e não teria a segurança que havia encontrado no bloco de pedra, assustou-se ao ver que não teria onde se amparar. “Vou cair”, pensou, mas, no mesmo momento em que esse pensamento lhe assomou à mente, prendeu a respiração, contou “um, dois, três” e, num impulso decisivo, foi-se embora, ziguezagueando. Sentiu o coração disparar. Foi tomado por um medo terrível, um medo tão inerente àquilo que estava fazendo quanto o próprio oscilar de seu corpo e da bicicleta buscando desesperadamente encontrar o equilíbrio. Ao tirar os pés do chão, adentrara numa nova realidade. O medo de cair o fazia pensar, mas não havia mais tempo para pensar. Não poderia pensar, pelo menos não como antes. Chegara o momento de apenas sentir o movimento, de deixar-se ser e simplesmente pedalar, mas, para ele, não era nada simples. Naquele instante, pela primeira vez se deu conta de que coisas simples podem se tornar terrivelmente assustadoras quando temos a sensação de que nossas vidas estão em jogo. O pai, certa vez, lhe preveniu que alguma oscilação é natural, que o próprio medo e a incerteza são naturais e que aos poucos ele se habituaria a tudo aquilo. “Tem que aprender a conviver com o medo”, dizia seu pai, “O que não pode é parar. Se parar, você vai cair”. Como seu corpo, o medo e a coragem, sua confiança e desconfiança iam e vinham. Deliberavam, agitavam-se, confundiam-se dentro de si. Sentia tudo pender ora para um lado, ora para outro até que, após alguns insucessos, os músculos da face finalmente evidenciaram os primeiros sinais de confiança e não demorou a que um sorriso assomasse. Aprendera a andar de bicicleta.

Anos mais tarde, quando tomou outra decisão, desta vez de que se tornaria escritor, comparou o medo que sentia, diante de uma folha de papel em branco, de não conseguir escrever, e a sensação do indescritível por ter escrito a tudo aquilo que seu pai havia lhe descrito anos antes sobre ver o mundo e a vida das grandes alturas. Compreendeu que os anos passaram, mas algo nele não havia mudado. De algum modo, era ainda aquele menino, e escrever havia se tornado sua maneira de reviver aquela que talvez tenha sido a experiência mais significativa de sua infância.

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Postado por Heberti Rodrigo
22/4/2016 às 10h56

 
O Vendedor de Livros


Icaro, Henri Matisse

"Todo mundo tem um talento. O que é raro é a coragem de seguir o talento para o lugar escuro onde ele leva." Erica Jong


Quando a campainha tocou, eu estava apoiado sobre a escrivaninha tentando escrever. Confesso que me senti aliviado ao ouvi-la. Não conseguia trabalhar e, como não conseguia, começava a me preocupar com as contas a pagar. Além disso, tornava a me questionar sobre o que as pessoas enaltecem como talento ou vocação sem que tenham experimentado o real significado dessas palavras em suas próprias vidas. É comum esse tipo de pensamento ocupar minha cabeça quando estou sentado à escrivaninha e me deparo com a dificuldade de escrever.

Ao abrir a porta, foi como se o meu passado estivesse diante de mim. Há alguns anos fazia o que aquele homem estava fazendo. Um dia resolvi não vender mais porra nenhuma do que me empurravam os livreiros. Por quê? Dizia que vendia porque precisava de dinheiro. Era mentira. É certo que eu não tinha um centavo para o almoço do dia seguinte, mas não estava mais tão convicto de que pela mera necessidade de dinheiro valia a pena bater à porta dos outros, tentando convencê-los da importância de ter em casa livros que nem ao menos considerava dignos de serem lidos.

“Por que o senhor está vendendo seus livros?” - perguntou-me certa vez um menino que abriu a porta para mim, com a maior inocência. Respondi-lhe o que qualquer um diria em meu lugar: “Preciso ganhar a vida.”. Ele, então, encarou-me como se o que eu lhe tivesse dito não fizesse sentido. A seguir, disparou “Quanto custa cada livro?” A partir daquele instante, de um modo que não sei explicar, comecei a sentir-me encurralado, feito gado metido num curral à espera do momento do abate.

“Quanto custa cada livro? Quantos preciso vender para ganhar a vida?”, questionei-me pela primeira vez, pouco depois de o menino fechar a porta, enquanto aguardava o elevador. Todo aquele processo automatizado em que até então consistia a minha vida começou a ser desfeito com estas perguntas. Habituei-me a tal ponto a repetir aos outros as meias-verdades que me foram ensinadas, enquanto ocupava-me com o cumprimento de minha meta de venda, que irrefletidamente comecei eu próprio a acreditar nelas. Nas semanas seguintes, não pensava noutra coisa, e fui tornando-me incapaz de vender tais livros. Sentia imenso desconforto a cada venda concluída. Não entendia o que estava acontecendo comigo. Questionava tudo à minha volta, revoltava-me contra o mundo, sentia raiva de tudo e de todos. Meus dias iam se tornando cada vez mais difíceis. Todas as manhãs, ao acordar, me faltava ânimo para sair da cama. O que antes era absolutamente natural, agora exigia de mim um esforço sobre-humano para ser executado. Tudo parecia ter-se tornado estúpido, oneroso e sem sentido. A realidade é que precisava de dinheiro, mas eu não queria, não podia mais viver daquele modo. “Quanto ainda terei de vender para ganhar a vida?”, repetia constantemente. Não mais me sentia capaz de seguir em frente com as vendas e, mesmo quando conseguia reunir forças para encarar um dia de trabalho, era impossível sair de casa sem lastimar-me: “Não estou ganhando a vida; estou vendendo-a por uma ninharia”.

Começou a parecer-me mais razoável dar um fim àquela situação do que seguir esperando a morte de uma maneira tão deplorável e covarde. Foi o que fiz. Decidi não me sujeitar mais a uma rotina tão maquinal, de respostas impensadas. Talvez tenha sido esta minha recusa em continuar a fazer parte desse automatismo teatral a que todos se habituaram a chamar de “vida” que tenha feito de mim o que sou hoje. Se tornasse a vender livros novamente, que fossem os livros que eu viesse a escrever. Pouco depois, de fato, pus-me a escrever. Não apenas por dinheiro, mas, sobretudo, para viver a minha vida de um modo que fizesse sentido para mim.

Assim que me despedi do vendedor, sentei-me novamente à escrivaninha. Sua visita reafirmou minha convicção de que, a despeito das dificuldades que enfrento, não posso voltar atrás. Se quiser ganhar a vida, tenho que escrever. Agora, quando me perguntam se ter me tornado escritor é consequência de uma vocação ou talento, ainda hoje não me sinto capaz de assegurar coisa alguma. O que tenho para mim é que quando alguém toma uma decisão como a minha, não se pode justificá-la simplesmente evocando essas palavras. Acho que há algo mais.

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Postado por Heberti Rodrigo
16/4/2016 às 10h50

 
Reconhecimento


Retrato de Jeanne Hébuterne, Amedeo Modigliani


Ele tencionava embelezar o quadro e tão convencido estava de que alcançaria um efeito mais agradável suprimindo o que distinguia como “pecadilhos”, que não deu ouvidos às objeções da retratada aos retoques. Suas explicações não a dissuadiram. Ela não abria mão da autenticidade. Nem mesmo depois da exposição na qual a tela arrebatou aplausos à crítica e ao grande público, ela cedeu. À obra foram dedicados entusiásticos elogios pelas revistas especializadas, e o pintor começou a receber generosas propostas pelos seus trabalhos anteriores. Diante de tanto reconhecimento, ele rejubilava-se consigo mesmo. Estava satisfeitíssimo. Ela, no entanto, não disfarçava a expressão de contrariedade que aflorava em seu semblante sempre que a felicitavam.

- Esta não sou eu! dizia ao pintor enquanto era instada a posar ao lado da tela.

- Não é o que importa neste momento, ele retorquia furtivamente. Veja por si mesma: o quadro é um sucesso.

- Mas não sou eu! Admito que possa ser um sucesso aos olhos de todos, mas em relação a mim mesma é um fracasso. Sinto que todo esse reconhecimento que nos dedicam tem um brilho hipócrita e insincero. Ele não é meu! Esta não sou eu!

- Isso não vem ao caso, senhorita.

- E o quê vem ao caso, cavalheiro?

- O que importa é que está magnífico e a todos agradou. Como pintor, superei-me, e estou felicíssimo. Já executei inúmeros retratos, mas nenhum outro obteve semelhante êxito. É uma obra-prima. Olhe derredor! As mulheres a invejam, pois os homens a cobiçam. Não compreendo toda essa insatisfação. Ademais, perdoe-me a sinceridade, mas acho que se a pintasse como me pede seríamos negligenciados. O que fiz foi prestar-lhe um tributo enaltecendo o que há de belo na senhora e dissimulando os pecadilhos. Deveria estar grata. Creio que jamais esteve tão exuberante, perfeita.

- Pode ser, mas não lhe pagarei enquanto não pintar algo com o qual eu me reconheça plenamente sempre que fitá-lo.

- Neste caso a senhorita há de me desculpar, mas não creio que possa fazê-lo.

- Como não!? Disseram-me que é o mais talentoso de nossos retratistas.

- E sou, mas o que me pede é-me vedado executar. Tal quadro só a senhora poderá pintá-lo e, de antemão, previno-a: exigir-lhe-á anos de dedicação sem que ao menos tenha qualquer garantia de que chegará a alcançar o efeito desejado. Qualquer pintor que nisso se aventurar, senão a senhorita, fracassará porque para ele a senhorita servirá apenas como modelo, e pintar tal obra exige mais do que isso. De um modelo, um artista apenas é capaz de apresentar sua interpretação subjetiva, de modo que no retrato sempre haverá algo da alma do artista que pintá-lo. Ele poderá minimizar os retoques, mas não eliminar suas próprias impressões. Por conseguinte, a identificação que deseja entre a pintura e o modelo exige que este e o pintor sejam a mesma pessoa. Compreende o que isso significa? Terá de fazer o seu autorretrato. Inevitavelmente, há de dedicar todo o seu tempo e energia numa vida de angústias e lutas interiores até alcançar uma linguagem própria de cores e tonalidades através das quais expressará o que a senhorita tem de mais íntimo. Está mesmo disposta a isso? Não prefere tomar como seu este retrato, assinado por um pintor consagrado, e que em todos despertou inveja e admiração, a arriscar-se ao fracasso de revelar uma Anita que pode jamais vir a ser reconhecida?

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Postado por Heberti Rodrigo
14/4/2016 às 15h06

 
As Ondas


A Onda, Anita Malfatti

- Aqui está seu café, meu amor.
- Obrigado.
- Você ainda não me parece bem. Vou fechar a janela antes que adoeça novamente.
- Não, não feche. Sinto-me melhor com a janela aberta. Gosto de observar o mar. É noite novamente, e ele está tão belo agitado.
- Se está se sentindo melhor, por que essa aparência estranha?
- Só estou um pouco angustiado, e temeroso.
- Você, com medo?
- Estou, mas por que todo esse espanto?
- Por nada, apenas não me havia passado pela cabeça que pudesse sentir medo, pelo menos não em seu quarto, diante da máquina de escrever. Sempre me pareceu seguro entre estas quatro paredes, cercado por seus livros e cumprindo o que acredita ser o seu destino.
- E há quem, ao menos de vez em quando, não se sinta profundamente inseguro em relação ao próprio destino?

(Os dois se calam. Ao fundo, o som das ondas)

- Qual é o seu medo?
- Não suportar a estranha pressão de um trabalho que não entrevejo como exatamente se realizará e nem ao menos sei se terei tempo de realizá-lo.
- Por que está dizendo isso se ontem, especialmente depois que enviou o texto para a editora, estava tão confiante?
- Não sei. Talvez porque pela manhã tenha visto o mar tão calmo e, à tarde, de repente, o tempo virou e as ondas começaram a bater violentamente contra as pedras; vi como o dia subitamente tornou-se frio e sombrio. Você acha que isso acontece com as outras pessoas?
- Isso o quê?
- De olharem para o mar e sentirem-se assim como eu.
- Assim como?
- Como se pouco a pouco suas vidas estivessem sendo definidas por circunstâncias que lhes fogem do controle, da mesma maneira que a força das ondas delineia formas inusitadas nas rochas.
- O que quer dizer com isso?
- Que, talvez, o livre-arbítrio não passe de uma ilusão, e cada um de nós, diante de sua própria vida e ao longo da mesma, na realidade só tenha duas escolhas, se houver escolha: “encarar seu destino” ou “não encará-lo”, pois o destino em si mesmo pode não ser passível de mudanças meramente motivadas pelas nossas vontades. A forma que as rochas adquirem depende de sua constituição íntima – seu caráter -, mas, sobretudo, da ação das ondas sobre elas ao longo do tempo. E se com os homens suceder algo semelhante?

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Postado por Heberti Rodrigo
13/4/2016 às 15h35

 
O Velho e o Grande Cinturão dos Peso-Pesados


Mike Tyson x Trevor Berbick

À Menina, ela que chegou quando ele mais precisou, a estória de sua luta, e também de seu amor


Quando um boxeador está desferindo um golpe, ele baixa a guarda. Nunca está tão vulnerável como ao atacar. Por isso, quem tem a audácia de ir à luta precisa de quem o proteja. Isso, os que não subirem ao ringue jamais saberão. Isso, o Velho, embora velho, só veio a saber depois da queda.

O Velho sofreu um nocaute, mas engana-se quem pensa que o Velho, embora velho, esteja acabado. Durante a queda, tentou se agarrar às cordas, mas seus braços, conquanto hipertrofiados e fortes, não foram capazes de suster o peso daquela derrota. Foi à lona e dali observou o mundo dar-lhe as costas para reverenciar o novo campeão. O Velho caiu quando atacava, e não havia quem o protegesse.

Quando as luzes se apagaram, estava só. Sentia-se abatido, ferido, desnorteado, mas, sobretudo, sentia-se só. Sobre a seqüência de golpes que lhe fora imposta, se não severa demais, como alguns críticos ainda hoje argumentam, indubitavelmente, atingira-o em pontos críticos. “Muitos sucumbiriam em seu lugar. Deveria dar-se por satisfeito em ter saído inteiro daquela luta”, afirmam alguns dos amigos que presenciaram sua queda. Ele, entretanto, não está nem um pouco satisfeito, e, orgulhoso como é, se não tem na opinião dos amigos algo que amenize sua dor, muito menos se dá por vencido. Ademais, o Velho sente que não saiu inteiro daquela luta, como lhe dizem. Algo lhe foi tomado e sente necessidade de reavê-lo. Quando ainda convalescia, era possível notar que a derrota abalara sua autoconfiança, mas o incipiente desejo de revanche que com ela adveio deu-lhe a firmeza de que necessita um homem para recomeçar. Além disso, no dia de sua queda o Velho conheceu a Menina. Ela, ao tomar conhecimento do que lhe sucedera, mostrou-se disposta a ajudá-lo. Com o seu apoio, o Velho, embora, velho principiou a ultrapassar os próprios limites. Ele está se tornando mais forte, e quando se sentir forte o suficiente exigirá sua revanche. Não está disposto a morrer sem recuperar o que, um dia, perdeu. É isso mesmo, o Velho, embora velho, sem títulos e desacreditado, subirá ao ringue ainda uma vez mais. Se acaso perderá ou ganhará é difícil vaticinar. No momento, o que sabe é que não poderá passar sem uma revanche. Sabe também que não está só. A Menina está ao seu lado. O Velho quer uma nova oportunidade de mostrar ao mundo do que é capaz, e, pacientemente, obstinadamente, prepara-se para quando a ocasião da derradeira luta advir.

Embora haja momentos em que pense que fora derrotado pelo mundo, sabe que esta é uma asserção que não se encaixa com exatidão ao seu caso se não acrescentarmos a ela que o Velho perdeu para o mundo porque antes disso perdera para si mesmo. Com a queda, aprendeu que para vencer o mundo cabe a ele vencer a si mesmo. Deste modo, luta contra si mesmo, todos os dias, longe dos holofotes e do público. Assim transcorre sua vida: a cada dia, uma luta e sempre com um adversário mais forte que o anterior, pois a cada luta o Velho torna-se mais forte, mesmo quando é derrotado.

Até a noite da queda, o mundo o reverenciava como um grande lutador. Ainda hoje há quem lhe peça autografo ou lhe diga que é um vencedor, mas o Velho assim não se considera porque entende que sua luta não terminou. “Uma derrota não representa o fim”, diz. Alguns amigos aconselham-no de que é hora de ele se aposentar, de, refestelado numa poltrona, orgulhar-se de seu passado e acompanhar os novos boxeadores. Mas o Velho, embora velho, não é um aposentado e sabe que no futuro nada encontrará em sua vida para se orgulhar caso desista de lutar, pois, intimamente, está convencido de que não atingiu o que, muito antes de tornar-se um boxeador, já desejava e acreditava ser capaz de atingir. Para ele, a luta tem que continuar.

Sim, o Velho quando jovem acreditava ter uma carreira promissora pela frente e os títulos conquistados até aquela fatídica noite não deixavam dúvidas sobre sua força e envergadura. “Ele se tornará campeão mundial dos peso-pesados”, profetizava a crítica especializada. Entretanto, depois de ter visto o mundo sob a perspectiva que lhe oferecera a lona, tudo mudou. Com a derrota, o Velho passou a sentir como se tivesse perdido não apenas todos os títulos já conquistados, mas algo mais importante do que isso; perdera parte da confiança que o mundo e ele próprio depositavam em sua pessoa, e isso ele quer reaver, pois sem isso homem nenhum pode viver.

O Velho mudou muito depois daquele dia em que sua confiança foi ao chão. Tornou-se, desde então, mais concentrado em seus objetivos. Não pensou que perderia, mas sem dar-se conta perdera a vontade de lutar e quando esta vontade é perdida, tudo está perdido. Sem ela, resta-nos a lona ou ocupar um lugar na platéia. Quando perdemos a vontade de lutar, tornamo-nos aposentados à espera que a campainha soe para nós.

Perdidos os títulos, disseram que o Velho estava velho, que ele não era nada. Ler no olhar dos outros semelhante opinião foi o quanto bastou para reanimá-lo a mostrar ao mundo e a si mesmo que não está acabado. Graças isso irrompeu e, pouco a pouco, continua a recrudescer em seu espírito o desejo de lutar uma vez mais, e, por acreditar ser esta a última, quer que seja a grande luta de sua vida. Para ela, obstina-se em treinar com afinco e por conta própria, mas não só, pois sempre procura aprender algo com os grandes boxeadores de todas as épocas.

“Não há tempo a perder”, diz de si para si quando convidado a fazer parte das distrações e dos afazeres cotidianos dos aposentados. Assim pensa, porque o Velho, como disse, quer reconquistar o que perdeu. Além disso, excita seu coração a ambição de conquistar o grande cinturão dos boxeadores. Do Velho foram tomando títulos menos significativos que esse, e os que ainda conserva na parede de seu quarto apenas servem para rememorá-lo de sua derrota. Se fosse um aposentado como muitos de seus amigos, olharia com nostalgia para aqueles diplomas e fotografias, mas o Velho sendo como é, ao mirá-los é possuído por uma raiva que o motiva nos treinos.

Se bem que o tenha tratado como um boxeador, não, o Velho não é precisamente o que entendemos como boxeador. Não que também não o seja, pois o Velho acredita que viver é lutar, e, neste sentido a ele parece que cada um luta do seu jeito. Mesmo aqueles que preferem assistir, refestelados em confortáveis poltronas, aos grandes boxeadores, vez ou outra carecem de ir à luta. Seja como for, o modo de o Velho lutar é escrevendo. Ao Velho somente importa a sua luta, a sua revanche. Não quer viver como toda gente. Não quer estar junto de seus amigos aposentados na platéia. O Velho, embora velho, só quer saber de treinar; o Velho, embora velho, só quer tornar-se mais forte. Ele quer reaver o que lhe fora tomado. Quer o grande cinturão. Se para tal, precisar atacar novamente, ele o fará, mas dessa vez acredita que desfecho será outro. O Velho aprendeu uma importante lição: nunca se está tão vulnerável como quando se está atacando. Por isso, quem ataca precisa de quem o proteja. Por isso, precisa da menina, e agora que ela lá está para protegê-lo, acredita que vencerá.

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Postado por Heberti Rodrigo
11/4/2016 às 18h36

 
A Confissão do Equilibrista


O Equilibrista Philippe Petit entre as Torres Gêmeas. Fonte:http://www.planocritico.com/


Quero o que dizem não ser possível...Que o impossível seja impossível, como todos acreditam, não me impede de desejá-lo. Não quero me acomodar a uma vida ordinária como um homem ordinário. A vida não se resume ao que dizem. É, sobretudo, o que sentimos, e o que sinto é que ela pode ser maior. Não quero apenas relações ordinárias. Não quero apenas experiências ordinárias. Quero o êxtase e o assombro. Não quero viver se isso que as pessoas fazem chama-se viver. Quero algo maior."É impossível! Isto nem sequer faz sentido", dizem. Não quero minha vida confinada a tudo aquilo que para os outros faz sentido. Quero experimentar o que também não faz sentido. Quero inventar um outro sentido. Quero ser fogo, incendiar-me. Quero estar em chamas e não me queimar. "É impossível", dizem.

Quero estar em chamas para que minha vida se expanda. Quero vê-la expandir até atingir o extraordinário. O que quero é o extraordinário. Quero mesmo sabendo que poderei ser despedaçado por ele. Prefiro isso a me sentir asfixiado nas entrelinhas de uma vida ordinária. Antes eu me perguntava o que haveria de errado comigo - sim, admito que é possível que haja. Agora, não me pergunto mais. Simplesmente aceitei que os homens não são iguais, e para alguns deles a vida tal como se apresenta não é possível, como se viver não fosse algo natural. Será que viver é algo natural? Há momentos em que sinto a urgência de escrever, como se escrevendo procurasse um modo de tornar minha vida possível. Escrevo como se ao fazê-lo tomasse fôlego. Somente depois de escrever sinto que posso continuar com essa vida ordinária de fazer coisas que não quero fazer e ver pessoas que não me interessa ver - pessoas que para se sentirem vivas parece que lhes basta apenas um pãozinho com manteiga. Estou procurando um modo de tornar isso tudo possível. Se não precisasse fazê-lo, não escreveria. Se não precisasse fazê-lo, preocupar-me-ia tão somente em ganhar o pão de cada dia.  

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Postado por Heberti Rodrigo
5/4/2016 às 16h24

 
Germina - Revista de Literatura e Arte


View from a Paris window. Fonte:www.allposters.com.br

Há momentos em que é preciso escolher entre viver a sua própria vida plenamente, inteiramente, completamente, ou assumir a existência degradante, ignóbil e falsa que o mundo, na sua hipocrisia, nos impõe. Oscar Wilde


Ao longo dos últimos dez anos, foram tantos - inclusive amigos íntimos - os que me disseram que escrever não dará certo, que não deveria me desviar dos caminhos convencionais porque, na opinião deles, não faz sentido alguém se dedicar a algo que não dá dinheiro quando deveria se preocupar em concluir uma faculdade, deixando para escrever nas horas vagas, quando estivesse exausto, que acabou acontecendo o contrário do que tencionavam: recrudesceu em mim a vontade de provar que se uma pessoa realmente acredita no que faz, se há nela uma autêntica paixão, ela se torna capaz de curvar a realidade em torno de si a ponto de tornar real o que antes não passava de uma fantasia pessoal. Muitos ainda não acreditam que seja possível que isso possa acontecer com elas ou alguém próximo, e quando começa a acontecer, obstinam-se em não ver. Ouço, também, destas mesmas pessoas a afirmação de que a realidade arruina com nossas fantasias, nossos sonhos. Ouço isso com tanta frequência que parece-me que, infelizmente para elas próprias, transformaram-na numa lei. Para mim, tudo se resume a um questão pessoal e de difícil resposta, não a uma lei geral, e estou decidido a encontrar, a elaborar, a minha resposta.

Estar na edição de março da conceituada Germina - Revista de Literatura e Arte é um inequivoco incentivo à elaboração dessa resposta. É muito gratificante ver um texto publicado, lido, sentir que estou avançando e sendo reconhecido. Ainda há pessoas que insistem para que eu tome como minha a convicção que assumiram como uma lei geral para suas vidas, talvez para melhor se justificarem a si mesmas pelo caminho que trilham; entretanto, há também aquelas que me incentivam a continuar. Ao longo dos anos, muitas vezes escrevi agradecendo-lhes. Nesta ocasião, em decorrência do que aconteceu em março, gostaria de citar e mostrar minha gratidão a duas delas: a primeira é o Léo, daqui de Petrópolis, com quem poucas vezes conversei, mas sempre me suscitou a impressão de compreender o que move alguém como eu. É bom reconhecer essa compreensão no olhar, senti-la na maneira pela qual nos tratam quando ainda estamos no início e tudo ainda é tão incerto e o mundo, em alguns momentos, parece conspirar contra nós. A outra pessoa, com a qual apenas troquei poucas mensagens por e-mail, e fez diferença, é a editora Silvana Guimarães. Os dois, cada um ao seu jeito, me ajudaram a curvar a realidade em torno de mim, a fazer com que eu começasse a ser reconhecido como escritor. Em março, pela primeira vez, senti, em minha terra, algo que somente havia experimentado em Paris, na Shakespeare and Company, e na Alemanha. Tomo a liberdade de agradecer à Silvana, não apenas por mim, mas por todos aqueles que, como eu, sentem necessidade de divulgar o próprio trabalho e encontram acolhida na Germina. Isso é extremamente importante para quem se envolve com a arte, sobretudo, num país como o nosso. Abaixo o link para os textos que escrevi e fazem parte da edição de março da Germina:

Três Textos

Para terminar, umas palavras de Ernest Becker que se assemelham ao modo como vejo a minha escrita, o meu trabalho.

'A chave para o tipo criativo está em que ele fica separado do conjunto comum de significados compartilhados. Existe algo, em sua experiência de vida, que o faz entender o mundo como um problema. Em consequência, tem que entendê-lo pessoalmente. Isso é verdadeiro para todas as pessoas criativas, em maior ou menor grau, mas é especialmente óbvio no artista. A existência se torna um problema que precisa de uma resposta ideal. Mas quando você já não aceita a solução coletiva para o problema da existência, você terá que criar a sua solução. A obra de arte é, então, a resposta ideal do indivíduo criativo para o problema da existência tal como ele o entende - não apenas a existência do mundo exterior, mas especialmente a sua própria existência: quem é ele como pessoa dolorosamente separada, sem coisa alguma partilhada em que se apoiar. Ele tem que responder ao ônus de sua extrema individualização, de seu isolamento tão doloroso. Quer saber como conseguir a imortalidade como resultado de seus dotes sem igual. Seu trabalho criativo é, ao mesmo tempo, a expressão de seu heroísmo e a justificação desse heroísmo. É a sua "religião particular" - como disse Rank. A originalidade desse trabalho lhe dá a imortalidade pessoal; (...) As pessoas precisam de um "além", mas estendem os braços, primeiro, para o que estiver mais perto. Isso lhes dá satisfação de que precisam, mas ao mesmo tempo as limita e escraviza. É assim que se pode entender todo o problema da vida humana. Para o artista, sua obra é o seu "além", e não o de outras pessoas."

Trecho extraído do livro A Negação da Morte, de Ernest Becker

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Postado por Heberti Rodrigo
2/4/2016 às 09h57

 
Obstinação

Meu post anterior, Contagem Regressiva, vem sendo reescrito há 3 dias. Durante uma das releituras lembrei de haver enviado a alguns amigos as palavras do escritor alemão Hermann Hesse. Como há um forte vinculo de idéias entre o texto que Hesse escreveu e Contagem Regressiva, resolvi, então, transcrevê-lo:


"Existe uma virtude - e só uma - a que muito amo: - a obstinação. Não atribuo o mesmo valor a todas as virtudes de que falam os livros e os professores. Entretanto, poderíamos abranger sob uma só palavra todas as virtudes inventadas pelo homem. Virtude é - obedecer! Toda a questão está em sabermos a quem obedecer...Também a obstinação é obediência. Mas todas as outras virtudes, tão estimadas e decantadas, são obediência a leis feitas pelos homens. Só a obstinação é que não dá a menor importância a tais leis... O obstinado obedece a outra lei, a uma lei única, absolutamente sagrada: - à lei em si mesma, ao sentido (Sinn) de seu próprio ser (des Eigenen).

Mas tomemos a palavra em seu sentido literal! Literalmente, que quer dizer "obstinação" (Eigensinn)? Significa que alguém tem seu sentido próprio, sua marca pessoal (eigenen Sinn). Ou não será isso?

Na verdade, tudo quanto existe sobre a terra tem seu "sentido próprio" (eigenen Sinn). Sim, todas as coisas o têm. Cada pedra, cada folha de grama, cada flor, cada arbusto cresce; cada animal vive, age e sente prefeitamente de acordo com seu "sentido próprio". É exatamente devido a isso que o mundo é tão bom, rico e belo. Se existem flores e frutos, carvalhos e bétulas, cavalos e galinhas, estanho e ferro, ouro e carvão, tudo isso resulta única e exclusivamente do fato de cada coisa, por mínima que seja, trazer em si mesma, dentro do universo, o seu "sentido", o seu selo, sua lei própria, e segui-la sempre de maneira total e inexorável.

Na terra só existem dois pequenos e desditosos seres aos quais não é concedido seguir esse apelo eterno; aos quais não é dado ser, crescer, viver e morrer sempre do modo como lhes impõe seu "sentido próprio" e inato. São o homem e o animal.

Só o homem e os animais por ele domesticados são condenados a seguir não a voz da vida e do progresso e, sim, leis outras, estabelecidas pelo próprio homem e por ele mesmo sempre, de tempos em tempos, alteradas ou violadas. É exatamente isso o que há de mais estranho: aqueles poucos homens que desrespeitam as leis arbitrárias para seguirem suas próprias leis naturais - são na maioria das vezes condenados e apedrejados para, depois, serem eles, precisamente eles, para sempre homenageados como heróis e libertadores!

(...) Pois bem. "Trágico" outra coisa não designa senão o destino do herói. Exatamente porque o herói se obstina em romper com as leis com que tentam sufocá-lo. E prossegue tenaz, em busca de sua própria estrela.

Por isso e somente por isso, amplia-se e abre-se sempre mais em direção a toda a humanidade a vivência do "sentido próprio" de cada coisa. O herói trágico, o homem obstinado, está sempre a apontar aos milhões de homens "submissos", aos covardes, que a desobediência a regulamentos humanos não é mero capricho arbitrário. É a fidelidade a uma lei mais sublime e sagrada. Noutros termos: o sentido gregário exige de cada um acomodação e submissão. Mas não reserva a humanidade suas honras mais elevadas aos acomodados, aos tolerantes, aos covardes, aos dóceis. E, sim, precisamente aos rebeldes, aos obstinados, aos heróis!

(...) "Egoísmo" - dirão alguns. Só que esse egoísmo é de todo diverso do egoísmo do homem ávido de dinheiro ou fascinado pelas seduções do poder.

A pessoa possuída pela obstinação que aqui advogo não procura o dinheiro nem o poder. Não os menospreza, como o faz o fanfarrão e o altruísta hipócrita e conformado.

Ao contrário. O ouro é de pouca monta para a pessoa que se descobriu e se transformou num verdadeiro obstinado, o ouro, e também o poder, e todas as coisas em cuja busca os homens se batem e acabam por se matar. Uma só coisa, e esta elevadíssima, é a sua meta verdadeira: - é a força misteriosa que nele habita e o faz viver e o ajuda a crescer interiormente. Não pode essa força ser conservada, aumentada ou aprofundada por meio do dinheiro ou coisas semellhantes. Dinheiro e poder são invenções da falta de confiança entre os homens. Quem, no seu íntimo, não confia na força da vida; quem não a possui, necessita buscar um substituto - por exemplo, o dinheiro - para se compensar dessa carência.

Para quem confia em si próprio, para quem outra coisa não deseja senão viver pura e simplesmente o seu destino e deixá-lo seguir seu caminho, os outros sucedâneos, demasiado apreciados e de todos tão estimados, caem a um nível inferior de meros meios que é agradável ter e usar, sem que sejam, entretanto, de decisiva importância."
Hermann Hesse

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Postado por Heberti Rodrigo
31/3/2016 às 08h24

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