O Equilibrista

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Segunda-feira, 28/3/2016
O Equilibrista
Heberti Rodrigo
 
Contagem Regressiva


The Masses, Modern Times, Charles Chaplin.

"A única maneira de fazer um trabalho extraordinário é amares aquilo que fazes. Se ainda não o encontraste, continua a procurar. Não te acomodes. Tal como com os assuntos do coração, tu saberás quando o encontrar." Steve Jobs


Na entrada, o slogan da agência de empregos:

“O nosso trabalho é encaminhá-lo na vida”

– O próximo! Número 307, por favor!

No fundo da sala, repercute o grito impaciente e maquinal do recrutador que, à espera do portador da senha de número 307, observa, ansioso, o movimento dos ponteiros do relógio de ponto fixado às suas costas.

Um homem aparentando pouco mais de cinquenta anos e ar resoluto ergue-se, cedendo lugar à jovem com a qual entabulava uma jovial conversa. Ela havia desembarcado no Rio há um mês e tencionava conseguir um emprego que lhe permitisse custear os estudos na Escola de Música. Sonhava tornar-se violinista.

– Pois bem, meu senhor, sente-se, por favor, e me dê sua carteira de trabalho, identidade e comprovante de residência. Preciso dos seus dados para cadastrá-lo no sistema e dar andamento ao processo. Apesar da crise, como hoje é sexta-feira o movimento é menor. É possível que até o fim do dia consiga agendar uma entrevista e, quem sabe, encontrar uma instituição em que o senhor possa ser encaixado. O jovem recrutador proferiu estas palavras com o ar de superioridade de quem sente ter o destino dos homens em suas mãos.

Enquanto entregava os documentos, o homem adiantou-se a dar informações, pois, há alguns meses, sentia-se premido pela sensação de que não tinha tempo a perder:

– Meu nome é Manuel. Fui coveiro durante mais de vinte anos. Enterrei centenas de homens, mulheres e crianças. Quero recomeçar. Não suportava mais sentir-me como uma espécie de ponto final de outras vidas e, o que é pior, sentir o mesmo em relação à minha própria. A razão de estar aqui é que procuro um trabalho que se encaixe a mim, e não apenas eu a ele.

O recrutador que, habitualmente, mantinha os olhos ora na carteira de trabalho ora no formulário de quem atendia, sobressaltou-se com estas palavras. Pela primeira vez, olhou nos olhos de quem estava sentado diante dele. Estava acostumado a trabalhar como se desse esmolas, a lidar com pessoas menos exigentes e mais submissas; destas que estão dispostas a abrir mão de tudo apenas para satisfazerem seus caprichos mais vulgares sob o conveniente disfarçe de que têm de pagar suas contas. Logo que se restabeleceu da surpresa de se deparar com um homem invulgar, sorriu e disse:

– Aqui não tratamos disso, meu senhor. Não realizamos testes vocacionais. Nossa função é encaminhar as pessoas ao mercado de trabalho, auxíliá-las a escapar da miséria. Não vê televisão ou lê os jornais? O país está em crise. O povo passa privações, e quem assim se encontra não tem o direito de escolher, mas o dever de agradecer a Deus por ter tido uma chance de sobreviver seja lá como for.

– Creio, meu filho, a julgar pela sua aparência, que o que possui de idade tenho eu de experiência nisso que chama de mercado de trabalho. Como disse há pouco, não mais espero ser encaixado, nem saber o que os jornais e a televisão têm a me informar sobre a quantas anda esse tal mercado. Estou cansado dessa mesmice. Conheço bem os argumentos de toda essa gente, ou pensa que sonhei ser coveiro? Se os conheço tão bem é porque foram eles que me aprisionaram na miséria até o dia em que decidi deixar meu último emprego. Sei o que as pessoas miseráveis pensam. Pensam os mesmos pensamentos que as impedem de reconhecer e se revoltar com a própria miséria. O que todos tinham a me dizer, de certo modo, foi-me útil para suportar os empregos que tive enquanto pesava sobre meus ombros a responsabilidade de criar meus filhos. Foi-me, enfim, útil para sobreviver, como bem disse há pouco, enquanto os educava. Mas agora, estando meus filhos já criados, e não sentindo ter mais preocupações e deveres em relação a quem quer que seja, estou decidido a fazer o que sinto necessidade: atrever-me a viver o que devo a mim mesmo antes que seja tarde; aquilo que se encaixe a mim tão impecavelmente que, quando alguém que me conhece observar, dirá: “Este é o Manuel, não há como confundir!”. Quando se trabalha perto da morte durante tanto tempo, meu jovem, a gente acaba por perceber que aquilo que nos acostumamos a chamar de vida não é vida. É antes, miséria, banalidade e indigência.

– Mas como não é vida, meu senhor? Está sendo ingrato. – atalhou o recrutador - O que mais pode um homem esperar neste país? É um vencedor! Veja estas pessoas aqui na fila, estes jovens cheios de esperança, e os outros já não tão jovens e que desejam um emprego para poderem dar o mínimo às suas famílias, para terem o que o senhor conquistou e agora desdenha.

– Não desdenho. Acontece que agora quero mais, ou será que acha que estou velho? Quero iniciar uma nova página em minha vida. Não agüento mais essa torturante pasmaceira que vejo à minha volta todos os dias. Não me reconheço nela. Sinto reavivarem as expectativas de minha juventude, época em que experimentei aquela sensação de ter diante de mim todas as possibilidades do mundo, tudo o que, movido pelas circunstâncias, pouco a pouco fui deixando para depois sem me dar conta do que perdia agindo assim. Hoje sei que cada dia nessa vida que vivia era uma pá de terra que jogava sobre mim mesmo. Obtinha do meu trabalho o suficiente para que no dia seguinte pudesse continuar me enterrando vivo. Era o que sentia. Como poderia continuar com aquele emprego?

– Sei que no fundo me compreende, meu jovem – continuou. O recrutador que, sem aperceber-se, havia abandonado a caneta e o formulário ouvia-o atentamente. Estou a te observar desde que adentrei nesta repartição e notei que, a todo instante, olha para o relógio de ponto como se quisesse fugir daqui. Deve ter um sonho, mas como foi educado a sufocá-lo para se tornar o que se tornou, por certo, apenas se permite sonhá-lo nos dias de folga. O que quer? Ser tornar músico, escritor, piloto de avião? Deixa pra lá, a mim não importa o que seja. De qualquer maneira, lute por ele antes que se torne comida para vermes e bactérias! Aconselho-o a correr atrás de seu sonho. Não o adie mais, não se resigne ao que o mundo lhe tenta persuadir. Ouça este velho que várias noites dormiu entre os mortos. Sei o que eles diriam aos vivos: “Vá, ouse, arrisque-se!”.

O recrutador tentou retormar seu trabalho. Empunhou novamente a caneta e continuou, como de hábito, com as perguntas rotineiras:

– Vejo aqui em sua carteira que mais um ano e se aposentaria. Por que foi demitido?

– Não fui demitido, eu abandonei o trabalho. Já lhe disse que não o suportava mais.

– E posso saber por que deixou seu emprego se, em meio a essa crise, há tantos que suplicam a Deus por trabalho?

– Ah, meu filho, deus não existe mais. Eu mesmo o enterrei. Somos somente eu e você e o mundo.

O jovem sorriu, mas muito seriamente, e antes que tentasse dizer algo, Manuel cortou-lhe:

– Respondendo mais uma vez à sua pergunta e repetindo o que lhe disse: se ainda há pouco estava enterrando minha vida por causa desse trabalho, nada mais justo foi ter feito o mesmo com ele agora que preciso do tempo que lhe dedicava para recomeçar minha vida.

A fisionomia do recrutador começava a transparecer, além de perplexidade, irritação. Ao notar isso, Manuel avançou:

– Você se choca com tudo isso, meu filho? Vou te dizer algo que descobri para que se sinta ainda mais chocado: alguns homens deixam de viver antes mesmo de terem começado e, a julgar pela sua reação diante de tudo que lhe digo, parece-me que você é um deles e, no íntimo, apesar de suas palavras, vejo que não consegue convencer-se do contrário.

Contrariado com o que acabara de ouvir e sem saber como agir, tão surpreso que estava diante daquela inusitada situação, o recrutador, agora num tom mais severo, solicitou :

– Por favor, meu senhor, mesmo que compreendesse o que sente, não posso te ajudar. Não estou aqui para divagar sobre a vida! Deixe-me dar continuidade ao meu trabalho, pois se o patrão me vê discorrendo sobre estes assuntos, decerto me punirá, descontando no meu contracheque o tempo perdido e, ainda que seja descontado em um minuto, isso me trará mais dificuldades para fechar o mês. Já me são suficientes os juros das prestações do carro em atraso para tirar-me o sono. Não posso perder mais dinheiro.

Manuel se levantou, meneou a cabeça em sinal de agradecimento ao recrutador por este, de um modo impensado, tê-lo mostrado que estava no lugar errado. Com aquela breve conversa, certificou-se daquilo que, desde que abandonou o ofício de coveiro, pressentia: “Se quiser descobrir como devo viver de agora em diante, não é agindo como esse tipo de gente que encontrarei o caminho”. Antes de sair, deu um beijo na testa da jovem com a qual conversava minutos antes, aconselhando-a:

― Não desista da música se lhe faz feliz, minha filha! Ainda que o mundo teime em fazê-la acreditar que não tem o direito de persistir, persista! Sua felicidade depende menos do que dizem as pessoas à sua volta do que aquilo que consegue ouvir de si mesma. Dito isso, olhou afetuosamente para a jovem que, inesperadamente, abraçou-o com o semblante repleto de lágrimas diante dos olhares curiosos e atônitos dos que ali estavam (Como poderiam não se espantar com quem ousa dar a si mesmo uma chance?). Depois que se separaram, a jovem acompanhou Manuel com o olhar, e ele seguiu seu caminho sem olhar para trás. Ambos não se sentiam sozinhos. Sabiam que eram minoria, mas havia outros tantos que pensavam como eles. Quando a porta se fechou atrás de Manuel, ele ajeitou o chapéu, tornou a ler o slogan na entrada e se perguntou: “Mas o que será que estes infelizes entendem por encaminhar na vida?”.

Enquanto Manuel deixava a agência, o recrutador continuava sentado no mesmo lugar de todas as horas. Evidenciava profundos sinais de perturbação. Percebendo-se, intimamente, contrariado, pousou, novamente, seus olhos fatigados no relógio de ponto. Queria, mais do que nunca, abandonar aquele lugar. Entrementes, acreditava que não podia fazê-lo. Acreditava que as dívidas impediam-no. O medo da miséria o impedia. Nada, então, poderia mudar sem antes amealhar uma fortuna. “Depois, sim, depois, será diferente!” devaneava. Até lá, até que tudo se tornasse diferente, continuaria ali, encaminhando pessoas enquanto sentia que sua própria vida se desencaminhava.

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Postado por Heberti Rodrigo
28/3/2016 às 23h17

 
O que quero deixar ao meu filho


First Steps, Van Gogh. Fonte:http://www.yeskey.com/

"A felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância. É por isso que a riqueza contribui em tão pequena medida para ela. O dinheiro não é objecto de um desejo infantil."
Sigmund Freud


Em minha primeira participação no Writers Ink, na Alemanha, havia seis escritores além de mim, da Namorada e do Theo, meu filho, na época com um ano e quatro meses. O grupo literário é constituído por um número maior de pessoas, mas apenas estas seis participavam do encontro naquele dia. O Theo ficou o tempo inteiro brincando na mesma sala em que estávamos, mas parecia entender o que acontecia pois, durante a leitura dos textos, permaneceu em silêncio. Quando fomos embora, a Namorada contou-me que falou para ele o seguinte: "Fica quietinho agora que isso é importante para o papai".

Em vários momentos, eu estava sério, uma seriedade que ao olhar para ele ganhava contornos diferentes, mais ternos. Tudo aquilo era importante para mim, mas me dei conta, também, de que era uma brincadeira. Brincar é algo sério para uma criança. É quando ela exercita a própria imaginação e outros aspectos de sua personalidade. É brincando que, muitas vezes, uma criança encontra sua vocação. Por isso, penso que brincar nem sempre é brincadeira como parece entender toda a gente quando começa a se preocupar basicamente com o futuro salário e a colocação profissional de seus filhos, ocupando desde cedo o tempo das crianças com aulas disso e daquilo, desprezando aquele tempo ocioso, imprescindível ao desenvolvimento da capacidade de sonhar e brincar, em que se abre a possibilidade do encontro de um ser humano com sua vocação.

Quando comecei a escrever, um filho não estava no meu horizonte. Também não vou dizer que tê-lo não mudou nada. Mudou sim. Para começar, o tempo que tenho para dedicar-me à escrita se tornou bem menor. Creio que continuaria escrevendo mesmo que não tivesse tido um filho, mas depois que o Theo nasceu passei a desejar também que ele veja o pai correndo atrás do que acredita. Quero que meu filho, quando encontrar o que deseja fazer da vida, corra atrás. Esse é o legado que pretendo deixar a ele. É também a maneira que desejo que se lembre do pai. Estimularei o Theo a encontrar sua vocação e, quando encontrá-la, a não desistir dela a despeito do que todos à sua volta venham a dizer. Não sei se um dia ganharei dinheiro com o que escrevo, mas tenho para mim que o que a escrita me propicia é algo que desejo que ele encontre no que vier a fazer no futuro. Como é de se esperar de um pai que ama seu filho, quero que o Theo seja feliz, mas quando ele assim não se sentir, espero que jamais deixe de lutar para sê-lo e, para ser capaz de lutar, é preciso que se tenha um sonho, uma vocação, e se agarre a eles. Há momentos em que parece que a vida em si mesma não se justifica e, nestas horas, não importa o quanto tenhamos de dinheiro, sem um sonho ou uma vocação, ela infelizmente se revelará pobre, injustificável e sem sentido.

Contato: [email protected]

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Postado por Heberti Rodrigo
26/3/2016 às 11h39

 
A Filosofia do Velho

"Autodidata é um ignorante por conta própria", Mário Quintana


O Velho, embora velho e sem diplomas, foi além do nível ordinário. Conquanto nos cursos oficiais não tenha ido além do segundo grau, encontra-se à frente de muitos mestres e doutores. Embora velho e não reconhecido por um canudo envolto em folhas de flandres, é também um filósofo, e sua filosofia vai muito além de uma simples tese acadêmica.

O Velho inquieta-se com a abordagem do problema do ser. Para ser mais preciso, não se preocupa com a questão do ser em geral. Não é inclinado a esse tipo de masturbação acadêmica que, como ele próprio diz, é filosofar em terceira pessoa. O Velho não filosofa em terceira pessoa porque para ele filosofar em terceira pessoa é uma forma de alienar-se, um vulgar entretenimento; significa distanciar a filosofia de um homem de sua própria vida. "Se não é capaz de gozar com seus próprios pensamentos, não se masturbe com os de terceiros", diz aos pedantes. No entendimento do Velho, filosofar em terceira pessoa é o mesmo que escrever sobre o que não experimentou por si mesmo, ou seja, literatura de tonto.

Como ia dizendo, o Velho preocupa-se, sobretudo, com a questão do seu ser. Sim, o Velho, além de velho, é egocêntrico, como lhe diz a Menina. O Velho pensa no outro na medida em que pensa em si mesmo, filosofa na medida em que a filosofia pode abrir-lhe uma via de acesso para si próprio. Interpretar por si mesmo o seu modo de ser é o que o Velho considera como o seu trabalho. O Velho não entende o trabalho apenas como um meio de ganhar a vida, como se passa na mente de toda a gente ordinária. Isso, ao Velho, é acomodar-se ao mundo tal como lhe apresentaram, fazendo a concessão de aceitar o que lhe ofereceram, e ele não está disposto a fazer tal concessão. O Velho quer ir além, contestando, criando. Acredita que concessões são o que fazem as pessoas ordinárias, os escravos modernos, para os quais o trabalho é meramente a outra face do consumo. A vida como mercadoria. Vende-se aqui, compra-se acolá.

O Velho quer vencer sem concessões e, para isso, sabe que bravatas de nada adiantam. Sabe que precisa desenvolver a musculatura de seu cérebro. O Velho, embora velho, não quer ter uma mente oca e atrofiada como um ovário seco. O Velho não quer tomar como seu o filho de terceiros: quer criar os seus próprios. Por isso, exercita-se e se sujeita aos sacrifícios e às dores de quem quer liberdade para desenvolver-se. Por isso, filosofa. Por isso, escreve. Sim, o Velho poderia ter se matriculado numa academia, mas não quer fazer os mesmos exercícios de toda a gente que pensa e escreve sob a orientação de doutos. Quer liberdade para pensar. Não quer estar preso a esta ou àquela escola. O Velho não quer ser um acadêmico. Não quer fingir que se exercita. Não quer fingir que pensa. Que se entenda de uma vez por todas: o Velho não quer ser um doutor em filosofia. O que quer é desenvolver um pensamento próprio. Por isso, não se contenta com a filosofia de que viver resume-se a “nunca questionar ou desobedecer”. Foi o que tentaram lhe inculcar a vida inteira, mas isso o Velho considera uma degeneração do problema essencial da filosofia que torna o conceito do ser vazio e trivial como a cabeça das pessoas que aderem a essa maneira de viver. Jamais conseguiu aceitar isso e, por não ter aceito essa tosca resposta ao que seria a questão fundamental de sua vida, se mantém distante das academias e treina por conta própria.

Longe das academias, precisou descobrir por onde começar, e como nada tinha a analisar senão sua própria vida, colocou-se a si mesmo como ponto de partida de suas reflexões. Pensa que o caminho que o levará a si mesmo, ao seu ser, evidentemente terá de passar pelo homem que hoje é, como também pelo o que foi. Quando escreve, o Velho persegue a si mesmo ao mesmo tempo em que traça seu próprio caminho. Vive, então, a interrogar a si próprio e a quem convive com ele, como é o caso da Menina. O Velho, embora velho, continua a fazer aquelas perguntas que as crianças fazem e tanto desconcertam e incomodam os adultos. Suas dúvidas e perguntas incomodam a Menina a ponto de em alguns momentos ela dizer que envenenam sua vida. É possível que seja verdade. Se o Velho não se questionasse tanto, não criaria tantos problemas para si próprio. Não teria dificuldades em aderir à filosofia do “nunca questionar ou desobedecer” e seria feliz na medida em que são felizes as pessoas que possuem cérebros atrofiados e caducos e que, justamente por isso, não tardam a encontrar uma ocupação irrelevante na vida e se darem por satisfeitas com ela, coisa que o Velho, por ser como é, até hoje não conseguiu.

Seja como for, o que o Velho, embora velho, pode fazer se sua mente é como a de uma criança e está em pleno processo de desenvolvimento? Sim, ele não tem mais idade para ser um menino, mas seu cérebro é ainda o de um menino. Talvez por isso faça tantas perguntas inconvenientes. Talvez por isso seja tão egocêntrico. Talvez por isso seus gestos e palavras sejam permeados de uma espontaneidade inoportuna. Talvez, por isso, e, sobretudo por isso, o Velho tenha uma dificuldade incomum em lidar com o real e precise da Menina para ajudá-lo.

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Postado por Heberti Rodrigo
12/3/2016 às 18h14

 
O Velho Inválido que cruzará o Atlântico

Não é no estado de harmonia de um organismo que nos deparamos com as peculiaridades de suas partes constituintes. É quando algo não vai conforme o esperado, nos conflitos, nas manifestações de dor, na exposição a elementos alérgenos que nos apercebemos dos limites de sensibilidade, das potencialidades e das fragilidades de nossos corpos que antes ignorávamos. É quando um órgão não funciona conforme o esperado que melhor compreendemos sua função e importância. De modo análogo, mais facilmente nos damos conta de nossa individualidade, do que há de singular em nossas vidas e destinos, quando nos sentimos em desarmonia com o ambiente que nos circunda. Isso, o Velho, que viveu uma infância ditosa entre os seus, não sabia; isso, o Velho, embora velho, só viria a descobrir anos mais tarde ao ser diagnosticado como inválido pelos doutores.

Subir três degraus de cinco foi o melhor que o Velho pôde fazer. Se bem que não fosse o suficiente, mais ele não pôde. Algo no Velho não ia como era de se esperar. Ele não conseguia embarcar. Não conseguia ir além daqueles três degraus e não soube explicar a si mesmo as causas do malogro. Pensava poder embarcar como seus companheiros, mas não pôde. Quis, então, entender por que, sendo também um homem capaz, não conseguiu seguir com eles. O Velho quis uma justificativa, pois uma justificativa, se não resolvesse seu problema, ao menos poderia dar-lhe uma chance de descobrir contra o quê estava a opor-se. O Velho recusou-se a aceitar o diagnóstico de invalidez que lhe imputaram os doutos. O Velho, embora velho, obstinou-se em encontrar, então, a sua própria justificativa, e em busca dela mergulhou em si mesmo; fechou-se em si mesmo como uma ostra, e como uma ostra ferida começou a produzir suas próprias perolas: sua literatura.

O Velho sentia que algo poderoso em seu íntimo o detinha no embarque, mas não sabia dizer em que consistia este algo. Sentia-se especial por haver em si essa coisa poderosa e inominável que o diferenciava, mas sentia também que por conta disso, todos lhe veriam a partir de então como um estranho inválido ou coisa pior. Ele que sempre fora tido como um homem de valor passou a ser visto ora como um fracassado, ora como um vagabundo que vive à custa de sua mulher. E isso tudo aconteceu justamente no momento em que começava a entrever algo de extraordinário em sua vida e futuro. O Velho não sabia o que pensar de si mesmo e de sua estranha situação. Sentia-se angustiado e enraivecido como se, de repente, desaparecesse alguém que amamos sem deixar notícias. Vivia, então, o desespero de não conseguir prosseguir sua vida por desconhecer se esse alguém estava vivo ou morto. O Velho precisava de respostas, precisava saber por que ele era diferente para que pudesse dar um rumo a si mesmo; precisava encontrar sua própria explicação, pois, como disse, recusou-se a aceitar o diagnóstico de invalidez outorgado pelos doutores. O Velho precisava afastar os fantasmas, precisava enterrar os mortos. Não poderia prosseguir sem compreender o que lhe acontecera. Sentia necessidade de entender a si próprio, pois sem isso, continuaria indefeso. Sem conseguir compreender sua vida, teria de se submeter a viver à base de remédios e de sessões de análise com os doutos. Jamais se resignaria a essa idéia. Sem compreender a si próprio, o Velho teria de se sujeitar a ter sua vida controlada por eles, e isso para ele é pior do que a morte, é uma vida não vivida. O Velho, embora velho e inválido, não aceita rédeas. O Velho, embora velho e angustiado, não aceita receitas de como viver. O Velho, embora velho e inválido, vai erguer-se e caminhar por conta própria, a despeito de todos os prognósticos contrários.

Há momentos em que sente dores terríveis, mas compreendeu que são essas mesmas dores que o ajudarão a erguer-se e caminhar sem o auxílio de muletas. Sem dor, o Velho não se erguerá. Sem dor, não produz suas pérolas. Sem dor, não há a grande literatura. Se a despeito do incômodo das dores e demais dificuldades não faz uso de coletivos para avançar, é porque o Velho, embora velho e inválido, não abre mão de caminhar com suas próprias pernas ao invés de servir-se da comodidade e agilidade oferecida pelos coletivos aos que preferem levar suas vidas segundo as receitas prescritas pelos doutos. O Velho não permitirá que sua musculatura atrofie. Também não faz uso de analgésicos porque não consente que embruteçam sua sensibilidade. Não lhe importa o quanto isso exija de si mesmo, não lhe importa o quanto isso lhe tome de tempo, o Velho não pode viver em coletivos, o Velho não pode viver entorpecido.

O Velho garante que se reerguerá. Provará ser capaz de fazer o que os doutores disseram que ele não seria. O Velho, embora velho, irá longe. O Velho, embora velho e inválido, atravessará por si mesmo um oceano de dificuldades. O Velho nasceu para se superar. Nasceu para produzir suas valiosas pérolas. O Velho não nasceu para viver como toda a gente do povo. Não nasceu para viver como um douto, exibindo-se com bijuterias como se fossem pérolas autênticas. Por isso, a todos aqueles que não são capazes de discernir o verdadeiro do falso, o Velho assemelha-se a um pobre inválido, mas não nos deixemos enganar: se bem que em alguns momentos se sinta inválido, não o é, e aquilo que o impediu de embarcar num coletivo, o cerne de sua aparente pobreza e invalidez, a dizer, sua vocação, provará o que estou a lhes afirmar. O Velho, embora velho e inválido, não nasceu para viver entre aposentados e inválidos. Apesar de ter nascido num país de resignados, jamais se resignou. O Velho teima em resistir. O Velho teima em persistir. Talvez tenha nascido aqui para mostrar a nós, brasileiros, que um velho, embora brasileiro, pobre, sem títulos e inválido, pode cruzar o Atlântico. O Velho nasceu para viver entre reis e rainhas, e é para lá que toda essa revolta e teimosia o encaminham.

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Postado por Heberti Rodrigo
11/3/2016 às 18h39

 
Preto ou Vermelho


Fonte:http://roletatuga.blogs.sapo.pt/tag/roleta


Confio em meu destino. Por esse motivo, nunca tive medo de me expor ao enviar meus textos, muitas vezes repletos de erros. Sou animado por um violento impulso interior que me torna capaz de suportar, sem curvar os ombros, todo o peso da responsabilidade de educar-me sozinho. Não digo que seja fácil ou que não tenha medo. Há momentos em que sou acometido por uma terrível angústia, a ponto de chegar a me desesperar por não saber o quê fazer, por sentir imensas dificuldades em transpor minhas dúvidas e limitações. Entretanto, mesmo nestes instantes de incerteza, em que não raro a tensão incontida se desfaz em lágrimas, jamais desanimei, jamais levei a sério os amigos que me aconselhavam a retornar à quietude do caminho das universidades ou dos concursos públicos. Isso não é para mim. Eu obedeço a outro impulso. Como dizia Fernando Pessoa, “quero tornar a minha vida grande mesmo que para isso eu tenha que perdê-la”. Quem se atreve a deixar de ser um mero espectador e se aproxima da roleta para arriscar suas fichas, sabe que pode sair sem nada. Eu tive a audácia, ou estupidez, como alguns dizem, de seguir uma intuição e apostar tudo. Compreendo e aceito os riscos e dificuldades que enfrento no dia a dia por conta dessa aposta temerária. Eles são inerentes aos sentimentos de vitalidade e força que tenciono comunicar em meus escritos. Por isso, nem o cansaço, nem o desprezo, nem as críticas alheias me abatem. Por isso, recusei categoricamente a tutela intelectual de mestres ou mesmo de pistolões que me oferecessem um emprego numa instituição. Eu, meus amigos, diferente desta multidão de covardes e acomodados que abarrota as universidades e as repartições públicas, desta corja de doutores que vivem de trapaças, se aproximando dos autênticos jogadores para se apropriarem do ganho alheio, jogo com as minhas fichas e por conta própria.

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Postado por Heberti Rodrigo
11/3/2016 às 08h42

 
The Wall


Fonte:https://notasprovisorias.wordpress.com


Quando o Estado apregoa oferecer um caminho ao homem para se educar, desenvolver suas potencialidades cognitivas, atua como se lhe concedesse um incontestável favor, a mais distinta das dádivas. Entretanto, em tempo algum menciona que ao submetê-lo aos seus estereotipados métodos educacionais está a subtrair deste homem outras inúmeras possibilidades. Dentre elas, experimentar instruir-se por si mesmo, sentir em si o embrião de idéias próprias, ensaiá-las e aprimorá-las ― tomar para si a responsabilidade sobre suas rédeas ― como fazem os autodidatas, alguns dos quais, anos mais tarde, após tê-los desprezado, condenado e ridicularizado, este mesmo Estado os enaltece como assombrosos gênios e prostra-se ante sua originalidade. O que há de comum entre os gênios que os distingue dos demais? Como identificar o surgimento de uma mente extraordinária? Imagine que cubramos com venda os olhos de um grupo de homens e os encaminhemos a uma floresta. Ao nos avizinharmos do cerne desta, tiremo-las e os abandonemos à própria sorte. Reconheceremos o gênio naquele que, arrebatado por uma extraordinária vontade e norteado por uma agudíssima intuição, há de se aventurar a explorar uma possibilidade nova. Sofrerá admoestações do restante do grupo, mas estas não lhe desanimarão. Pelo contrário, o que alquebra um temperamento fraco age num impetuoso como um poderoso aguilhão: aferra-lhe a obstinação. Diante do desconhecido, o gênio dedicará mais atenção ao caminho. Seus passos serão mais cautelosos. Com o transcorrer dos dias e das noites, a solidão e a constante possibilidade de se perder tornarão seu olhar mais penetrante, e seus ouvidos hão de auscultar com mais acuidade o que sucede consigo e ao seu redor. Desenvolverá, anormalmente, seus instintos e a confiança em sua própria força. Sua inteligência hipertrofiará diante do incógnito. Os demais, os desalentados e poltrões, se manterão unidos. Escolherão, segundo o torpor intelectual e covardia que os une, repisar trilhas já tão gastas que o caminhar não lhes proporcionará um aprimoramento, antes uma consolidação de seus juízos banais. Ao enveredarem nesta direção, cegos de confiança na educação convencional, por certo estarão resguardados das brutais angústias e adversidades que constantemente acometem o homem de gênio e são responsáveis pelo seu desenvolvimento, entretanto, nenhum outro destino suas mentes alcançarão senão o senso comum e a moral do estereotipado homem-massa. Numa palavra, a mediocridade.

Contato: [email protected]

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Postado por Heberti Rodrigo
6/3/2016 à 01h16

 
Por que viver sobre as cordas e não no chão?


Dom Quixote, Pablo Picasso

"Eu tinha 13 anos, e sofria porque não sabia que rumo tomar na vida. Nada ainda me revelara o fundo da minha sensibilidade[...]Resolvi, então, me submeter a uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte. Achava que uma forte emoção, que me aproximasse violentamente do perigo, me daria a decifração definitiva da minha personalidade. E veja o que fiz. Nossa casa ficava próxima da educada estação da Barra Funda. Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura." Anita Malfatti


E para O Equilibrista...

Se a isto que as pessoas fazem chama-se viver, então não quer viver. Talvez por isso seja demasiado indolente para procurar um emprego normal. Jamais desejou essa coisa a que chamam de “vida”. Pouco lhe importa se o mundo vai contradizê-lo, mas por uma espécie de princípio, é contra essa “vida”. Escrever é sua reação a ela. Escreve para não ter de se submeter. Ao contrário do que se passa com os outros, a própria necessidade de dinheiro é mais um estímulo a escrever do que se sujeitar a essa coisa humilhante que é ser obrigado a fazer o que não vê sentido. A “vida” apenas lhe importa na medida em que o estimula a escrever, a transformar em palavras tudo aquilo que pensa e sente. Para ele, por si mesma ela não se justifica. Em si mesma não tem valor. Somos nós que lho conferimos. Escreve para inventar uma outra vida mais rica a partir desta que tem. Escreve para viver essa outra vida - a sua própria vida -, uma vida que sente ergue-lo acima do comum sempre que a transforma em palavras. Por isso, nada mais lhe interessa senão o poder de expressar-se, de criar e recriar-se a cada texto. A busca desesperada pela sua própria linguagem é o que confere valor à sua vida. É neste sentido que seu “eu” se dirige mesmo quando suas atividades cotidianas parecem desviar-se desta meta. O receio de passar fome atormenta-o constantemente, mas sente uma angústia terrivelmente maior de vir a morrer sem conseguir expressar tudo o que se passa consigo desde menino. Esta é a pior das misérias a um homem como ele – o autêntico fracasso. O que o difere dos outros creio que seja o fato de que não sente necessidade de “viver a vida”, como eles próprios dizem; o que sente, de fato, é necessidade de enriquecê-la e expressá-la. Atingir o poder de expressão para tal exige um esforço extraordinário de sua parte, pois tem de lutar contra o seu medo de fracassar e suas próprias limitações. Viver é um contínuo desafio para alguém como ele, e o que o move nesta sua aventura não é apenas um desejo fútil de tornar-se célebre ou rico, mas, sobretudo, uma questão de consciência, uma questão de princípio.

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Postado por Heberti Rodrigo
5/3/2016 às 08h25

 
O Funeral - O Equilibrista


Sorrow,Vincent Van Gogh. Fonte:http://www.myartprints.co.uk/


Quando pousaram o caixão do menino, ela soltou um grito lancinante, e seus soluços abafaram o eco das orações fúnebres. Comovidos, todos se calaram. Ela perdera tudo. Ela não era mais nada, e, no entanto, aquele nada estava ali, diante de nós, a revelar-nos, com uma brutal lucidez , que ninguém está seguro. Talvez na esperança de afastarmos de nossas vistas esta terrível realidade, talvez simplesmente porque aquele seria apenas mais um dentre inúmeros outros sepultamentos naquela manhã, minha impressão era de que quanto mais desesperadamente os coveiros jogavam terra na cova, mais o senso do definitivo abandonava-nos a todos. Jamais fui capaz de esquecer a cor e o cheiro daquela terra grossa, cheia de cascalho e pedras que repicavam ao cair no caixão branco do menino. O padre insistia em retomar as orações, mas a multidão hesitava em acompanhá-lo. O céu novamente ficara nublado e recomeçou a chover. A seguir, todos nos separamos e cada qual seguiu seu caminho, perplexo, sem que palavra alguma fosse pronunciada, enquanto aquela mulher, fulminada pela devastadora realidade à qual a inundação a arrastara, permanecia ajoelhada no barro, debatendo-se com o luto e a desesperança. Dias mais tarde, ao evocar as lembranças daquele funeral, lembrei-me que na saída do cemitério reparara que o relógio da catedral havia parado, e os ponteiros indicavam o momento fatídico em que a chuva surpreendera a cidade.  

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Postado por Heberti Rodrigo
4/3/2016 às 23h46

 
Não Prossiga! Só Para Equilibristas.


Migrations, Ursula Abresch

"Cada pessoa é um abismo. Dá vertigem olhar dentro delas." Sigmund Freud

E porque desde tempos imemoriais os homens se defrontam com placas com a inscrição “Não Prossiga”, inúmeros são os que, de fato, não o fazem. Se agem desta maneira não é porque se possa distinguir algum iminente perigo mais à frente. Não, não é este tipo de coisa que detém quase toda a gente que com estas placas se depara uma vez que nada de efetivo se pode avistar adiante que justifique uma ameaça real. Na verdade, até se poderia dizer que o mundo acaba onde tais advertências foram assentadas tão vertiginosa é a sensação de liberdade e vazio suscitada em qualquer um que ouse delas se avizinhar. É, pois, notório que coisa alguma de comunicável se possa discernir para além das mesmas que explique tais proibições – mas quanto não se é capaz de pressentir! Ainda assim todos foram se habituando a se curvar perante as mesmas graças ao temor que instintivamente nos inspira aquilo que a razão humana não pode impetrar. Muitos justificam sua resignação com crença em supostos predicados divinos de tais inscrições. Mesmo aqueles que a esta espécie de explicação não aderiram, por considerá-la misticismo de gente ignorante, também jamais foi necessário apresentar uma justificativa para que igualmente se submetessem. Aos olhos destes, elas funcionam “na prática”. Crêem que tanto asseguram como tornam mais simples a vida em sociedade, o que por si só lhes serve como uma positiva justificava para cultuá-las. Assim, de um jeito ou de outro, a esmagadora maioria dos homens foi se mostrando cordata a respeitar e defender tais fronteiras e, conquanto ao longo dos séculos este comportamento tenha se perpetuado, seria injusto não dizer que esta incondicional subordinação causa, a todos, certo descontentamento. Esse fato é inegável, pois toda a gente não faz segredo disso ao lamentar que tal estado de coisas suscita-lhes, em algumas ocasiões, a impressão de estarem a afogar suas vidas num mar de monotonia e enfado. Entretanto, se de um lado isso ocorre, de outro, a sensação de segurança e comodidade que lhes é sugerida parece compensá-los de tal desagrado. Por isso, insistem em respeitá-las e transmitir aos seus descendentes a crença de que o mundo resume-se à superfície delimitada por tais placas. De tempos em tempos, todavia, surge um e outro que, ao se deparar com tais limites, manifesta o ímpeto de desobedecer-lhes seguindo adiante, precipitando-se vertiginosamente num abismo de dúvidas, êxtases e liberdade em busca de uma resposta própria para a razão de ser de tudo isso. Toda vez que um destes homens vem ao mundo ele é condenado pela maioria. O crime? Alargar a fronteira do real, trilhando um caminho original por meio do qual o rico e inusitado universo de idéias e imagens por ele intuído é atingindo e revelado.

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Postado por Heberti Rodrigo
4/3/2016 às 19h07

 
O País do Carnaval - O Equilibrista




Como de costume, ao se posicionar em um canto do balcão, à espera de um café expresso, um capitão reformado observa os “paisanos”, como ele próprio se refere aos funcionários públicos, pequenos comerciantes e profissionais liberais que ali habitualmente se encontram nas primeiras horas da manhã, quando as notícias de primeira página dos principais jornais alentam uma convivência animada. O capitão Lacerda abstém-se de participar, limitando-se a registrar os gestos e comentários entremeados de queixas e piadas sobre o aumento dos casos de zika, tema que ao longo dos últimos meses suscitou um desassossego generalizado, ainda que não repercutisse tão intensamente como a crise econômica e os desmandos dos homens públicos no ânimo do brasileiro.

A escalada do desemprego e dos preços dos alimentos, da luz, dos combustíveis, dos políticos e suas propinas, sobretudo destas, trazidos à tona pelas operações Lava-Jato e Zelotes, havia se tornado o mais popular dos assuntos. Tão recorrente era que, mesmo nos dias mais quentes do verão carioca, uma dona de casa, ao retornar do mercado e se encontrar no elevador com uma desconhecida, já não exclamaria “Que dia quente!”, ao que a outra balançaria a cabeça num gesto de anuência e a conversa morreria. Ao invés disso, disparava algo como “O tomate está pela hora da morte!”, e sua interlocutora, de pronto, anuía sobrepondo “E a carne, então? Só tendo conta na Suíça para comer bife todo dia”. Dali em diante o bate-papo, com ares de um desabafo bem-humorado, deslizava naturalmente, ensejando intimidade. Semelhante fenômeno se passa em todo o país. O mal-estar de uma inflação na casa dos dois dígitos, a tragédia do desemprego e da zika motivam pilhérias que a todos irmana, fomentando o sentimento de nação.

Ao lado de Lacerda, um homem de meia idade, metido num terno cujo corte afeta a solenidade burocrática de um advogado de pequenas causas, após adoçar seu café, sentencia num tom jocoso: “Há não muito tempo se comprava o apoio de um deputado oferecendo-lhe uma mesada de dez mil reais. Hoje, tornaram-se corriqueiros os depósitos milionários no exterior.” Os demais soltaram um sorriso amarelo, condescendente, e continuaram a praguejar ao mesmo tempo em que faziam piada de tudo, como se assim pudessem, levando e não levando a situação a sério, se desvencilharem do atual estado de coisas.

O capitão Lacerda não ingressara no Exército empurrado pelas mãos da necessidade: fora conduzido por um ideal. Entrevia nas forças armadas o mais nobre panteão dos heróis nacionais; ali ambicionava contribuir para o progresso do Brasil. Não visava a fazer carreira. Era um sincero patriota: sonhava ver seu país ombrear as grandes nações. A pureza e seriedade de suas intenções não tardaram, porém, a lhe trazer decepções. Discerniu nos militares, o que mais tarde se descortinou diante de seus olhos também fora dos quartéis: as instituições brasileiras traem suas próprias promessas, abortando os desejos e aspirações que trazem consigo, promovendo uma realidade oposta da que propunham. Para tal contribui a ambição insuflada nos jovens em obter estabilidade no serviço público, ignorando qualquer vocação legítima, e a mania nacional de fazer troça de suas próprias mazelas. A tragédia social alimenta uma pretensa alegria, e esta o orgulho de ser brasileiro. Tudo é motivo de brincadeira, e mesmo homens como o capitão, contrários à folia democrática da qual o país se ufana diante do mundo, não escapam: a cada dois anos se veem obrigados a ir às urnas, intimidados pela ameaça de perder direitos. Ao capitão, as eleições não passam de chanchadas. O político corrupto e seus aliados negam todas as provas de seus delitos, distribuem incentivos ao consumo às vésperas das eleições, e os elegemos, e reelegemos, ratificando os votos para que nada mude ao mesmo tempo em que o imaginário popular renova suas esperanças de melhorias. Lacerda sentia-se cansado desse espetáculo burlesco, dos discursos e bravatas que contrastam com o modo de agir de quem os profere e a veracidade dos fatos. Irrita-o essa jovialidade indolente de um povo que a tudo adoça, permeando a realidade de mentiras e meias-verdades para torná-la menos amarga. Não há interesse em mudar o país, senão em seus aspectos superficiais, e para isso a política econômica dos últimos anos havia satisfeito a demanda por fantasias que ocultassem a indecência de um número crescente de crianças se marginalizando com o vício em drogas, sem direito ao essencial, enquanto o país se arruína em dívidas com a aquisição do supérfluo.

Ao longo de todos aqueles anos, o capitão exasperou-se com a ilusão de prosperidade criada pelo consumo que condena o futuro do Brasil. Pressentiu nela um terrível retrocesso, e naquela quarta-feira de cinzas ele já surgia no horizonte. A fantasia populista se desfazia, evidenciando a apatia, o cansaço e a frustração de foliões sem outra perspectiva que não o trabalho de limpar toda a imundície daqueles anos de ostentação. Quem pôde deixou a apoteose e seguiu direto para o Galeão antes mesmo de o sol nascer. Quem não pôde, segue representando, e representar é o que fazem os “paisanos” naquele boteco antes de retomarem a antiga rotina, interrompida pelos dias de festa. Se também pudesse, Lacerda faria o mesmo; não podendo segue vivendo entre os seus como um expatriado. Não compartilha daquela alegria. Às vezes, sente ganas de embarcar para longe, mas não irá. Ainda sonha ver o Brasil ensaiar um novo enredo. Até lá, continuará solitário, naquele canto do balcão, acompanhando, esperançoso, os desdobramentos da Lava-Jato enquanto toma seu café puro, forte e amargo como a realidade que se faz sentir pelos brasileiros.

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Postado por Heberti Rodrigo
4/3/2016 às 14h23

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