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Sexta-feira,
6/11/2015
Blog de Marco Garcia
Marco Garcia
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Melhores três minutos de Moacyr Franco
Após um inexplicável intervalo de quase três anos, assisti pela segunda vez o filme "O palhaço", essa espetacular e impactante narrativa que Selton Mello levou às telonas em parceria com Marcelo Vindicatto, em 2011. A pretensa inocência da trama seguiu me cativando.
O que me arrebatou, novamente, foi a minúscula - quase mística - cena, talvez, sem muita importância para o roteiro, mas bem fundamentada, protagonizada pelo delegado Justo, vivido de maneira sensacional por Moacyr Franco.
Lá pelas tantas, Benjamim e cinco profissionais do circo, após uma apresentação no vilarejo chamado Montes Claros, se dirigem a um boteco local para uma merecedora desintoxicação cênica, regada a generosos goles de cachaça e partidas de sinuca.
O dono do bar, de espreita, ouve uma conversa sobre o ato de "enterrar o morto", que se traduzia em fincar estacas em terrenos arenosos a fim de dar maior sustentação à lona do circo. Desconfiado de que estaria diante de uma quadrilha de homicidas, o homem resolve ligar para a polícia.
A cena é cortada para o interior de uma delegacia, na qual o desengonçado sexteto encontra-se olho a olho com o representante da Lei.
Daí em diante, desenrola-se uma passagem com pouco mais de três minutos de duração, sob um diálogo antológico em formato de interrogatório por parte do delegado.
A curta, simples e densa participação de Franco proporcionou uma intensidade ao filme e revelou sua vasta capacidade de interpretação, ao costurar entrecortes trágicos de uma brasilidade que ainda hoje permeia o modus-operandi de alguns espaços públicos - que têm o vezo de contaminar o cotidiano de cidades nos rincões do país -, no caso, o suborno.
O teor do diálogo é inteligente e instigante, pelo fato de ser extremamente cínico. Deixando transparecer uma contrariedade por estar ali naquele momento, interrogando-os (alegando que deixara uma reunião de 'queijos e vinhos', por ocasião do aniversário da mulher e, principalmente, por ter deixado o seu gato Lincoln sozinho em casa, ainda convalescendo de uma cirurgia que retirara do estômago felino uma bola de pelo), o delegado busca a todo custo desvendar o mistério do defunto que aquele estranho grupo, em algum lugar, havia enterrado. Ao saber que tudo não passou de uma má interpretação de significados, o delegado encara os presos e indaga: "E como é que fica o tempo que vocês me privaram da companhia do Lincoln?".
O que se segue é um tal de 'coçar' os bolsos para juntar uns trocados, montante com o qual a fiança seria paga. Quando o escolhido para efetuar o pagamento se levanta e vai em direção à mesa, Justo - precavido -, antes de receber o dinheiro, olha para o lado e sussurra para um invisível ajudante: "Nicodemos, fecha a porta".
"O palhaço", cuja ideia nasceu de uma crise existencial vivida por Selton em 2009, acabou não concorrendo ao Oscar. Proporções guardadas, Moacyr correria sério risco de se igualar a Beatrice Straight - que levou a estatueta de 'Melhor atriz coadjuvante', em 1976, após aparecer em cena por apenas 5 minutos e 40 segundos no filme Network.
Porém, com mérito, o ator foi reconhecido no Festival de Cinema de Paulínia e recebeu o Troféu Menina de Ouro nessa mesma categoria.
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Postado por Marco Garcia
6/11/2015 às 09h24
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Intervenção, como pedir o que já existe
Em um dos morros da cidade do Rio de Janeiro mora Geraldo, 34 anos, de cor parda, casado, três filhos. Duas casas mais à direita, reside Celso, 16 anos, negro, mamorando, sem filhos.
Por coincidência, ambos saíram de suas residências ao mesmo tempo, naquele início de manhã de domingo, em agosto de 2015.
- Coé, Celso, na paz? - Geraldo cumprimenta o vizinho, filho de um de seus parceiros de sinuca no bar do seu Arlindo, que fica na esquina da Rua Getúlio Vargas.
- Tudo certo, Geraldão - respondeu ainda sonolento, tentando adivinhar o que o colega de bairro levava, todo santo dia, naquela mochila azul. E que chaveiro estranho, parece um passarinho, um galo, sabe-se lá. Não sabia o nome, mas de uns tempos para cá a figura daquele bicho surgira em cartazes e muros da comunidade. Tem um bico enorme e curvado.
Geraldo desceu o morro para esperar a bendita carona que o levaria ao trabalho; Celso dobrou na primeira viela, à esquerda, em direção à padaria onde marcara com os amigos, na noite anterior. Avistou apenas dois.
- Salve, rapaziada. O dia promete. Lelé, trouxe as ferramentas?
- Missão dada é missão cumprida, Celso. Já é, 'tá' tudo aqui.
- E tu, Félix, conseguiu tirar da cabeça da Belinha de nos acompanhar? Nosso rolê hoje vai ser pesado, a chapa é quente.
- Ela ficou desconfiada, Celsinho, mas depois aceitou. Também, dei 20 paus para ela arrumar o cabelo na Judite - disse Félix, com semblante de menino esperto.
- Fez bem. Caralh... Cadê a porra dos outros muleques? Os caras não têm disciplina, nunca chegam na hora marcada - reclamou um chateado Celso, depois de chutar uma lata vazia de cerveja, esquecida por um transeunte qualquer.
- Dá um dez, brou. Eles já chegam - minimizou Félix.
Dez minutos depois do esporro, o bonde de 20 garotos, faixa etária entre 14 e 17 anos, também desceu o morro e pegou o circular, seguindo para a Zona Sul.
- Puta ônibus zuado, 'mó' carroça. E 'tá' parecendo uma sauna. Ê condutor, dá para ir mais rápido não? - reclamou Celso, bolado e já impaciente.
- Ei, estou fazendo o favor de levar vocês no "meu ônibus". Fica de boa. Além disso, não dá para correr, tem uma blitz logo à frente - respondeu, bravo, o motorista, que desde às 4 da madrugada batia lata nas ruas.
- Mais essa, disse Félix. Não tem como desviar dos alemão não?
- Claro que não. Vixe, mandaram encostar.
- Bom dia, cidadão, como está essa força? Dá licença para eu conferir que tipo de contingente o senhor está levando para a praia, solicitou educadamente o policial ao motorista.
Sentado no último banco do ônibus, Celso não acreditou quando reconheceu o distinto PM.
- PQP! O Geraldão é alemão? Quer dizer que o misterioso volume que ele carrega na mochila é a farda da corporação? Caraca, que maluco estranho - pensou Celso.
Mesmo prestes a ser abordado, ao se deparar com o vizinho travestido de defensor da lei, ficou tranquilo.
- Deu ruim. Quero todos os vida loka fora do coletivo. Vamos, rala, e no sapatinho - ordenou um truculento Geraldo.
- Nossa, como o Geraldão é sangue ruim fora do morro, não conhecia esse lado dele não - se assustou Celso.
- Coé, Geraldão! - ele gritou lá do fundo, na esperança de ser bem tratado quando fosse reconhecido. Libera aí, temos hora para chegar.
Geraldo fuzilou Celso com o olhar e caminhou lentamente em sua direção. Quando viu a mão do garoto estendida para um cumprimento, deu-lhe um tapa de peso equivalente a 1 tonelada no seu rosto.
- Geraldão é o cacete, seu FDP. Para você eu sou o Tenente Geraldo Ramos. Vai, pega suas porcarias e desce com a sua quadrilha para fora da porra desse ônibus.
Sem acreditar na reação do até então pacato morador do morro, Celso pegou o saco com as camisas e a bola e saiu do ônibus, alisando a marca de dedos que o tapa lhe deixara entre a boca e o ouvido esquerdo.
- Seguinte, gritou Geraldo, a ordem do governador é barrar na fonte a ação da geral que desce o morro para tocar o terror nas praias, tirando o sossego dos cidadãos de bem que curtem o dia ensolar...
Antes de terminar seu raciocínio, o Tenente Geraldo Ramos ouviu aplausos e gritos de apoio vindos do interior do veículo.
- Isso mesmo, autoridade. Enjaula esses vagabundos - comemorou, com imensa satisfação, o motorista.
- Graças a Deus e a você seu polícia, que nos dá a devida proteção. Já estava com um medo enorme desses bandidos roubarem meu celular, minha marmita e meu vale transporte. Vou ligar para minha patroa e avisar que o atraso de hoje foi por motivo de segurança pública - balbuciou a senhora diarista.
De peito estufado e ego nas alturas, Geraldão - o pacato vizinho do morro, mas Tenente Geraldo Ramos no asfalto - olhou para a roda de garotos de pele escura, sentados na calçada.
- A geral será averiguada. Quem não deve nada será liberado e vai atravessar a rua e pegar o ônibus para voltar para o lugar de onde não deveria ter saído, entenderam?
Cabisbaixo, de orgulho ferido, mas já acostumado com esse tipo de repressão, Celso reparou no choro contido de Félix e ouviu do Lelé:
- Que merda, hein, Celso? Combinamos tanto esse futebol. Fizemos vaquinha por 15 dias na quebrada, compramos uniforme, bola, e agora somos tratados como lixo pelos representantes do estado? Tendo como o mais truculento o nosso vizinho de morro? O pior é que eu votei no FDP desse governador.
- Fazer o quê? Vamos voltar e deixar os ricos se divertirem em paz - se conformou Félix. Quem sabe ainda encontro a Belinha em casa, pois o trato no cabelo dela quem vai dar sou eu.
*Marco Garcia é jornalista paulistano. Mora em Fortaleza.
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Postado por Marco Garcia
14/9/2015 às 12h15
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O medo do desconhecido
Marco Garcia Fortaleza (CE)
O primeiro encontro foi casual. Claro que foi. Mas não deu para esquecer aquele rosto nos dias seguintes. Começou a ficar intenso. Pensava nela a todo instante. O que estaria fazendo agora? Onde mora? Tem namorado? Perguntas e mais perguntas o torturavam.
Conseguiu vê-la uma segunda vez. Nessa, não perdeu a oportunidade. Pediu o número do telefone e, dali em diante, a troca de mensagens seria a nova forma de contato.
A cada "bom dia, meu anjo" que ele lia no celular o coração apertava. Passou a escrever quase que ininterruptamente. Ficou obsessivo. Começou a chamá-la de "paixão, princesa, linda e amor". O sentimento cresceu de maneira assustadora. O que ela teria que o deixara assim, "com os quatro pneus arriados"?
Na abstinência diária, os pedidos de envio de fotos começaram. E que fotos. Cada uma mais linda que a outra. Que sorriso, que olhos negros, que lábios e que corpo! Depois, vieram os áudios, pelos quais podia apreciar sua doce voz.
As mãos geladas, o coração acelerado, um suor constante o obrigaram a tentar algo mais, coisa séria. Mas, quando ele passou a falar sobre a possibilidade de irem em frente, surgiram seguidos silêncios. Por quê? Será que de alguma maneira a teria ofendido? Estaria indo rápido demais? Ficou preocupado.
Quis saber. "Tenho medo", foi a resposta. "Medo de me apegar e sofrer". Dizia que ele era muito carinhoso e que o adorava, mas tinha medo. Medo de se apaixonar. Como assim? Qual seria a razão de tamanho receio? Um mundo novo, ainda que desconhecido, a assusta?
Não acreditou naquilo que leu na tela do celular. Sentiu-se estranho. Tem tentado de tudo para eliminar esse medo que lhe apavora, mas - ao que parece - sem sucesso. Entranto, está decidido, vai tentar um pouco mais. Prometeu não desistir assim tão fácil.
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Postado por Marco Garcia
10/7/2015 às 16h51
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Obsessão, uma moléstia
Marco Garcia Fortaleza (CE)
"Vou matar Isaura". Por muito tempo, a frase repercutiu no subconsciente do menino. Na falta do que fazer, ou sem brinquedos que o ajudassem a vencer as invariáveis horas do improdutivo cotidiano, ele professava a fé de sua mãe, devota incurável dos folhetins vespertinos.
Através da tela de 14 polegadas, 50% das tardes era preenchido com o remake do "maior sucesso de todos os tempos da teledramaturgia nacional", segundo a análise de audiência.
Da trama pouco absorveu, mas registrou o mantra. Qual a razão daquele homem de bigode querer tanto assassinar a escrava?
Na mesma época, assistiu a um filme, no qual um alienígena chega à terra e passa 1h50 dizendo: "Eu vim em paz". Também ouviu Lula repetir: "A luta continua, companheiro".
Trocou-se a década, ele cresceu. Novos mantras surgiram.
"Impeachment já", repetem os inconformados com o governo.
"Lula sabia", repetem as revistas semanais.
"Não há racionamento de água", repete o governador.
"É contra a lei de Deus", repete Silas Malafaia na direção dos homossexuais.
"Bandido bom é bandido morto", repetem os admiradores da Polícia Militar.
"Só Deus pode me julgar", repetem os que se sentem injustiçados pelo Sistema.
"Redução da maioridade penal", repetem os programas policialescos.
"Deus no comando", repetem os agraciados pelo favor divino.
"Hashtag fica a dica", repetem os redes-sociais-maníacos.
"Junte-se a nós", repetem ONGs e partidos políticos.
E por aí vai...
"Meu filho, você tem uma conversa que parece cantiga de igreja", disse a senhora ao neto que, insistentemente, lhe pediu dinheiro durante a manhã.
Tudo o que passa do limite tolerável vira obsessão. O dicionário desfaz quaisquer deslizes etimológicos. *
O mundo atual é uma bolha obsessiva. Tudo é compulsivo. De Pernambuco a Sumatra, existem pessoas obcecadas por alguma coisa.
Há um número incontável delas. Por emprego, dinheiro, mulher, homem, carro, casa, tablets, TVs, celulares, tênis, condecorações, elogios, likes, selfies, corpo perfeito, cabelo perfeito, vida alheia, jardim do vizinho, limpeza, filho da amiga, enfim, para tudo.
Há casos em que a obsessão gera a intolerância, que anda de mãos dadas com a violência. Alguns foram ao limite da crença e passaram a degolar adeptos de outras religiões. Outros, cegos por um time, matam o torcedor rival a pauladas. Hitler era um sujeito extremamente obsessivo. A História relata o resultado.
Num contraponto, a obsessão é a antessala do suicídio. Hábito fatal adquirido por jovens japoneses, que perdem o rumo ao perceberem que não atingirão a meta profissional traçada por familiares.
É preciso lutar por um ambiente livre desta moléstia. De qualquer espécie. Quem sabe viveríamos melhor. Ou não. Deve ser chato também estar num mundo abarrotado de conformados. Mas qual é a solução? Fica a pergunta.
*Obsessão
Preocupação exagerada com alguma coisa; apego excessivo a uma mesma ideia; ideia fixa.
Compulsão; necessidade intensa para fazer algo ilógico ou insensato: a obsessão pelo dinheiro.
Impertinência; ato de aborrecer alguém com solicitações insistentes.
Psicologia. Neurose que se define pelos pensamentos, ou ações, repetitivos e compulsivos; neurose obsessivo-compulsiva.
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Postado por Marco Garcia
11/5/2015 às 20h38
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Julio Daio Borges
Editor
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