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Terça-feira, 9/8/2016
Impressões Digitais
Ayrton Pereira da Silva
 
ENIGMA

Donde virá?

Sabe ninguém.

Vem do silêncio?

Do oco das palavras?

Do amor, do ódio,

(irmãos germanos

de sangue e coração)?

Da imaginação,

essa louca da casa?

Donde virá?

E o que será?

Será ou não?

Eu vos direi:

nem sim nem não!

É isso que me provoca:

algo que a si mesmo se interroga.

Mas para os outros será um sim ou não

— e uma interna interrogação.

Ayrton Pereira da Silva

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Postado por Ayrton Pereira da Silva
9/8/2016 às 20h10

 
UM NOME E TANTO...

Em seus últimos momentos, Juan de la Concepción Joaquin Esteban Fradique de Urtiaga carregava o peso de um enorme desgosto pela vida fracassada, agravado pelo tamanho sem fim de um nome de batismo pomposo que servira de mote inesgotável de piadas maldosas por parte dos conhecidos.

Consta da tradição oral que suas derradeiras palavras foram: “caralho, a porra desse nome não caberia nem na lápide que não vou ter.”

De fato, foi com um sentimento de alívio que se livraram do defunto, encontrado no pântano, já em adiantado estado de decomposição, mas surpreendentemente intacto, sem ter sido abocanhado sequer pelos crocodilos que infestavam aquelas águas pútridas nos confins da aldeota, com apetite insaciável.

Como ninguém reclamou o corpo e não houve vivalma disposta a velar o morto ou acompanhá-lo ao domicílio final, até porque o fedor que exalava era insuportável, foi enterrado num caixote improvisado de madeira de entulho que lhe arranjaram às pressas, pelo temor de que, se fosse para a cova rasa embrulhado num lençol velho, resolvesse voltar para assombrar os viventes.

A verdade, porém, é que Juan de Urtiaga, depois de morto, angariou um prestígio que jamais tivera em vida, sendo invocado, de início, nos terreiros e congás, como uma entidade de temíveis poderes, que levaram à loucura alguns médiuns desavisados que ousaram incorporá-lo e acabaram se atirando de um penhasco para o abismo sem fundo que delimitava um dos extremos do povoado, numa espécie de reprise do episódio bíblico da vara de porcos endemoninhados que, desatinados, se lançaram de um despenhadeiro para a morte.

De sorte que nas preces e exortações que lhe dirigiam com pedidos de luz para sua alma atormentada, seu nome de batismo deixou de ser declinado, passando a ser respeitosamente designado como o Guardião das Águas Paradas, de quem esperavam as benesses de seus misteriosos prodígios.

Nascera órfão de pai ignorado e mãe anônima que o depositara, como nos clichês dos folhetins antigos, na calada de uma noite tormentosa de inverno, defronte à porta da igrejinha do povoado de Urtiaga, um lugarejo sem registro no mapa, formado por um arruamento de modestas casas de porta e janela e pelo prédio maltratado da prefeitura que também abrigava, nos fundos, a dependência policial com sua única cela, onde os poucos bêbados do lugar curtiam sua ressaca. Esse vilarejo esquecido de Deus limitava-se de um lado pela escarpa pedregosa de vegetação rasteira e plantas venenosas e de outro por um pântano de fétidos miasmas deletérios.

O recém-nascido e futuro Juan de la Concepción Joaquin Esteban Fradique de Urtiaga foi recolhido de manhã pelo pároco da aldeia, de quem se dizia que fora, certa vez, visto com um halo de santidade pairando sobre sua cabeça, durante a procissão do dia da Ascensão do Senhor.

Quanto ao nome que recebera na pia batismal, as opiniões se dividiam entre aqueles que acreditavam tratar-se de um ato piedoso do padre ao atribuir ao enjeitado apelidos de família escolhidos entre aqueles com fumaças de nobreza, enquanto outros, com extrema malícia, achavam que a escolha do padre fora motivada por pura ironia.

Seguindo o destino dos enjeitados, Juan de Urtiaga fora coroinha em menino e sacristão quando trocara as calças curtas de zuarte pelas calças compridas de um tamanho maior, com fundilhos de coar café, arrepanhadas entre as sobras de um bazar de caridade.

─ Ô joão-ninguém do sino, já coou o café do vigário hoje? – motejavam os colegas do colégio público onde aprendera as primeiras letras.

Ele calava diante das piadas e dos insultos de mulher do padre, até que seus olhos, sem que ninguém reparasse, começaram a mudar de cor, adquirindo um aspecto estranho. Então, acontecimentos inusitados se desencadearam, quebrando a rotina movimentada do recreio quando o valentão da turma, depois de provocar Juan de Urtiaga até arrancar gargalhadas e gracejos do resto dos meninos, de repente cagou-se e mijou-se todo, como se tivesse visto algo aterrador em plena luz do dia, empestando o pátio do colégio com uma fedentina tal que tiveram de suspender as aulas por três dias para lavagem de todo o prédio com litros e mais litros de água sanitária e soda cáustica até que o cheiro de merda desaparecesse.

A partir daí, ninguém mais se atreveu a mexer com Juan de Urtiaga, que passou a ser evitado, principalmente pelo valentão da turma que mudava de calçada para não cruzar como ele. Juan até se alegrou com esse isolamento, pois jamais se sentira à vontade na presença dos outros. E já nem pensava mais no assunto, quando começaram os sonhos premonitórios.

E foi assim que acordou em sobressalto, quase caindo do catre em que dormia no quarto de guardados da casa paroquial, por causa da visão clara de onde morava a mãe biológica que jamais conhecera e cujo nome e sobrenome ressoaram em seus ouvidos como um eco de palavras gritadas na nave de uma imensa catedral vazia.

Madrugada ainda, pôs-se a caminho, mastigando um pedaço pão dormido como desjejum, pois o trajeto a percorrer seria longo até chegar ao lugar onde, num casebre de pau-a-pique, morava uma anciã de melenas brancas que lhe caíam até a bainha de uma bata imunda e rota, que fedia como dez gambás.

─ A senhora é Doña Violante de la Anunciación de Roncesvalles – afirmou Juan de Urtiaga mais que perguntou, ante a figura espectral que assomara à porta do casebre, mal refeito da surpresa de haver pronunciado de cor o nome e o sobrenome, até aquele dia completamente ignorados, de sua mãe desnaturada, como se ele fosse um boneco de ventríloquo manipulado por uma entidade invisível.

─ Some daqui, emissário do Belzebu! Quem te mandou? Aposto que foi aquele padre de meia pataca que teima em não arder no fogo inferno. Sabe o que ele anda espalhando por aí? Que sou uma feiticeira. Tudo por inveja das curas das minhas ervas. Parece que tem medo da concorrência, pois as rezas dele só fazem efeito depois que o cristão entrega o corpo à terra.

Sem arredar pé diante dos vitupérios da anciã e debaixo de uma chuva de perdigotos saídos de sua boca desdentada, Juan com uma voz surdinosa sussurrou para a megera:

─ Sou seu filho, mãe.

Nem ele mesmo acreditou nas palavras que escaparam de seus lábios, e teve então a certeza de que definitivamente estava sendo manejado por alguma força alheia à sua própria vontade. Para dramatizar ainda mais aquele instante de absoluta perplexidade e espanto, a mãe, sem dizer palavra, cingiu-o em seus braços esqueléticos.

Juan, passando a viver com sua mãe biológica até então desconhecida, abandonou o ofício de sacristão, e só lhe deram pela falta quando, às seis horas da tarde, o sino do campanário não tocou as badaladas da Ave-Maria, e dizem que desde então grassou um tempo de adversidades que levou à ruína o que restava do povoado.

Sua mãe iniciou-o na arte hermética dos herbanários ancestrais, ensinando-lhe os segredos das ervas curativas dos males do corpo e do espírito e os arcanos proibidos das plantas de amavios e dos filtros de bem-querer e malquerer.

Aos poucos, foi-se operando uma metamorfose quase imperceptível em Juan de Urtiaga cujos olhos passaram a irradiar uma coloração iridescente de rara serenidade e harmonia, enquanto sua mãe rejuvenescia a olhos vistos, adquirindo o porte adelgaçado de uma matrona de traços senhoriais que nada tinha a ver com a aparência tosca do filho que gerara, fruto da imaturidade da adolescência, que mais parecia um boneco talhado a machado sem corte pelas mãos brutais de um lenhador e era a lembrança viva da insensatez que arruinara sua vida. Certa noite, sem nenhum aviso, deixou em silêncio o barraco do pântano, libertando-se para sempre da presença do filho que pela segunda vez renegava.

Foi desse modo, com toda crueldade e bruteza, que o destino golpeou-o mais uma vez, e Juan de la Concepción Joaquin Esteban Fradique de Urtiaga internou-se no pântano, passando a conviver com répteis, serpentes, batráquios, lacraus e toda espécie de animais repulsivos e peçonhentos que constituíam a fauna do pântano e aos quais alimentava com as aves que alvejava com seus olhos mutantes, em pleno voo, até caírem fulminadas.

Seus olhos adquiriram para sempre uma coloração de magma incandescente toda vez que alguma coisa o desgostava. Conta-se que ao morrer, quando suas pálpebras se cerraram, uma primavera súbita fez rebentar em flores o carrascal de cipós, ramagens cortantes como fio navalha e plantas bravas do pântano inóspito e indomável, mas quando, por efeito de um espasmo da musculatura facial, os olhos do defunto reabriram, todas as flores murcharam e nunca mais voltaram a brotar.

Segundo o relato dos moradores mais velhos do povoado, depois da morte de Juan de Urtiaga, insólitos acontecimentos subverteram a rotina do lugar, como a desorientação dos galos que passaram a cantar fora de hora e o delírio dos cães que uivavam nas noites de lua cheia até o raiar do dia, além do absoluto desgoverno das estações do ano, que não ocorriam na época devida, levando à ruína os agricultores que já não sabiam mais quando era chegado o tempo de semear nem o tempo de colher. Ninguém mais teve sossego diante dos desarranjos da natureza, como os aguaceiros torrenciais que, sem aviso, desabavam de um céu inteiramente azul ou das ondas sucessivas de calor seguidas de intenso frio, que ora tocavam as pessoas para a sombra das árvores e dos lugares frescos, ora as faziam tirar do fundo das gavetas velhos cobertores e grossos agasalhos com cheiro de naftalina. Esses descalabros acabaram por infundir o terror entre os nativos e quem podia mudou-se para outros pagos, fugindo da maldição que assombrou o lugarejo. Só permaneceram mesmo, por não terem para onde ir, uns poucos idosos, que assumiram o compromisso de dar testemunho do que ali ocorrera, dentre estes o pároco da igrejinha, que tinha se esquecido de morrer e, pelos registros do batistério, já estava próximo de completar cento e cinquenta anos de idade.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
4/7/2016 às 17h14

 
A PROPÓSITO DE UM POEMA

INFÂNCIA é, a meu ver, um dos mais sublimes textos de revisitação poética do inefável que a literatura pátria já produziu. Vazado numa linguagem metafórica de raros achados imagéticos, onde luz e sombra se contrapõem, harmonizando-se nos contrastes, o poema de PAULO MENDES CAMPOS abre-se em perspectivas inusitadas como num quadro de peregrina beleza.

Seus versos inaugurais nos colocam, de chofre, confrontados com a irreversibilidade do passado, como se o grande poeta, debruçado na janela da imaginação, contemplasse uma paisagem corroída pela ferrugem do tempo, cuja impactante visão lhe toldasse os sentidos, inundando-o de um sentimento de nostalgia, estranhamento e solidão.

“Há muito, arquiteturas corrompidas,

Frustrados amarelos e o carmim

De altas flores à noite se inclinaram

Sobre o peixe cego de um jardim.”

Mas “o carmim de altas flores” nascidas entre as ruínas do que se foi, como que rasgando no horizonte de sépia uma abertura para a luminosidade, torna possível vislumbrar, em miradas caleidoscópicas, um mosaico de cenas fractais, que vão recompondo, aos fragmentos, a magia de um tempo sepultado:

“Velavam o luar da madrugada

Os panos no varal dependurados.

Usávamos mordaças de metal,

Mas os lábios se abriam se beijados.

Coados em noturna claridade,

Na copa, os utensílios de cozinha

Falavam duas vidas diferentes,

Separando da vossa a vida minha.

Meu pai tinha um cavalo e um chicote;

No quintal dava pedra e tangerina;

A noite devolvia o caçador

Com a perna de pau e a carabina.”

E as imagens epifânicas vão-se desatando como num filme, dir-se-ia de Fellini em Amarcord, tal a sua riqueza de formas e o seu inusitado estético, perpassados, contudo, por um hálito de lirismo.

Neste poema de verdadeira arqueologia interior, onde ruínas e escombros ganham vida ao sopro das relembranças, está fortemente presente o sentimento do tempo-eternidade enquanto vida, já de si transeunte e precária. Ou, como diz o poeta:

Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,

O mal, o fel, o sol, o mar – o homem.

Só depois surge a sua infância-texto,

Explicação das aves que o comem.

Só depois antes aparece o homem.

A morte é antes, feroz lembrança

Do que aconteceu, e nada mais

Aconteceu; o resto é esperança.”

Percebe-se aqui, nos diversos estratos temporais que se justapõem e sobrepõem, que o poder de transfiguração do real vivenciado na infância, ressurge, vívido, no fraseado metalinguístico do poema, como a significar que, para a criança, tudo é eternidade, não sendo a morte senão uma figura de assombro e pesadelo, como algo imaterial e distante.

Mas o adulto que hospeda o poeta, como todos, é consciente do tempo que se esvai irrecuperavelmente, gerando o sentimento de nostalgia que ecoa nos versos

“ Tínhamos pombas que traziam tardes

Meigas quando voltavam aos pombais;

Voaram para a morte as pombas frágeis

E as tardes não voltaram nunca mais.”

Em sua complexa tessitura intertextual, o tempo situa-se como o epicentro das especulações do poeta e fio condutor da verdadeira maré de relembranças que se sobrepõem em ondas sucessivas no oceano da memória. Esse mesmo tempo cujo fluir Heráclito de Éfeso, muito antes do advento da Era Cristã, argutamente comparou às águas de um rio, que jamais retornam.

A tentativa empreendida pelo poema de reinvenção do calendário pretérito, que vem a propiciar a (re)visão desse tempo trasladado pelos olhos tomados de empréstimo ao menino antigo, acaba por resvalar na realidade presente do adulto, que, como se desperto de um sonho vígil, readquire sua roupagem quotidiana, para desembarcar na realidade do dia a dia que constitui a paisagem existencial onde todos transitamos. É o que se depreende, aliás, da estrofe final do poema, permeada de saudade do já vivido

“Sou restos de um menino que passou.

Sou rastos erradios num caminho

Que não segue, nem volta, que circunda

A escuridão como os braços de um moinho.”

Menos que uma despedida, o que ressuma, entretanto, da estrofe transcrita, é o sentimento de que foi lançada uma ponte de acesso ao território ínvio do inefável, em torno do qual, em última análise, gravitam os corações e mentes daqueles que sonham com a instauração de um hoje circular, em que, transcendendo à sua predestinação ontogênica, pudesse ao menos recriar, em espírito, a sensação de eternidade, patrimônio da infância.

Tal ordem de ideias seria talvez balda de sentido se não estivéssemos tratando de um poema, que é o lugar onde as impossibilidades inexistem e, nas asas das metáforas, fingimos revogar as estreitas fronteiras que limitam nossos passos. Nesse sentido, força é convir que a poesia detém o condão de instaurar um universo próprio, mundo paralelo para o qual volta e meia escapamos para fugir às overdoses de uma realidade cada vez mais difícil de suportar.

Se a poesia, como disse Aristóteles, é a arte da imitação, não sendo o poema nada mais que uma máscara que oculta o vazio, na imagem admirável de Octávio Paz, mimetizando-se como o camaleão que assimila a cor dos lugares onde rasteja, para tornar-se parte deles, esse faz de conta, de tão perfeito no seu disfarce e imitação, acaba assumindo a concretude do real.

Essa acurada percepção de PAULO MENDES CAMPOS é revelada na magistral construção semântica de INFÂNCIA, em cuja estrutura, qual argamassa forte, se fundem os mundos factual e imaginário, cada um com sua linguagem própria, conduzindo o leitor a partilhar e participar dos belos e instigantes achados que constituem, afinal, a quintessência matricial de sua primorosa contextura, simples por princípio, híbrida por natureza e esfíngica por estratégia, engenho e arte.

INFÂNCIA – in: Melhores Poemas, de Paulo Mendes Campos, Global Editora, São Paulo © by Herdeiros de Paulo Mendes Campos

Nossos agradecimentos a Lucia Riff, da Agência Riff, que gentilmente autorizou o uso de estrofes do poema acima nominado, sem o que seria impossível a realização de nosso trabalho.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
3/6/2016 às 16h58

 
Ausente presença

Na serra, anoitece mais cedo. Eu estava ali para curar minha dor, tentar cobrir a perda com o reboco do esquecimento. Todos os dias, fazia o mesmo trajeto: saía do hotelzinho, na verdade uma casa térrea com vários cômodos e um toldo comprido na entrada, descia a Avenida Alberto Braune e a Praça Getúlio Vargas, desembocando na Praça do Suspiro, onde a vista do teleférico e da torre de igrejinha, projetada pelo grande Lúcio Costa, ornava a encosta verdejante. Ia tomar a mesma média diária com pão e manteiga na confeitaria da esquina da Rua General Osório, em frente a um casarão abandonado no meio de um amplo quintal cujos canteiros eram devorados pelo mato. Mergulhava o pão na xícara do café com leite como fazia em criança, ainda ouvindo os ecos da recriminação materna, não faça isso, menino, que é falta de educação! E às vezes me perguntava se de lá onde ela se encontra agora, não estaria repetindo essas palavras que me chegavam articuladas em tempo presente.

Desconheço se é assim com todo mundo, mas sou movido pelo passado. Lembrei-me de uns versos da época em que ainda escrevia poemas:

Moramos no passado

e a roupa do presente

nós vestimos.

Um descompasso

entre o passo de fora

e o de dentro.

Um é espaço

o outro é puro tempo.

Seria isto?

Bem que eu gostaria de viver as coisas de outra maneira, mas que fazer se afinal, como escreveu Fernando Pessoa, cada um cumpre o destino que lhe cumpre. Tenho dúvida se é esta exatamente a frase dele, mas não tenho o livro dele à mão.

Na verdade, quando muito, cheguei a roubar-lhe um beijo. Mas foi uma coisa tão forte que até hoje seu gosto de flor permanece em meus lábios. Chamava-se Dália. Não sei como é o perfume da dália-flor. Só sei de Dália o que com ela se foi. Então bati numa Olivetti portátil estes antigos versos de Cassiano Ricardo: Merecias viver porque eras pura / rosa de um mundo que devia ser teu / porém o mundo não te mereceu /. Os versos estavam lá na parte de cima do espelho do banheiro onde pelas manhãs me barbeava, no apartamento de quarto e sala que aluguei para temporada, numa ruela do Grajaú. Como a memória não me inspira confiança, saí à procura do livro do poeta e finalmente encontrei, em meio à mixórdia de uma pilha de livros que trouxe comigo, a 1ª edição de suas Obras Completas, publicada pela Livraria José Olympio Editora em 1957, onde se lê o Soneto Anônimo cujo último terceto transcrevi.

Até hoje se ignoram as circunstâncias do desaparecimento de Dália. Chegou-se mesmo a cogitar de sequestro ou de rapto, mas como tudo se passou numa época em que esses crimes não frequentavam o vocabulário quotidiano nem a crônica policial, a hipótese foi deixada de lado.

Dela não tenho sequer uma foto. Uma vez tentei descrever para um pintor o seu retrato falado, mas o resultado do esboço saiu tão distante da imagem que eu tinha na memória, que acabei desistindo. É muito duro você perceber que está perdendo aos poucos a lembrança da figura amada. No tempo em que esses fatos sucederam, não existia ainda a internet e nem mesmo o fax... Fotografia só se tirava para fazer carteira. Em preto e branco, tamanho 3x4. As coloridas vieram bem depois.

Dália gostava de livros e de plantas. Lia Cronin com assiduidade. Eu achava graça.

Você está rindo de quê?, ela me perguntava com aquele jeito todo seu, as duas covinhas gêmeas se entremostrando junto com o sorriso.

De nada, ora!

Não seja cínico. Você nunca soube mentir. (Bem que gostaria de dizer-lhe que achava aqueles romances um tanto adocicados para o meu gosto mas isso equivaleria a confessar que havia lido Cronin, e eu não ia dar o braço a torcer).

Dália era uma loura esguia, de olhos azuis e pele muito clara. Tinha uma pintinha acima dos lábios, no lado esquerdo. Eu a achava singularmente bela, sobretudo quando usava rabo de cavalo.

Muitos anos depois, passando por um cinema do shopping serrano, vi o cartaz de um filme policial que evocava seu nome. Quase comprei o ingresso para a sessão que estava prestes a começar.

Vagando outra tarde pelo bairro do Cônego, descobri numa velha loja de artigos diversos e, dentro de um móvel envidraçado, uma coleção original, de capa vermelha, das aventuras de Sherlock Holmes e me detive mergulhado em devaneios tresloucados. E se eu utilizasse as técnicas do famoso detetive britânico para decifrar o misterioso desaparecimento de Dália mais de quarenta anos depois?

Ela se fora sem nenhum aviso. Recordo que uns dez dias após o seu sumiço, fui até a casa onde ela morava com o pai, em Laranjeiras. Bati à porta daquela casa singela sem quintal e um senhor envelhecido me atendeu de pijama. Sua fisionomia desfeita atestava o golpe sofrido. Quando me declarei colega de sua filha, o homem me abraçou, não contendo as lágrimas. Constrangido, aguentei firme, fazendo um tremendo esforço para não chorar também. Depois de refeito, o senhor idoso desculpou-se pelo momento de fraqueza, mas nada soube dizer sobre o paradeiro da filha. Era um pobre viúvo que vivera com a filha única e agora só lhe restava um gato siamês, muda testemunha daquela cena que presenciara refestelado numa poltrona, fixando-me com o olhar hipnótico dos gatos.

Ela saiu normalmente para trabalhar e não voltou mais, disse ele com a voz embargada. Despedi-me em seguida, deixando, dentro da lata de lixo em frente à porta da rua, os restos das primeiras esperanças.

Naquela altura, o peso da perda de Dália ainda não me atingira em toda plenitude. Talvez ela tivesse viajado, perdido a memória ou coisa assim. Agarrado a esse resquício de esperança, eu contava nos dedos os dias de sua ausência, com a sensação de que estava afundando aos poucos nas areias movediças da depressão, até que não me segurei mais e liguei para seu pai, não conseguindo adiar por mais tempo a resposta que temia receber. Do outro lado da linha, ele me disse, num tom grave, que já percorrera os hospitais da cidade, mas nenhuma mulher parecida com a fotografia que mostrara a médicos e enfermeiros fora internada em qualquer deles. Chegara até a ir ao necrotério, acrescentou cheio de horror.

Para onde teria ido, foi pergunta que o velho me fez, mas permaneci em silêncio. Poderia, pensei, estar numa infinidade de lugares: numa praia do Norte ou do Nordeste, no estado de São Paulo ou mesmo em Minas Gerais, ou talvez perdida na floresta da Tijuca, ela que amava tanto as plantas. Viajar para o exterior, seria quase impossível com o seu salário minguado de secretária. Custava-me admitir que já estivesse sob a terra ou mesmo debaixo d’água...

Hoje, passadas mais de quatro décadas, essas indagações ainda me perturbam. Não a sei se viva ou morta. Quem sabe até seja uma avó feliz, cercada pelo carinho dos netos por todos os lados. Todavia esse happy end não cabe no meu roteiro, mais propenso ao realismo cru dos livros e filmes noir. Também não sei se fui correspondido em meu amor. Mas afinal o que vem a ser o amor: uma dádiva ou uma dúvida? Ainda hoje, relembro uma imagem virtual de sua reação àquele beijo único que lhe dei — o que me parece até ser estranho, pois o seu rosto me vai fugindo a cada dia — mas, como dizia, não sei se sua reação foi de surpresa, de espanto ou de secreto prazer. Ela apenas baixou os olhos, dissimulando um sorriso. Estaria achando graça de mim porque, mesmo naquele tempo, beijar como quem furta, cheio de medo, já estava fora de moda? Talvez ela apenas aceitasse minha companhia por comodismo. E por feminina vaidade. Nunca ouvi de seus lábios palavra alguma que insinuasse o tipo de afeto que sentia por mim. Esta é outra pergunta sem resposta.

A ausência de Dália preencheu de vazio minha vida. Não me casei, não deixo descendência. Sigo abraçado à sua saudade. Recolho-me à tardinha quando começa a anoitecer e a friagem desanda a apertar, penetrando os ossos. No inverno da serra, o frio chega mais cedo.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
16/5/2016 às 18h04

 
ARQUITETURA ONÍRICA

Sou engenheiro do nada

a construir no silêncio

lanço mil pontes no vento

construo contos de fada.

Não edifico no espaço

trabalho no vão do tempo

a obra feita de sonho

concreto de pensamento.


Meu labor é organizado

nos moldes tecnicistas

da moderna engenharia.

O bate-estacas martela

em seu compasso pausado

os alicerces da terra

dos sonhos jamais sonhados.

Construo assim meus castelos

de fantasmas povoados

com blocos de fantasia

da pedreira do passado.


A casa de minha infância

perdida de muitos anos

reconstruí na lembrança.

Sou artesão sem enganos.

Ergui a sua estrutura

com artes de arquitetura

de quem refaz raro quadro.

Atento a todo detalhe

fiz-me pintor e pedreiro

e carapina de entalhe.

Edifiquei na memória

fronteira cá dos meus pagos

moldando matéria-prima

das jazidas do passado.


Plantei no meio da sala

um girassol matizado

que marca o tempo sem horas

de um calendário parado.

O cuco é um pardal morto

por estilingue mirim.

Hoje ele guarda em seu posto

O girassol sem jardim.


Na casa de meu segredo

o arvoredo ensombrado

revive na terra o enredo

de seus troncos decepados.

Na casa de minha infância

tudo agora é floração.

Lá outrora fiz meu mundo

para o qual ainda hoje fujo

clandestino no porão.

Então revivo o menino

mago santo peregrino

nos caminhos sem destino

de um reino sem dimensão.


Que importa se na verdade

não mais ela exista não

se foi vendida e ferida

de morte e destruição

mais vale tê-la intangida

no solo da evocação.


Não edifico no espaço

trabalho no vão do tempo

a obra feita de sonho

concreto de pensamento.


Ayrton Pereira da Silva

in Corpo de delito & prosipoemas

Livraria José Olympio Editora, 1982



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
9/2/2016 às 11h07

 
CHARADA FINGIDA

É um mistério aberto,

um falso enigma.

É um mosaico talvez ou coletânea,

antologia para o bem ou mal.

Os longos dedos de tocar piano,

cor de sonata, orvalho, serenata.

Pelos do púbis das cores mais raras:

Verde sereno de nobre esmeralda,

vermelho-sangue de rubi flamante.

Voz de soprano, eco ao longe, uivo.

Face marmórea de fatal beleza,

ao mesmo tempo etérea borboleta.

Bocas secretas que guardam tesouros

e numa delas um pote de ouro.

Sorriso arcano qual de Monalisa,

imprevisível raio em céu de azul total.

Onipresente em domicílio incerto,

roda-gigante do azar e sorte.

Quem sabe um sonho de alguém desperto,

talvez delírio ou algo de concreto,

leva consigo sabendo ou sem saber

o inefável aroma de ser e de não ser.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
26/1/2016 às 15h33

 
PARÁBOLA

Assim, desassistido de tudo, pus-me a caminho. Os deuses haviam morrido na antevéspera. Carregava comigo, como sempre, a inseparável provisão de sombras e augúrios que tinha colhido em sonhos e presságios, mas que agora de pouco ou nada serviria, já que andava por um mundo órfão de crenças.

As catedrais vazias viraram mausoléus de divindades mortas, para quem os raros fiéis, que insistiam em sua fé, entoavam réquiens que rebatiam nas paredes altas das imensas naves e se perdiam, através dos vitrais, pelos espaços infindos de um céu desabitado de potestades.

Era um tempo à deriva, um fim de era ou talvez um princípio de outra, onde cansados peregrinos vagueavam em busca de novos signos. E os rumores e boatos fervilhavam em surdina, sussurrados a medo, num mundo em que os humanos indefesos não tinham a quem pedir em preces proteção contra os azares da fortuna e os perigos do caminho.

Tempo de profetas e arúspices que, pela boca e nas entranhas dos pássaros, prediziam o advento de uma noite eterna. Tempo de estranhezas e de bizarros cultos.

Em sua solidão, filósofos pensavam talvez um novo mundo, a que faltava a esperança da iluminação. E a só lógica da razão afigurava-se a uma lamparina a que faltasse a chama.

Nada, além disso, o homem produzia. E pela paisagem esmaecida, aqui e ali um canto esparso, talvez de alguma ave desgarrada, talvez a voz de um vento póstumo entre galhos desnudos de espectros de árvores desfolhadas.

Assim caminho eu agora neste vale de sombras, imerso em pensamentos sobre a extinta civilização, morta anteontem. E como a sombra talvez de minha sombra, levo a certeza jamais expressa e nunca confessada dos peregrinos que transitam em busca de um horizonte inalcançável.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
26/1/2016 às 15h17

 
ANTES DO ANTES

...queria um poema avesso ao poema nascido das tripas do nó das entranhas o sujo do mundo mais do que imundo calando as estrelas e as luas diuréticas de noites patéticas queria um poema sem ser um poema tatuado nas ruas nas travessas nuas nos becos sombrios xingando nos muros tão mudo profético que no seu silêncio gritado e histérico pregasse ao deserto ecoando nos ermos a língua dos camelos dos grãos das areias da terra primal bem antes do sol bem antes da vida bem antes da morte do azar e da sorte do bem e do mal bem antes do nada do menos do mais do sim e do não bem antes do antes bem antes bem antes...

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
26/1/2016 às 15h08

 

O SÉCULO QUE ME VIU NASCER



Não me considero melhor nem pior do que ninguém: sou um homem da planície. Tive catapora, sarampo, coqueluche, caxumba, e tenho pensamentos sinistros. Um superego tirânico me mantém sob seu tacão até hoje - o que faz de mim um perfeccionista obsessivo e doentio.

Se acaso tiver algum crédito em minha deficitária contabilidade emocional (coisa de que até duvido), só posso atribuí-lo à circunstância fortuita de haver nascido na terceira década do século XX, quando a Alemanha, debaixo do nariz das nações executoras do Tratado de Versailles, ostensivamente gestava a formidável máquina de guerra que aterrorizou o mundo. Época de extremas contradições, o século XX espelha com precisão e fidelidade o que todos somos, animais divididos entre instinto e razão.

Mas, como dizia, ter nascido no século passado ensejou-me a oportunidade de uma visada em perspectiva que o distanciamento no tempo proporciona. Não sei se essa espécie de cosmovisão representa algo de vantajoso. Tenho sérias dúvidas.

Assim, cheguei ao mundo ainda num tempo em que predominava a cultura europeia, a língua francesa era o idioma universal com todo o seu acervo intelectual e artístico, representado por personalidades de magnitude estelar nos múltiplos campos do fazer humano. Época do cultivo do espírito, anterior à civilização pela imagem, era da cultura humanística, herdada da Grécia Antiga, a Magna Hélade, rejuvenescida pelas conquistas do Renascimento e da Democracia Moderna.

Nada mais natural que minha formação fosse forjada nos moldes da educação formal então em voga: o estudo do idioma merecia especial ênfase, pela óbvia razão de que vivemos num mundo de relação e o conhecimento do vernáculo constituía o primeiro passo no domínio da linguagem que, além de ser a ferramenta de comunicação por excelência, representa sobretudo o cimento que consolida a unidade de um povo como nação.

Sob a orientação de meu pai, que me abriu as portas do universo mágico da literatura, iniciei-me na leitura de entretenimento devorando os números do Tico-Tico, revista em quadrinhos precursora das modernas HQs, tornando-me cúmplice das trapalhadas do trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona, personagens genuinamente brasileiros concebidos pelo traço burlesco de Luiz Sá. Daí para o acesso aos gibis com seus heróis tipo Flash Gordon, Fantasma, Príncipe Submarino, Tocha Humana, Capitão América, Batman e tantos outros foi um pulo. Viajei, ainda na infância, pelos livros do genial Monteiro Lobato - e vieram então O Saci, As caçadas de Pedrinho, Reinações de Narizinho, O Picapau Amarelo, até as versões infantojuvenis dos temas mitológicos como O Minotauro, Os doze trabalhos de Hércules e O D. Quixote das crianças. Seguiram-se as leituras de escritores estrangeiros, sobretudo franceses, como Victor Hugo, Jules Verne, os Dumas, pai e filho, com breves digressões pelos os autores de dicção inglesa e italiana, devidamente traduzidos, como Sir Walter Scott, Rudyard Kipling, Mark Twain, Emilio Salgari, entre outros. Ah, claro, e o indefectível Sherlock Holmes, de Conan Doyle...

Aprendi com meu pai a amar os livros, que, mais do que simples objetos, se afiguravam aos meus olhos como uma espécie de seres reveladores das rotas da imaginação nas tramas que armazenavam. E foi então que ao prazer físico do folheá-los, agregou-se o misto de respeito e cumplicidade que me tornava também um personagem de carona nas estórias que narravam. Hoje, os linguistas aludem à denominada teoria da recepção segundo a qual o leitor, ao aderir ao texto pela leitura, torna-se, por assim dizer, seu coautor, emprestando vida à letra morta.

Meu rito de passagem para a idade adulta coincidiu com o batismo de fogo na literatura portuguesa, arrostando a "selva selvaggia" da tríade romântica llusitana, formada por Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Antonio Feliciano de Castilho, somente capaz de ser desbravada com o Caldas Aulete a tiracolo. Tornei-me, à custa de tentar decodificar aqueles textos, um quase especialista em sinonímia, atributo que se esmaeceu com o passar dos anos de desuso.

De lá para cá, o mundo sofreu uma revolução, caracterizada, sobretudo, pelo sequestro do idioma, avassalado pela invasão de barbarismos. Aos que não sabem que palavra é essa, recomendo que consultem um dicionário; perdão, senhores, pelo ato falho, que recorram ao doutor Google...

A passos largos, vamos perdendo o domínio do vernáculo e junto com ele nossa identidade nacional.

Vivemos a era da extinção dos livros impressos, substituídos pelos e-books e outros veículos de comunicação virtual. Pois é, essa a nossa realidade.

Metaforicamente, poderíamos figurar essa transição como a passagem da borboleta para a crisálida, ou seja, uma metamorfose às avessas?

Mas você está, propositalmente, ignorando o notável progresso técnico-cientifico que atingimos, a ponto de se cogitar, através das células-tronco e da decodificação do genoma, na possibilidade até de alcançarmos a juventude eterna, isso sem falar no inimaginável progresso da eletrônica que não conhece limites. Vive-se agora uma era em que a mais ousada das fantasias vai se tornando realidade.

Não sei se devo responder à provocação de um demiurgo que cavilosamente se disfarça em otimista de plantão, descortinando um mundo de sonhos hedonísticos, em que tanto a ciência quanto a tecnologia detêm o condão de transformar a vida numa fruição sem fim. Não sei se devo mandá-lo ler o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, mas, diante do risco concreto e imediato de vê-lo navegando num texto virtual, engulo o que ia dizer.

Não sei se devo teorizar sobre o tema mais que batido do eterno descompasso entre o progresso material e o retrocesso moral que pontua nossa trajetória existencial. Penso que não, pois, na verdade, esse demiurgo não passa de uma invenção minha ou do meu próprio alter ego.

E assim caminha a humanidade, oscilando perigosamente entre dois extremos, num movimento pendular. Não sei o que mais - além da ameaça do apocalipse nuclear, dos homens-bomba, da espionagem virtual, da degeneração dos costumes, da abolição da ética e da impunidade - ainda nos aguarda neste planeta estuprado a cada minuto pelo bicho-homem cuja criminosa irresponsabilidade não tem mais fronteiras.

Não sei o que será de um mundo em que seus habitantes se tornaram imunes ao horror das tragédias a que assistem comodamente instalados em suas casas, como se as reportagens transmitidas pela televisão em tempo real fossem apenas cenas de um filme. Francamente, não sei como pessoas adoram ver sangue jorrando nos octógonos dos UFCs e MMAs da vida podem ter algum futuro como civilização.

É por isso que, apesar de todos os contrastes e confrontos, dos altos e baixos, prós e contras, me considero afortunado por ter nascido no século passado e, por falta exclusiva de tempo vital, não ter muito mais a testemunhar.

Mas tudo isso que foi dito aí em cima, cai fragorosamente por terra, diante de meu olhar perplexo, quando o próprio autor destas linhas se socorre do milagre da virtualidade para transmiti-las a hipotéticos leitores por meio de um post.

Essa, a meu ver, a grande magia da vida, essa roda-gigante que nos põe a girar...girar...girar... passando do êxtase ao assombro, da alegria à tristeza, da grandeza à pequenez, porque para isso nascemos e assim prosseguiremos até as cortinas se fecharem.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
2/1/2016 às 10h47

 
ALTERIDADE

Quando me for daqui

um outro tomará o meu lugar.

Importa pouco o que eu haja feito

ou o que o outro fará.


Diante das ruínas de Atenas

ou das lembranças da poderosa Roma

tirar clássicas fotos ou venerar o passado

de nada a mim ou ao outro valerá.


Erguem os arquitetos monumentos

e os escultores estátuas e os artistas obras plásticas

que desafiam o tempo

e algum êxtase em mim ou no outro despertará.


E que dizer das tecnologias

que facilitam a vida dia a dia

pois longe vão os tempos espartanos

nestes tempos de agora hedonísticos?


Ou mesmo até dos edifícios de papel

que os escribas projetam com palavras

a transmitir aos pósteros estesias

transcendentes de forma cor e massa?


Importa pouco afinal a mim ou ao outro

o voo dessa ou aquela borboleta

que a vida fez alegremente efêmera.


E não importo eu e nem o outro

mas tão somente o que cegos cumpriremos

dando sequência à sucessão dos fatos

que torna eterno o voo passageiro

da borboleta e também o anonimato

do ser humano que a contempla apenas

com o mesmo olhar que viu talvez

ou nem sequer verá

as ruínas de Roma ou de Atenas.


Ayrton Pereira da Silva

in Umbrais 7Letras, 1997



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
12/12/2015 às 16h26

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