Evito usar o termo "grunge" porque acho reducionista. Ainda mais no caso de Cornell, que sempre cantou mais que a média dos roqueiros (eu disse roqueiros e, não, "metaleiros")
Kurt Cobain, do Nirvana, era o letrista. Eddie Vedder, do Pearl Jam, talvez seja o maior astro pop. Jerry Cantrell, do Alice in Chains, é o maior guitarrista. E Cornell, do Soundgarden, o melhor cantor
Além da sua morte precoce, é impressionante que em quase todas essas bandas tenha morrido alguém de forma trágica. Cobain se suicidou com uma arma. Tinha 27 anos. Layne Staley foi encontrado já em estado de putrefação (depois de uma overdose). Tinha 34 anos. E Cornell se enforcou num banheiro de hotel, na última quarta, depois de um show. Tinha 52 anos
O Nirvana estourou. O Pearl Jam de Eddie Vedder teve sucesso a médio/longo prazo. Talvez mais que qualquer outra banda de Seattle - porque caiu no "gosto médio" (Vedder sempre fez sucesso entre as menininhas...)
O Alice in Chains alcançou, em francês, o que se chama de "succès d'estime" (sucesso entre iniciados). Já o Soundgarden foi o que teve menos sucesso - e talvez fosse, musicalmente, o grupo mais sofisticado. Basta ouvir "Badmotorfinger", de 1991
Maior que essa injustiça toda é o fato de que, talvez, Chris Cornell foi o maior músico da geração Seattle
Ele teve a voz de um bluesman e o próprio Soundgarden soava como uma mera banda "de apoio" para seus vocais. Afinal, o Soundgarden nunca passou de uma versão "anos 90" para o primeiro Black Sabbath. Com a diferença de que Cornell cantava muito mais que Ozzy Osbourne. E, muito provavelmente, se ombreava com Ronnie James Dio - embora, musicalmente, fosse mais versátil
Quando Michael Jackson morreu, a melhor versão de "Billie Jean", na praça, era uma acústica de Chris Cornell. E eu poderia falar de sua versão para "Nothing compares 2 U", de Prince - mas prefiro lembrar de Brad Mehldau, um pianista de jazz, tocando "Black Hole Sun" (do último disco do Soundgarden que vale a pena, "Superunknown", de 1994)
No início dos anos 90, quando o grunge estourava, já se falava na "carreira solo" de Chris Cornell. Mas, embora conseguisse bom espaço na imprensa, para suas turnês solo, sua carreira solo nunca decolou de fato
O mais perto que esteve do mainstream, depois do grunge e do clipe de "Jesus Christ Pose", foi com "You know my name", da trilha sonora de "Cassino Royale", o "remake" de 2006
Uma das maiores fatalidades é um grande talento não encontrar o sucesso de fato...
Primeiro, Cobain com aquele fiapo de voz rouca. Depois, Staley, que, praticamente, só gritava. Na sequência, a consagração "pop" de Vedder. E, por último, Dave Grohl, com o Foo Fighters - que, como baterista do Nirvana, até enganava; mas, como cantor, é, convenhamos, "o sub do sub"...
Se somar todos, não dá um Chris Cornell. Que sua morte precoce, ao menos, sirva para redimensionar sua importância
O grunge, como modismo, era uma bobagem. Mas a geração de Seattle, de fato, foi a última do rock
Em rastreante luz a nascer e esconder-se
de si mesma, meu diário das horas escuta
vozes do mito:
“Tão antigo quanto o mundo
tudo se abre ou se fecha à vontade de Jano
que preside as portas do céu
guardando-as ao ritmo das Horas.
Em qualquer sacrifício a outro deus
é ele invocado em primeiro lugar.”
Diante do seu rosto
meu diário das horas percorre leste-oeste
duplicando olhares de rastreante luz a nascer
e esconder-se de si mesma.
Desejo então fixar lume e imagens
entre horizonte e possibilidade.
Duplicando olhares, as duas faces de Jano
tangenciam limites no tempo de agora.
Guardião das portas, ele se apercebe
protetor dos caminhos
e me fala do seu ofício:
Inquietam-me longos tempos
que se foram e que hão de vir,
por isso vou escavando pequenos intervalos
para encontrar alguma véspera feliz
inscrita no agora.
Meu grito primal sonoriza-se
na fala do visitante à soleira das portas
fechadas ou entreabertas.
Dia de hoje e tempo remoto,
vejo-me antigo e atual. Encontro-me
ontem e amanhã na revelação de mim mesmo
aos sobressaltos das andanças daquele que me ouve.
Ante meus relógios sem ponteiros
tingem-se de sol as paredes do quarto.
E as paredes do mundo.
Muito antigo e atual,
não mais me assusta a fuga do instante.
Eu também busco meus caminhos.
Meus caminhos e minhas portas.
(Poema inspirado na escultura “Jano”, de autoria de Valdir Rocha)
Os primeiros momentos da manhã começaram a tinturar o céu com o azul entremeado de tons indefinidos, variando entre o rosa dos flamingos, o borgonha avinagrado do vinho dormido e o amarelo do sol, espiando ainda muito discretamente.
Ela acordou e foi saindo da cama, conferindo o horário no relógio embutido na moldura da Tv. Calçou os chinelos, moveu-se com absoluta discrição e cuidado evitando acordar o marido, espichado com a cara virada para cima, tranqüilo, arrumadinho na cama, como sempre ficava. Nunca foi de ficar se virando para um lado e para o outro. Apagava , ficava quieto depois que desligavam a TV. situada bem em frente a cama, sobre a cômoda de nove gavetas, jacarandá legitimo, herança de muitos anos, desde o tempo da bisavó.
Aquele relojinho eletrônico, com sua luz verde não apagava nunca. Acabou por mostrar-se de utilidade indiscutível. Quando havia remédio para tomar de seis em seis ou de quatro em quatro horas, no meio da noite, ele estava ali para a conferencia do horário.
Os dois tinham a capacidade de acordar e tomar o medicamento sem que fosse preciso o uso de qualquer alarme. Bastava pensar firmemente na hora da próxima pílula e, pronto, acontecia. O relógio confirmava o acerto. Bem, às vezes não dava muito certo, mas meia hora pra lá ou para cá, não fazia grande diferença no entender do casal.
Deu mais uma olhada no companheiro, aproveitando o fiapo de luz que escapava para dentro do quarto, escorregando num canto onde a cortina ficava afastada alguns centímetros da parede. Lá fora a claridade aumentava rapidamente desde que acordou ate agora, o suficiente para não precisar acender o abajur.
Foi ao banheiro tomar os cuidados de sempre. Escovar os cabelos curtos e prateados após limpar os dentes, colocar as próteses ate ali afogadas na solução de bicarbonato de sódio, piscar, repetidamente os olhos, fitar-se profundamente, tentando ver melhor o que o espelho teimava mostrar sem pena: A ação do tempo sobre a fisionomia. As linhas de expressão transmutadas em finas rugas, as marcas em torno dos olhos, as pupilas denunciando a catarata, os lábios sem o viço antigo, o pescoço.
- Arre, o tempo não da folga. Estou velha, murmurou consigo mesma.Em seguida foi preparar o café matinal, rotina que alternava com o marido.
Enquanto arrumava o suporte para o coador de flanela pensava na vida, nas centenas de cafés da manhã divididos com ele, o esposo amado.
Um arrumava a mesa, e o outro fazia o resto. A leiteira no fogão sendo cuidada para não ferver e entornar, a cesta com o pão de dieta, as torradas eventuais, a manteiga sem sal, a geleia do gosto mais dela do que dele, o eventual omelete de um ovo sô, na verdade um mexido mal acabado.
Sorriu, lembrando das ocasiões em que transbordavam de alegria por qualquer motivo. Eram jovens, estavam começando a caminhada juntos.
Cerrou o cenho lembrando os momentos de apreensão e angustia, quando ele perdeu um promissor emprego, depois quando ela adoeceu de repente e mais tarde quando nasceu o primeiro filho dos três que tiveram.
A pratica matinal consumiu pouco mais de um quarto de hora na preparação da primeira refeição. Conferiu tudo: A posição do material, as xícaras, pratos, talheres, comidinhas, água, e os remédios.
Abriu a janela puxando a alavanca que movimentava as três peças de vidro que a compunham, deu uma olhada sem ver nada no lado de fora, imaginado o bom tempo que a luminosidade daquela manha estava sinalizando.
Pegou a cadeira, afastando-a da mesa para poder sentar-se.
- Que estranho! Ele ainda não acordou, não fez nenhum barulho, não tossiu nem pigarreou, nem foi ao banheiro! Esta velho mesmo... Dorme, dorme, dorme.
Vou apagar o fogo do leite e descansar mais um pouquinho também, voltou a resmungar colocando a cadeira no lugar.
Começar a fazer o café e depois voltar para dormir mais um pouco era um costume que os dois tinham de longa data. Na maior parte das vezes levantavam juntos. Um habito com peculiaridades.
Conforme o aperto, um ia lavar o rosto primeiro enquanto o outro aliviava os momentos chamados de “necessidades”. Faziam troça com a coincidência. Mas não era nada de mais. Comiam nas mesmas horas, bebiam água ou sucos, igualmente juntos, enfim, só o banho e que um esperava o outro terminar.
Outra peculiaridade era destrancar a porta de entrada, logo que o primeiro acordasse. Assim, não precisavam pular da cama quando a ajudante chegasse. Ela era pontual e as oito horas da manha, metia a mão na porta, entrava pé ante pé, e ia trocar de roupa. Já vinha de café tomado, mas uma xícara daquele perfumado café mineiro, coado a moda antiga sempre era filada.
Ela voltou para o quarto, agora bem claro, deu uma ajeitada na cortina buscando alguma penumbra, sentou-se, descalçou os chinelos e aboletou-se ao lado do dorminhoco. Pouco tempo depois procurou a mão do companheiro estendida ao lado do corpo em repouso, enquanto a outra restava sobre o peito.
Não houve a habitual resposta, o acolhimento entrelaçando os dedos. Ela insistiu, notando a temperatura fora do habitual, muito mais fria. Alem do mais, estava flácida, sem consistência.
Não teve tempo para manifestar qualquer reação.
O marido sorridente exclamou com surpresa: Você também veio. E abraçando-a com ternura, beijou-lhe a testa soltando o abraço e mantendo as mãos dadas.
- Vamos, olha só que coisa maravilhosa! Que céu! Que azul mais delicado. Não sei como descrever, se e escuro ou claro! E quantas estrelas, que coisa mais linda.
Enquanto falava, percebia o espaço estava coalhado de pontos de luz, semelhantes as estrelas mais distantes, afastando e se misturando ao mesmo tempo.
-Que lindo, que suave, que cheiro bom.
-Aroma, e aroma que se diz, corrigiu a senhora.
-Tão suave, delicado, parece que estamos no céu...
Enquanto falavam e observavam os entornos, deram conta de que também estavam sublimando, transformando-se em pontos luminosos ao mesmo tempo em que se fundiam um ao outro. Logo estavam completamente integrados e brilhando. Em breve iriam participar daquela reação magistral formando uma nova estrela.
A empregada chegou, abriu a porta, deu uma olhada no quarto do casal, olhando pela fresta da porta, hoje encostada, diferente dos outros dias em que ficava fechada. Parou para fixar a vista, desconfiou e entrou.
Voltou para a sala, pegou o caderno de telefones e procurou um numero especifico , assinalado com o destaque: Em caso de emergência, ligar para este numero.
Foi para a cozinha, encheu a xícara com o café já coado e morno, pegou uma fatia do pão de dieta, marrom, meio duro, passou manteiga e ficou esperando alguém da família.
“Ali está o poema, inacabado/ pulsando pelo verso que o complete./ Coração à espera de uma espada”. É como se inicia o novo livro de João de Jesus Paes Loureiro, Encantarias da palavra (Ed. ufpa), que será lançado no próximo dia 28 na Feira Pan-Amazônica do Livro. Escritor profícuo, Paes loureiro transita por várias áreas, e, como nos versos acima, a poesia o define.
Nesse livro, os diversos caminhos tomados por sua poesia estão presentes. Os versos engajados de Tarefa (1964), seu primeiro livro, ainda ecoam na temática da crítica social; a metafísica de Pentacantos (1984) e o Ser aberto (1991) se desdobra em sua “via sacra do ser”; a cultura amazônica de sua Trilogia amazônica (Porantim, 1978; Deslendário, 1981; Altar em chamas, 1983) continua a ser determinante.
Isso não quer dizer, de modo algum, que nessa nova obra a poesia se acomode. O trajeto dos seus poemas traz, por exemplo, um modo singelo de observação da rotina da vida. É a singeleza que busca concentrar (Dichten) um mundo em “pequenas percepções do cotidiano”.
A morte, a amizade, a memória, o amor, são algumas das temáticas que passam diante de seus e dos nossos olhos. O imediatamente perceptível, a banalidade do cotidiano, busca ser atravessado pelos versos que querem transcendê-lo.
“Verde-tarde. Verde-folha. Verde-musgo./ Verde puro verde. Verde-tudo./ Verde desejo no teu verde olhar”, é uma dessas percepções de uma poética experiente e que, ao mesmo tempo, busca se renovar. Aqui, a alusão a Benedicto Monteiro (Verde Vagomundo - 1974) é, conscientemente ou não, uma homenagem.
Os poemas sobre as gatas e sobre a dança seguem esse tom de reificação do real, de metaforização do afeto e, especialmente, de transfiguração do tempo, do movimento. Um trecho do poema “Coreografias” é um exemplo desse proceder: “Ela dança no girar dos seus arcanos/ dança o ser e o não-ser, a luz e a cor/ dança além do verde azul dos oceanos/ dança em chamas de amor e desamor”.
A recorrente imagem “ser-não ser” é cara a essa poesia, que tem em uma metafísica do real um dos seus fundamentos mais importantes. A dança já não é apenas movimento, é um pequeno mundo distendido, é durée e cosmologia.
Criar um mundo pela poesia é um consolo, uma dádiva, ou um lamento? O metapoema também é homenagem e questionamento. Louvação da poesia e angústia diante de sua necessidade e impossibilidade. O cotidiano está longe de emitir apenas imagens predominantemente idílicas. Agônico, ele suscita a poetização da violência, a finitude e a dor. Seu “Antipoemas” a isso se refere: “Antipoema é mergulhar a mão em lodo e lama/ para no fundo colher/ uma última flor do Lácio oculta e bela”.
Poderíamos dizer que esse viés está de acordo com a realidade que se contempla, poderíamos afirmar que ele, em seu registro, a transcende, que é a luta infindável por capturar aquilo que já não percebemos mais, que a poesia, essa poesia, trava, com a metáfora, uma batalha inglória contra a crueza do real. E isso, também, é uma forma de engajamento.
Instaurar na aparência uma essência sempre foi um dos elementos mais marcantes da poesia. Nesse caminho poético do escritor amazônico, esse elemento é decisivo. Mitos, lendas, seres encantados, os que compõem a origem das encantarias, habitam, novamente, esse livro. Mas o sentido dessas encantarias é o seu relacionar com o homem, com seu imaginário.
Como escrevera Benedito Nunes (O nativismo de Paes Loureiro - 2000), “humanidade da várzea e da floresta, que é o verdadeiro sujeito dessa lírica amazonizada, regional, mas não regionalista, e que [...] incorpora o rio, o riverrun amazônico”.
É desse modo que as “Encantarias veem os homens”: “As encantarias que somos,/ onde deuses habitam/ na poesia/ existem submersas/ na alma/ e na palavra/ de quem olha o rio./ A encantaria no fundo do rio/ é o sonho do olhar.”
Esse belo poema dá o sentido desse Encantarias da palavra. O encanto habita o rio, mas também a rua, a bailarina, a angústia, a palavra. O verso quer (se obriga e é impulsionado a) exibir o mundo em seu outro Ser, que só existe por ele e através dele.
Relivaldo Pinho é escritor, pesquisador e professor.
Texto publicado em O liberal, 23 de maio de 2017, p. 2.