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21/10/2018
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A moral da dúvida em Oakeshott e Ortega Y Gasset
Segundo o filósofo espanhol Ortega y Gasset, em Rebelião das massas, “A liberdade sempre significa (...) autonomia para ser o que autenticamente somos. É compreensível que aspire a prescindir dela quem sabe que não tem uma autêntica missão” (p.50). Com isso, são estabelecidos dois tipos de pessoas: o que aceita a liberdade de ser quem realmente é, assumindo a responsabilidade pelas consequências de suas escolhas; e o que abdica dessa responsabilidade, transferindo-a para outras instâncias, como a ideologia. Essa diferença define a base do indivíduo e do homem-massa, aquele que não tem individualidade.
A formação do indivíduo consciente de si mesmo é fruto de um processo gradual, ilustrado por Michael Oakeshott com uma “nova linguagem para falar acerca do homem como personagem histórico” (p. 95). O primeiro registro dessa nova consciência se deu na Itália, com o desenvolvimento do Uomi Singulari, caracterizado não mais pelo anonimato da convivência comunal da Idade Média, mas pela “autodeterminação (...), cujas atividades expressavam preferências pessoais de comportamento” (p. 96). Noutras palavras, devido a mudanças sócio históricas, permitiu-se às pessoas desvincularem-se de laços comunais e traçarem seus próprios destinos, de acordo com suas escolhas pessoais.
O item fundamental é que o indivíduo, ao adquirir consciência autônoma, não mais vinculada a conceitos externos, estabelece a si mesmo como base reflexiva: o “indivíduo autônomo se mantém como o ponto de partida da reflexão ética” (Oakeshott, p. 99). Desse modo, o Humanismo foi sua apoteose e Pico della Mirandola (clique aqui para ler "A moral da dúvida em Mirandola e Nietzsche") um dos principais representantes e teóricos – mesmo que não verbalize isso – do Uomi Singulari. Quando o filósofo estabelece o humano como o mais afortunado dos seres, nesses termos estabelece o indivíduo autônomo como novo personagem histórico: representa aquele que é capaz de decidir o seu próprio destino e, com isso, assumir a responsabilidade e arcar com as consequências de sua decisão. O livre-arbítrio em Mirandola diz respeito ao destino universal do homem: suas escolhas no plano terreno terão impacto no plano transcendental. Nietzsche, por sua vez, desloca para o plano terreno, exclusivamente, modificando a maneira de se compreender a capacidade de fazer escolhas, incluindo-a na transvaloração de todos os valores. Entretanto, ambos são humanistas.
Ser um indivíduo autônomo se caracteriza pela capacidade e pela responsabilidade de fazer escolhas: “Havia muitas formas modestas com que essa predisposição em ser um indivíduo pudesse se manifestar. Toda empreitada prática e toda busca intelectual se revelaram uma montagem composta de oportunidades para fazer escolhas: arte, literatura, filosofia, indústria-comércio e política; cada uma chegou a compartilhar esse caráter” (Oakeshott, p. 106). Não é à toa, portanto, que o Humanismo se desenvolveu como nova corrente de pensamento seguida da Idade Média.
No entanto, nem todos aceitaram ou compreenderam a nova possibilidade: “(...) havia algumas pessoas que, seja por circunstância ou temperamento, estavam menos dispostas a entrar na onda; e para muitos o chamado para fazer escolhas viera antes de possuir a habilidade para fazê-las de fato, sendo portanto tidas como um fardo” (Oakeshott, p. 106). Esse indivíduo, incapaz ou descrente em relação à necessidade de fazer escolhas, é o protótipo do que veio a ser o “homem-massa”.
Uma das análises de maior fôlego e profundidade sobre a essência do homem-massa foi feita pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset, em A rebelião das massas. Assim como o indivíduo autônomo é um produto da modernidade, o homem-massa também é. Entretanto, são figuras antagônicas.
A figura que melhor representa o homem-massa é a criança mimada: tem uma falsa percepção de que a vida é (ou deveria ser) fácil, mesmo que cheia de obstáculos; impõe-se sem qualquer autocrítica, visto que acredita-se pleno, soberano; e intervém em tudo, pois crê que sua opinião é soberana, mesmo que irrefletida, sempre preciosa e válida. Por um lado, é herdeiro e desfruta de valiosas conquistas civilizacionais; de outro, não tem o senso de ser civilizado, pois acredita que tudo existe exclusivamente para ele. Sabe que não poderia fazer certas coisas, mas, mesmo assim, faz, refletindo uma sensibilidade simulada, isto é, finge-se uma realidade moral que não corresponde à sua verdadeira conduta.
“Encontra-se rodeado de instrumentos prodigiosos, de medicamentos benéficos, de Estados previdentes, de direitos cômodos. Em compensação, ignora o quão difícil é inventar esses medicamentos e instrumentos, e assegurar sua produção no futuro; não adverte quão inviável é a organização do Estado, e nem sente obrigações dentro de si” (Ortega y Gasset, pp. 177-8)
A consolidação histórica do homem-massa se deu no decorrer do século XIX, graças ao desenvolvimento da técnica, que proporcionou uma crescente melhoria na qualidade de vida material. No passado, viver estava associado a limitações, dificuldades e dependências. Para comer um frango assado no almoço, era mister criar o frango, matar, limpar, preparar, cozinhar e, ainda por cima, aproveitava-se seus subprodutos para outros fins; hoje, toda padaria, supermercado, boteco servem frango assado, normalmente acompanhado com farofa, quando não o cliente escolhe somente as partes que gostaria de levar. Se, antes a vida se dava por meio do aprendizado de adaptação às limitações, agora, praticamente sem restrições ou grandes dificuldades, o homem-massa pode abandonar-se num mundo confortável e seguro, cujo único esforço de escolha é entre qual marca de bolacha recheada irá levar. Na dúvida, leva duas ou três. Contudo, não aprendeu a reconhecer que todo esse conforto não é gratuito, mas foi preciso investir muito esforço para conquistá-lo.
Seu perfil psicológico é de alguém centrado – fechado – em si mesmo; um novo modelo narcísico. O homem-massa não apela para nada fora de si ou de sua zona de conforto, pois além de vaidoso, acredita-se autossuficiente e cheio de plenitude; é a definição etimológica de idiotia. “O hermetismo nato de sua alma lhe impede o que seria condição prévia para descobrir sua insuficiência: comparar-se com outros seres. Comparar-se seria sair um pouco de si mesmo e deslocar-se até o próximo. Mas a alma medíocre é incapaz de transmigrações – o esporte supremo” (Ortega y Gasset, p. 142).
Apesar de o homem-massa possuir mais recursos, inclusive mais capacidade intelectiva, “essa capacidade não lhe serve de nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la lhe serve somente para se fechar mais em si e não usá-la” (Ortega y Gasset, p. 143). A melhoria na qualidade de vida, somada ao conforto material, contribuíram para formar um perfil psicológico acomodado, que não se esforça para se aprimorar: é autossuficiente e/ou os demais têm a obrigação de lhe conceder o que deseja.
Com isso, nas situações em que é defrontado, desafiado a sair de si mesmo – quando é obrigado a fazer uma escolha fora do seu campo de interesse ou zona de conforto, por exemplo – torna-se agressivo. Conscientemente ou não, o homem-massa tende a recusar a ser indivíduo; na verdade ele é um anti-indivíduo. Consequentemente, não tem apreço pela cultura nem pelo passado: “O característico do momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem a audácia de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe em toda parte” (Ortega y Gasset, p. 84).
O direito do indivíduo autônomo é incompatível com o homem-massa. O primeiro requer autonomia, o segundo, tutela: exige “o direito de poder gozar a substantiva condição da circunstância humana, na qual não era obrigado a fazer escolhas por si próprio (...); em suma, o direito que ele [homem-massa] reclamava, o direito compatível com seu caráter, era o direito de viver em protetorado social que o libertava do fardo da autodeterminação” (Oakeshott, p. 122). Portanto, a liberdade do indivíduo é a de fazer escolhas; a do homem-massa é a de não-fazer escolhas.
A reflexão de Nietzsche sobre o livre arbítrio, nesse contexto, aclara a diferença entre um e outro: uma escolha livre não se faz segundo as preferências particulares, pois intensificaria uma personalidade mimada. Uma escolha verdadeiramente livre é aquela consciente de suas limitações, mas que que é feita em direção a um melhoramento, a uma superação de si mesmo, apesar de acarretar sofrimento pelo esforço. É o que separa o nobre da massa: “nobre”, etimologicamente significa “o conhecido: entenda-se o conhecido de todo o mundo, o famoso, que se fez conhecer se sobressaindo da massa anônima. Implica um esforço insólito que motivou a fama” (Ortega y Gasset, p. 136). Por isso o ressentimento da massa, quando vê o sucesso do outro.
“a vida nobre fica contraposta à vida vulgar ou inerte, que, estaticamente, se recolhe em si mesma, condenada à perpétua imanência, se uma força exterior não a obrigar a sair de si. Por isso chamamos massa a esse modo de ser humano, não tanto porque seja multitudinário, e sim porque é inerte” (Ortega y Gasset, pp. 137-8).
Segundo Oakeshott, o governo popular surgiu para atender à necessidade de populismo da massa, numericamente maior, diferenciando-se do governo parlamentar, que, representando o indivíduo, garante as liberdades individuais.
A liberdade é um conceito caro ao individualismo, este um palavrão aos ouvidos de muita gente: da massa. Confunde-se individualista com egoísta, egocêntrico, narcisista, associando-se a liberdade individual com uma conduta desregrada, de alguém despreocupado com os demais. Liberdade e indivíduo são categorias complementares, mas não definem uma moralidade egocêntrica; na verdade, essa confusão espelha uma tipicidade, esta sim, verdadeiramente narcísica: a do homem-massa.
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Postado por Ricardo Gessner
21/10/2018 às 15h01
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Por um triz
A arte é a última que morre
E a linguagem é aquela que a socorre
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Postado por Metáforas do Zé
20/10/2018 às 12h35
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Sete chaves a sete cores
Todos segredos ecoam no universo
Quando falas de ti transparências reverberam
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Postado por Metáforas do Zé
19/10/2018 às 12h17
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Feira livre
Espinhos são anseios deixados pelo caminho
E o sonho, simplesmente uma rosa
Não fosse o desejo
me bastaria teu perfume
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Postado por Metáforas do Zé
19/10/2018 às 12h12
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Que galho vai dar
O instante é uma semente que nunca fica pra semente
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Postado por Metáforas do Zé
17/10/2018 às 10h59
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Relâmpagofágico
Recorrências de si em si mesmo
Assim como as águas...
Memórias e desmemórias em ação...
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Postado por Metáforas do Zé
17/10/2018 às 10h50
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Caminhada
Se não ponteio meu tempo
não teço minha história
Tudo em vão...
Uma melodia inglória...
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Postado por Metáforas do Zé
16/10/2018 às 10h53
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Chama
Encher-se De Amores
É Encher-se De Descobertas...
Equilibrar-se É Oscilar Ante O Estático Equilíbrio De Um Ponto Nunca Alcançado
E Quando Assim Se Dá É O
Nirvânico Olhar
O Estreito E Amplo Espasmo De Um Relâmpago...
Oscilar Em Si Mesmo Assim Como A Chama É O Macro Oscilar Da História Do Pensamento
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Postado por Metáforas do Zé
15/10/2018 às 10h38
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Ossos perduram
Embora teu olhar tenha embaçado no amarelado de algum album fotográfico
teu sorriso atravessa fronteiras do tempo e espaço mantendo-se intacto
assim como as efervescentes ondas do mar
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Postado por Metáforas do Zé
14/10/2018 às 21h41
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A santidade do pecado em Padre António Vieira
Padre Antônio Vieira (1608 – 1697) nasceu em Lisboa, mas veio ao Brasil com sete anos de idade. Logo ingressou no seminário e, ainda em tenra idade, foi reconhecido pelo seu talento e capacidade de oratória. Sua obra é dividida em três partes: textos proféticos (escritos em latim, sendo a maioria ainda não traduzida ao português); cartas e sermões. Ler os Sermões de Vieira é uma experiência gratificante, principalmente quando livre dos rigores dos vestibulares. E, apesar de originalmente serem textos com finalidade oratória, isso não anula sua força literária. Aliás, muitos dos textos hoje abrangidos pela literatura eram, em suas origens, declamados ou cantados, a exemplo da Ilíada e da Odisseia, de Homero.
Os Sermões são dirigidos a um público variado e abordam temas variados. Dentre os seus mais conhecidos está o “Sermão da Sexagésima”, proferido em 1655. Seu ponto de partida é a indagação sobre o motivo da palavra de Deus, apesar de tantas vezes exposta e divulgada, não produz os efeitos esperados. Seria problema em relação à palavra de Deus? Seria o problema com os ouvintes, que não lhe dão a devida atenção? Ou seria falha dos oradores? Ora, a primeira opção não pode ser, afinal, a palavra de Deus é a Verdade, é absoluta. Também não pode ser a segunda opção, já que se a palavra de Deus não frutifica, pode produzir algum efeito, por mínimo que seja. Resta, então, aos oradores assumirem a responsabilidade. O Sermão aborda, portanto, uma crítica aos próprios oradores missionários, que pregam a palavra de Deus, mas não agem em sua conformidade.
Nos preâmbulos de sua fala, Vieira faz a seguinte afirmação: “Que cousa é a conversão de uma alma senão encontrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessário luz, e é necessário espelho” (p. 140). Considero esta passagem de uma elegância rara, tanto em sua forma expositiva – as metáforas aplicadas de modo certeiro –, quanto em sua mensagem. Em resumo, o que ela diz é: para que a palavra de Deus floresça, são necessários três elementos: olhos (isto é, consciência), luz (sabedoria) e espelho (modelos e padrões). Noutras palavras, cada item representa, respectivamente, um bom ouvinte, a palavra de Deus e um bom pregador.
Mas o que se sobressai são as entrelinhas, principalmente no que está sugerido pela palavra “conversão”. Segundo Vieira, não se trata de uma submissão cega e irrefletida a uma doutrina ou conjunto de preceitos; trata-se, sim, de encontrar Deus dentro de si mesmo.
Santo Agostinho, em suas Confissões, relata que se converteu quando deixou de buscar a Deus no mundo para encontra-lo dentro de si: “Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti”.
Nesses termos, “converter” significa combinar os três elementos num ato de introspecção: voltar-se para si mesmo e (re)conhecer-se limitado, perfectível, pecador. É reconhecer que a natureza humana, antes de mais nada, é falha. Ninguém é perfeito, pasmem; e nunca seremos.
Ao contrário do que se pensa, há mais santidade no pecado do que na pureza. Não significa, de modo algum, que santo é um virtuose na prática da luxúria, da avareza ou da ira; o santo, na verdade, é aquele que compreende a natureza do pecado e, sabendo-se fraco, assume a possibilidade de sucumbir, apesar de seus esforços.
Independentemente de fé ou religião, ler Antônio Vieira é gratificante. Além de ser uma experiência intelectualmente interessante, seus textos são brechas para observar as profundezas da alma humana. Um bom autor é aquele que capta a natureza humana, seja em sua bestialidade ou em sua santidade, e nos coloca defronte. Literatura é isso, um meio de conversão. Não necessariamente religiosa ou doutrinária, mas uma oportunidade para convergir para dentro de si, vasculhar a besta que nos habita e encará-la nos olhos.
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Postado por Ricardo Gessner
14/10/2018 às 11h42
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